sábado, 15 de maio de 2010

Aconteceu no consultório

Era a enésima vez que ela ia ao dentista para um tratamento de canal.

Tratamento de canal, não! Tratamento endodôntico de três condutos! No seu tempo, ela pensou, ainda havia dentistas que faziam todos os serviços - mas esses dias ficaram no passado. Se você trocou seu velho dentista, amigo do seu pai, por um amigo, seu contemporâneo, pai de um dos amigos do seu filho, na certa esse dentista é um especialista - e ele vai dividir o teu serviço de canal e restauração com algum colega.

No caso específico, ela tratava os dentes com um colega do segundo grau, que fez odonto e se especializou em ortodontia e restaurações. Como o caso era a substituição de um bloco de amálgama por outro de porcelana, bem mais caro, moderno e - por que não - bonito, ela foi direto procurar o tal colega.

O problema é que o bloco antigo estava infiltrado, e devido a esse infortúnio ela precisaria também de um tratamento endodôntico. E como o dente em questão era um molar, não era só um canal - mas três. Então, o colega perguntou se ela fazia tratamento endodôntico com alguém, ou se ele podia marcar uma consulta com o seu sócio, o especialista em questão.

-Claro, Emerson. Marca, vai. Pode marcar... Não dá prá você fazer, não, né?
-Não, Marion, já te disse! Esse negócio de dentista all in one é coisa do passado...
-Tudo bem. Fazer o quê?
-Tratar esse canal para eu poder fazer um on lay de porcelana lindo, lindo! Vai ficar perfeito, vai parecer que é teu dente mesmo! Você vai ficar super satisfeita com o atendimento do Ronaldo. Ele é o melhor endo da minha turma, sério.
-Ok, já tinha me convencido lá no "coisa do passado"...

Riram mais um pouco e ela foi embora, o apontamento marcado para a próxima terça-feira, às 15h. Horas depois, quando a anestesia passou, ela praguejou pela demora da consulta. "Como dói! Diabos... Maldita a hora em que me deixei levar pelo apelo da dentição artificial..." Era curioso que logo ela, provavelmente a mulher menos vaidosa do mundo, tivesse caído nessa esparrela de trocar os blocos feiosos por algo de aspecto mais natural. Era idéia do marido. Ele resolveu que precisava melhorar a aparência dela. Dizia que ela estava muito descuidada, que ainda era uma mulher jovem e atraente... "É claro", ela pensava sempre, "ele tem mesmo é que me achar atraente - ou continuar mentindo! Afinal, esse casamento é para sempre ou não é?" Agora o tratamento tinha começado e não podia mais parar. Estava doendo muito, muitíssimo. "Eu devia ter combinado de ele pagar o tratamento também..."

Depois de um final de semana a base de analgésicos - "Emerson, pelamordedeus! O que eu tomo? Tô pirando de dor!"- chegou finalmente o dia do tratamento endodôntico de três condutos. Ela chegou pontualmente às 15h, só para descobrir que o tal do dr. Ronaldo tinha ligado, avisando que ia se atrasar. Ela já estava praguejando baixinho, no melhor estilo preto velho:

-Puta que pariu! Essa porra doendo prá caralho e esse puto atrasadinho...
-Desculpe, querida. O puto aqui não vai se atrasar de novo. Não agora que pôs os olhos em você...

Ele estava entrando e ouviu tudo, enquanto ela resmungava para o vazio da sala de espera. Púrpura de vergonha, viu-se na obrigação de se desculpar:

-Desculpe, doutor. Eu estou sofrendo horrores com esse dente aqui, aberto. Posso declarar insanidade temporária causada por odontalgia incapacitante?
-Você deve saber. A advogada aqui é você...
-Estou vendo que o Emerson deu a minha ficha...
-É. Só não me avisou que você era tão linda. - "Um galanteador", ela pensou. "Puta merda, oh raça..." Não tinha o hábito de acreditar em elogios. O cara obviamente queria deixá-la embaraçada, para que ela esquecesse a dor por alguns instantes. Então ela apenas sorriu e disse:

-Podemos ir direto ao assunto?
-Claro! Pois não... Ele absorveu o corte dela sem demonstrar constrangimento algum. "Viu só? Conquistador barato por vocação, dentista por profissão." Ele indicou o caminho do consultório, abrindo espaço para que ela passasse pelo corredor que separa a sala de espera do consultório. Escoltou-a até a cadeira, mantendo a mão esquerda em suas costas - primeiro entre suas espáduas, depois deslizando-a até a parte mais baixa das costas, bem acima do quadril. "Maldito Emerson... Arrumou um colega tarado como ele para ser sócio no consultório..." O que o toque provocou não foi propriamente repulsa. Na verdade, ela sentiu um calafrio e um peso no peito - e isso era um sintoma claro de excitação sexual. Tentou manter a cabeça fria, mas era tarde: imediatamente, seus olhos começaram a medir o endodontista. E era um pedaço, o homem! Corpo trabalhado por horas de academia, um peitoral largo, ombros estruturados, quadril estreito, pernas fortes. O calafrio repetiu-se, e dessa vez ele teve início em seu sexo. "Maldito homem!" Ficou com um ódio terrível, mas era tarde demais. Ele já se encaminhava para a cadeira, munido de anestésicos potentes e mais uma bandeja de instrumentos. Ela sentiu-se aliviada na hora. Com certeza, não há no universo nada mais antagônico ao erotismo que um dente com canais imprestáveis. E estar boquiaberta naquela posição de vítima a deixava muito desconfortável, fosse com quem fosse.

