terça-feira, 30 de novembro de 2010

Parênteses

Todas as semanas aquele quarto de hotel testemunhava impassível ao encontro dos amantes. E a cada semana eles se esmeravam mais no jogo do amor. Um completava o outro perfeitamente. Era como se lessem os pensamentos um do outro, e já não havia espaço que não tivessem explorado, como se não houvesse fim para aquele desejo que era mais poderoso que a vontade dos dois. Já havia 15 anos, e eles ainda se queriam como então, como quando eram jovens e livres. Só não eram mais: nem jovens, nem livres.

Ela era mãe de dois lindos meninos. Ele, pai de um rapaz. Cada um com sua vida real, com sua família - e dividindo a dinâmica do parêntese. Era assim que ela chamava aquela segunda à tarde, há mais de uma década: parêntese. Era como uma vida paralela, uma ornamentação que conferia um colorido todo especial às suas vidas reais. O grande dilema nunca havia atingido aos dois, enquanto seus corpos entrelaçados dançavam segundo o ritmo - ora cadenciado, ora frenético - das segundas-feiras.

E no entanto, tal como ela já pressentia, dia de muito é sempre véspera de pouco... E não havia porque a vida poupá-la do grande dilema. Ela era feliz em sua vida real, sentia-se parte de algo vivo e pulsante enquanto preparava refeições e conduzia filhos e marido para seus compromissos, enquanto gerenciava a casa e punha ordem em seu pequeno sistema planetário.

Ele não. Vivia uma relação onde sentia-se oprimido e negligenciado, como se fosse acessório e não protagonista de sua vida em família. Hoje, 15 anos depois, o filho criado, ele não via porque deveria continuar ali, atado a convenções em que nunca acreditou. Ela não entendia porque, depois de tantos anos, ele não poderia simplesmente permitir que as coisas entre eles continuassem como estavam, como sempre estiveram.

Ele insistia em dizer que aqueles parênteses não atrapalhavam a sua vida. Ela já não acreditava mais. Ela lhe dizia que nunca saberia olhar para ele como um amigo. A mesa do grande dilema posta à frente deles, e nenhum dos dois tinha a coragem de pegar nos talheres e iniciar o banquete.

Talvez ela precisasse ter força pelos dois, dali para frente. Mas não cruzaria os braços, esperando da vida a resolução daquele problema. A vida lhe daria o que ela queria, simplesmente porque era assim que ela queria!

Levantou-se. Beijou-lhe a boca como sempre. Como desde sempre. Deu-lhe as costas e saiu porta a fora. Como nunca. Como nunca mais. Diante dele, sobre seus braços cruzados sobre o peito, um bilhete:

(Serei sempre tua, mesmo que você nunca mais me procure. Mesmo que esse quarto de hotel nunca mais testemunhe o nosso amor. Mesmo que você me diga que parênteses não são necessários: quem escreve a história da minha vida sou eu, e eu adoro parênteses...)


sábado, 13 de novembro de 2010

Mulher Gato

Às vezes a vida lhe pregava peças, e ela ficava dividida entre caminhar na linha e deixar-se levar.

Ela sempre fazia suas escolhas por ocasião de seu aniversário. E a data se aproximava rapidamente... Dessa vez a decisão era bem simples, mas por algum motivo ainda era difícil para ela a transição entre o que era certo e o que era fácil. Dessa vez, o fácil era o certo. Difícil era decidir o que a outra opção representava. Se não era mais uma questão de saber discernir entre o fácil e o certo, como ela poderia usar sua bússola dali por diante?

De repente era o dia, e a escolha urgia, e ela fez o que precisava fazer. Doeu sim, foi como cortar a própria carne, mas ela sabia que ficaria bem. Mesmo perdendo muito sangue, mesmo que lhe custasse uma de suas cinco vidas. Ah, é claro que ela já fizera a escolha antes... Duas outras vezes. E ainda tinha outras cinco oportunidades de acertar pela frente - antes de arriscar sua vida definitivamente. O que a surpreendia era ter se enganado tanto. Daquela vez ela sentira ter tocado a perfeição com as pontas dos dedos... A menina dentro dela parecia ter encontrado o garoto ideal.

Daquela vez não se deixaria levar. Tomaria as rédeas de sua vida novamente. Deixar-se levar pela vida era coisa de quem não tinha aprendido a se responsabilizar pelas próprias escolhas.

E isso ela já sabia fazer. Tinha aprendido isso há pelo menos duas vidas atrás...

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Permanência (final)

Ela respirou fundo. Não podia ignorar tudo o que eles tinham vivido naquele fim de semana. Por outro lado, não podia ignorar a dor física que sentia só de lembrar daquelas duas semanas, há dez anos atrás, quando o mundo parecia ter deixado de existir, quando nada fazia sentido, quando ela pensava que talvez fosse melhor morrer a voltar à escola e vê-lo novamente. Ela não podia entrar naquele carro, sentar-se ao lado dele e simplesmente agir como se nada tivesse acontecido. Estava claro que aquele era o momento do tudo ou nada, e que ela teria que resolver se podia ou não lidar com todos aqueles sentimentos reprimidos por toda uma vida.

Ele estava apavorado, da mesma forma que estivera naquela ocasião, quando ela desapareceu e cortou toda e qualquer oportunidade de contato. Ele não tinha chão sem ela por perto, o chão podia se abrir e tragá-lo e ele nem se importaria - tudo o que ele queria era poder olhar em seus olhos e dizer-lhe a verdade, toda a verdade: que ele fora um fraco, que não tinha sido digno da confiança dela, que entendia se ela nunca mais quisesse vê-lo - mas que a amava e não queria casar com Maria! Se ela tivesse ouvido, se tivesse sido capaz de enfrentá-lo! Se ela tivesse explodido em impropérios, se tivesse gritado e cuspido nele, se ela ao menos tivesse reagido! No fim das contas, ele sabia que aquela ausência era a reação mais grave. Ele imaginava o quanto ela estava sofrendo por causa daquela maldita transa inconseqüente sem camisinha! Se ele pudesse ao menos se explicar... Mas sabia que nenhuma explicação era explicação suficiente.

As escolhas que fizeram tinham trazido os dois até ali. Tinham estado juntos por todo o fim de semana, conversado sobre tudo - e tinham evitado o único assunto que não podia ser calado. Estavam pagando caro demais pela ingenuidade que escolheram abraçar durante aquelas horas doces de idílio. Naquele momento, tudo o que Rachel queria era fugir dali. Tudo o que Luís queria era dissuadí-la. Ele sabia que talvez a tivesse perdido para sempre, depois da chegada de Maria.

Ao invés de ficar ali, esperando que as coisas se resolvessem, Rachel resolveu ir se despedir dos amigos. Helena e Renata estavam muito preocupadas. Perguntaram se ela não queria ficar, e afirmaram que dariam um jeito para que ela voltasse com uma das duas. Ela apenas agradeceu, tentando parecer normal - mesmo ali, no olho do furacão. Suas amigas a conheciam muito bem, e sabiam que ela estava bem triste, mas não podiam pressioná-la. Rachel sentiu-se acolhida, e disse isso a elas. Mas tinha que ir, tinha que fechar aquela história. Todos estavam se divertindo tanto que a ausência deles não seria percebida - afinal, tinham estado lá, mas era como se não estivessem. Dali voltou ao quarto, verificou se havia deixado algo para trás e fechou aquela porta pela última vez. Nunca mais voltaria àquele lugar. Apesar de todas as lembranças felizes que ele evocava, não podia ignorar que fora durante a viagem de formatura que Luís e Maria conceberam seu filho, e que tudo havia desmoronado a partir daquele ponto. Desceu até a recepção para fechar a conta - e encontrou Luís à sua espera.