Ele pediu que ela abrisse a boca. E iniciou o trabalho pela anestesia.

-Vamos ver o quanto essa belezinha vai melhorar o seu humor. - Ela não conseguiu evitar sorrir.
-Tenho certeza de que vai...

Ele aplicou o anestésico local e logo em seguida a anestesia propriamente dita. Ficou puxando small talk, para dar tempo ao anestésico. E ela descontraiu-se tão logo a medicação fez efeito. "Incrível como isso estava me incomodando." Ele pareceu ler seus pensamentos:

-Está vendo? Muito melhor agora, não é?
-Nossa... Só!
-Depois que a gente terminar você nunca mais vai sentir dor nesse dente... O que não deixa de ser melancólico.
-Melancólico? Por quê?
-Ora, meu bem, eu estou matando três nervos teus. De certa maneira, vamos diminuir a tua capacidade de sentir as coisas, mesmo que num nível bem local...
-Eu nunca tinha pensado nisso dessa forma...
-É o meu trabalho pensar nisso.
-Não. O teu trabalho é matar os nervos. Pensar nisso só dificulta as coisas para você, não é?
-Verdade.

Um silêncio grave se colocou entre eles. Ela não sabia como, mas precisava acabar com aquele momento.

-Acho que você já pode começar com o assassinato, Ronaldo. Já não sinto nada. Pense nisso como uma eutanásia. Eu te suplico que mate esses nervos - eles estão acabando com os meus nervos, falando figurativamente - e sorriu. Ele relaxou um pouco, e devolveu o sorriso.
-É, dito assim soa melhor. E você está definitivamente anestesiada. Posso ver na sua mímica facial...

Ele tocou seu rosto e ela, apesar de anestesiada, sentiu novamente o aperto no peito. Respirou fundo e engoliu em seco. Ele se afastou bruscamente e começou. Trabalhou por uma hora, incansável. O tempo passou sem que eles se olhassem: ele se concentrou no serviço, ela num ponto imaginário no teto. O campo asséptico mantinha sua boca completamente aberta, e ela nem percebeu quando adormeceu.

O anestésico teve um efeito inesperado. Enquanto anestesiava a boca alcançou um vaso sanguíneo e distribuiu-se por todo o corpo, causando um efeito curiosíssimo: analgesia geral. Ela não mais sentia o seu corpo, nem premeditava em seus pensamentos o que iria fazer quando saísse dali. Sentia uma imobilidade deliciosa. Deixou-se ficar, imersa como estava naquela sensação gostosa de abandono, de relaxamento. E sua mente vagou. Dormiu. Apagou mesmo.

-Prontinho, Marion!... Marion?
-Hã? Já terminou?

Ele sorriu, e ela pode ver seus dentes. Dentes perfeitos. "Pelo jeito, o efeito da analgesia já era..." Ela já estava reparando no dentista de novo. Melhor parar por ali.

-Isso foi tudo, dr. Ronaldo?
-Não, meu bem! Imagina se a gente trata três canais assim, de uma só vez... Eu fiz o tratamento inicial, limpei e matei dois dos três nervos. Agora você está com um curativo. E não deve sentir mais dor - pelo menos não dor como aquela. E vai tomar antibióticos, porque tinha uma infecção polpar no terceiro canal. Vamos tratar a infecção e terminar o assassinato na próxima consulta. Aí fica faltando fechar os condutos e o Emerson pode moldar o on lay. Daqui a uma semana quero você aqui novamente, ok?
-Combinado! - disse isso e ruborizou. "Merda! Ficou parecendo que a gente marcou um encontro..." Tratou de corrigir-se. -Quero dizer, claro, está agendado.
-Podemos manter o horário? Dessa vez prometo que já estarei aqui na hora que você chegar.
-Ok, doutor.

Ele estendeu a mão para ela - e ela retribuiu o gesto, cumprimentando-o de volta. Ela preferiu pensar que tinha imaginado a eletricidade que circulou entre eles, naquele aperto de mão. Sacudiu a cabeça instintivamente. Ele não percebeu - ou fingiu não ter percebido.

A semana passou rapidamente, e veio o fim de semana, e de repente já era segunda-feira. O telefone tocou por volta de 13h naquela tarde. Era a secretária do Emerson:

-Dona Marion? Estou ligando para confirmar a consulta com o dr. Ronaldo amanhã, às 15h.
-Ok, Renata. Estarei aí no horário combinado, amanhã.

Ficou nervosa o resto do dia, e acordou numa crise de ansiedade terrível. Tão incapacitante quanto a dor que tinha sentido na semana anterior. Nem pensar conseguia direito. "Arre, te aquieta, criatura! Por que isso agora? Tira os bíceps do cara da cabeça e te concentra no tratamento... Pensa na anestesia!"

(to be continued...)

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