- Você vai comigo? - Havia um tom de súplica em sua voz, e ela sentiu raiva de verdade.
- Vou, se você parar de se fazer de vítima.
- Tudo bem. Eu só quero que você entenda que eu realmente não imaginava que ela viesse até aqui.
- Ela adora uma baixaria, Luís. Eu já devia imaginar. Mas baixei a guarda, e foi nisso que deu. Eu só quero deixar bem claro que vou me manter distante. Não quero fazer nada de que me arrependa, mas se você puder facilitar a minha vida, diga a ela que não mexa comigo, por favor. Eu calei por dez anos. Nem mais um minuto, ok?
- Ok, Chel. Combinado.
- Então vamos fechar a conta e sair daqui logo.
- Já resolvi tudo, não se preocupe.

Ela não encontrou forças para retrucar e exigir que dividissem a conta. Só concordou e acompanhou Luís até o carro, onde ele já tinha colocado as suas malas, sem dizer mais nada. Maria tinha ido na frente, e ele se comprometera a chegar ao velório para a cerimônia do adeus. Eles viajaram sem trocar palavra - ela absorta em seus pensamentos, ele apreensivo, ambos infelizes. O que quer que acontecesse, ambos sabiam que nada mais seria como antes. Encontraram o Marquinhos na entrada da capela. Era um menino lindo, e ela se viu diante de um Luís de 10 anos. O menino correu até o pai e o abraçou.

- Você é a Rachel? - perguntou a queima roupa, sem soltar o pai.
- Sim.
- A mamãe disse que você era uma baranga. Não é verdade. - Rachel se limitou a sorrir. Ele continuou:
- A mamãe disse que o papai deixou a gente por sua causa. É verdade?
- Acho que só seu pai pode responder isso, querido. Eu só posso dizer que nunca imaginei que fosse vê-lo de novo até esse fim de semana.
- A minha mãe fala muitas coisas de você...
- Tenho certeza que ela nunca te contou a história inteira. Mas não é hora para essa conversa, meu bem. Acho que sua mãe e toda a família estão esperando por você e seu pai, e a cerimônia já deve estar começando, não é mesmo?
- Você vai entrar com a gente?
- É isso que você quer?
- É. É sim.
- Tudo bem, então.

Entraram na capela em silêncio, ela se manteve sempre um passo atrás dos dois. A família inteira ali, olhando para ela sem entender nada, ela ali sem saber direito por que. A cerimônia transcorreu tranqüilamente e terminou bem rápido. Rachel acabou relaxando. Ela devia saber que nunca podia baixar a guarda na presença da Maria.

- Será que eu vou ser mesmo obrigada a tolerar a tua puta aqui hoje, Luís?

Rachel sentiu que ia desmaiar, mas ao invés disso uma fúria absoluta cresceu dentro de seu peito, e, sem saber exatamente como, começou a falar diretamente para Maria, baixo e lentamente:

- Puta, né? Engraçado isso... Daqui de onde eu estou olhando eu só vejo uma puta. A puta que deu para o meu namorado e engravidou dele para forçar um casamento! Você por acaso conhece essa puta, Maria? Pois é, foi essa puta que me humilhou diante de toda a escola, num pátio lotado, na hora do recreio! Foi essa puta que riu da minha cara todos esses anos. E sabe para quê? Para perder o marido justamente para a minha lembrança! Quer saber do que mais? Você é uma puta bem patética e incompetente... Como é que esse homem nunca me esqueceu, hein? Como é que você não conseguiu me tirar da cabeça dele, nem com filho, nem com família!? Isso, minha cara, é o que você devia estar se perguntando, ao invés de vir até aqui me afrontar durante a despedida do teu próprio pai! Eu só estou aqui porque o teu ex-marido me disse não conseguiria passar por isso sem mim, e porque o teu filho me pediu para entrar. Mas é claro que isso nunca ia te passar pela cabeça! Me faz um favor, Maria: nunca mais se aproxime de mim, ouviu? Nunca mais sequer me dirija a palavra! Se há uma coisa de que eu me arrependo é de não ter te feito engolir os dentes... Então não me faça perder a paciência, ok? Não brinque com fogo.

Ela engoliu em seco e deu as costas a uma Maria atônita. Olhou para o menino e disse:

- Desculpe, Marcos. Eu realmente poderia ter me contido, mas eu não quis fazer isso.
- Eu não tenho nada com isso, né?
- Não. Não mesmo. - eles sorriram e se entenderam. Ela continuou:
- Você é um rapazinho muito bacana. Gostei de conhecer você, viu? De verdade.
- Eu também. Você e meu pai vão morar juntos agora?
- Isso a gente ainda não resolveu. Mas eu acho que não tem mais clima para eu ficar aqui, né?
- É. Eu acho que você está certa. O meu pai pode ficar?
- Isso é com ele, ok? Eu vou ficar lá fora, porque as minhas coisas estão no carro dele, mas ele pode ficar, eu não tenho pressa.

O menino a puxou para baixo e deu-lhe um beijo no rosto, agradecido. Ela sorriu e devolveu o beijo. Levantou-se e olhou Luís nos olhos:

- O filho de vocês é maravilhoso, Luís.
- É verdade. E você, me espera?
- Sim. Estarei no carro, ok?
- Claro. Fica com as chaves.

Ela abraçou Luís, e ele se surpreendeu - mas era uma surpresa boa, um alívio depois da tensão dos últimos minutos. Ele não sabia de onde vinha a força dela, mas estava agradecido por aquele gesto. Profundamente agradecido. Ela deixou a sala e foi sentar-se no carro. Tinha ainda alguns minutos antes de poder estar sozinha com ele. Mas não tinha mais dúvidas. Ela tinha tentado fugir, tinha se afastado de todos os amigos comuns, tinha construído novos relacionamentos e até se casado, quando encontrou alguém que a amava, estimulava e fazia feliz. Nunca foi capaz de esquecê-lo, o passado sempre estivera presente, e ela sabia daquilo agora, depois daquele fim de semana com ele. Os anos que passaram separados tinham afastado as vidas, não as pessoas, e eles estavam ligados novamente. Ela sabia das fraquezas dele como homem, mas não podia negar que ele a amasse. De sua parte, nunca havia negado o amor. Tinha calado, isso sim - mas foi a maneira que encontrou para continuar vivendo. Não havia motivos para continuar calada.

Tinham pela frente uma conversa dura, algum tempo para aparar arestas, e um relacionamento para construir. Não seria fácil. Mas talvez fosse a única possibilidade que restava. Ela reclinou o banco do carona, onde tinha escolhido se sentar, e acabou cochilando.

Acordou sobressaltava, com Luís batendo de leve no vidro dianteiro.

- Olá, dorminhoca.
- Oi, meu amor. E aí, correu tudo bem?
- É, dentro do possível... Abre a porta para mim? - Ela puxou a trava imediatamente, e ele sentou-se atrás do volante.
- A gente precisa conversar.
- Com certeza, Lu.
- Chel, o Marcos vai comigo para casa hoje, e talvez tenha que ficar uma semana direto, por causa do inventário e tudo mais. A gente pode esperar mais esse tempo até resolver quem vai morar com quem?
- Opa, muita calma nessa hora, Luís! Você está se antecipando demais, não acha?
- Mas eu pensei... Você veio comigo, disse aquilo tudo para a Maria na maior elegância, foi super doce com o meu filho... Eu fiquei confuso agora.
- Meu amor, não confunda as coisas: é uma coisa a gente ficar juntos, outra a gente ir morar juntos. Acho que precisamos de mais um período de adaptação.
- Mas por que, querida? Eu preciso de você do meu lado. Eu sei o que eu quero há dez anos - acho que há mais tempo, até.
- Luís, isso é precipitado! Você tem que pensar no Marcos, precisa dar segurança a ele. E a mim.
- O que ainda falta para você se sentir segura, Rachel?
- Você precisa ser forte para mim, Luís. Eu sei que para você, ter me trazido aqui foi o supra sumo da força, mas na verdade você não se sentiu forte para estar aqui sozinho - e me pediu ajuda. Eu vim, como estive no teu casamento: como uma muleta. Mas eu também preciso de segurança. Eu preciso ter certeza de que você não vai vacilar mais, que isso aqui é o que você quer, que não vai haver outros deslizes.
- Ah, Chel... Eu não sei o que dizer. Eu entendo a tua posição, mas você não está enxergando a coisa pelo meu ponto de vista! Eu estou me expondo aqui com você! Eu coloquei meu coração na janela! Todo mundo sabe que eu te quero. E ninguém duvida que isso é recíproco. Nem eu. Mas você ainda precisa do cavaleiro de armadura...
- Eu acho que a gente não vai avançar muito assim, a gente só se defendendo. Mas o Marcos não pode esperar. Você me leva para casa?
- Claro. Vou pegá-lo e a gente vai. Você janta conosco?
- Pode ser. E depois vocês me levam para casa.
- Tá bom, tá bom... Sem golpe, juro.

Eles riram e saíram juntos do carro para buscar o menino. Ele era uma criança adorável, e Rachel estava achando que aquilo parecia bom demais... Ele veio até o pai sem protestos, depois de se despedir de todos. A mãe já tinha preparado uma mala com as coisas dele, e não seria necessário ir até a casa da Maria e estar na presença dela nem mais um minuto - o que ela viu como uma benção. Luís se despediu da ex-mulher cordialmente e pegou o filho pela mão. O menino estendeu a outra mão para ela. Ela deu-lhe a sua mão e seguiram, os três, para o carro.

Luís assistia em silêncio, enquanto seu filho conversava com ela as maiores amenidades, como se a conhecesse há muito tempo e fossem íntimos. Por um minuto parecia que a vida dele tinha sido aquela desde sempre, e que eles eram uma família de verdade. Era como estar no cinema, assistindo a uma comédia romântica com final feliz. E talvez fosse isso mesmo, talvez finalmente eles pudessem ter um final feliz. Eles entraram no carro e resolveram ir primeiro ao apart onde Luís estava morando, para deixar as coisas de Marcos e mostrar a casa à Rachel. Depois iriam ao apartamento dela, e combinaram de ajudá-la a preparar um espaguete ao molho inventado - com o que eles pudessem encontrar no armário de mantimentos.

E deixaram de fazer planos ali. O futuro era um mistério que precisavam desvendar, sim. E tinham tudo de que precisavam para fazê-lo. Tinham um ao outro. E tinham todo o tempo do mundo...


(The end)

Estranhamento

Essa mulher que me olha do espelho - eu não a conheço. Ela é muito mais velha que eu, tem olhos profundos e linhas que contam uma história em torno deles. Tem cabelos brancos em profusão brotando-lhe do topo da cabeça, crescendo em comprimento enquanto sua idade avança.

Essa mulher que me olha do espelho - eu a estranho. Ela me olha com doçura do fundo dos olhos, e vejo nela a labareda que incendeia o meu interior. Essa mulher doce é água, mas há dentro dela fogo. Ela carrega o fogo na alma e no ventre, e sua fala suave transparece conteúdos que me são familiares - e tanto me incomodam quanto atraem.

Essa mulher que me olha do espelho - eu a acolho. Ela cuida de mim como eu cuido dela. Há amor em cada passo que ela dá, na maneira apaixonada como se entrega à vida, na forma desprotegida como oferece seu coração. Ela entra na arena, e os leões avançam. E ela espera, sem mover-se um milímetro. Ela sabe que podem dilacerar-lhe a carne, até o coração - mas não podem extinguir sua luz.

Essa mulher que me olha do espelho - eu a amo. Eu sou ela. E ela sou eu.


segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Permanência (parte 5)

Passaram o fim de semana recolhidos ao quarto. Tinham que fazer um esforço enorme para descer as escadas e passar algum tempo entre os amigos, e já tinham acostumado com as brincadeiras da galera, sempre implicando com o sumiço dos dois. Não se importavam. Queriam somente estar juntos, como se aquele hiato de dez anos não houvesse existido, como se tivessem estado juntos todos aqueles anos. Para ambos era como se nunca tivessem se separado. Quando Rachel resolveu deixar cair por terra as resistências, quando Luís resolveu engolir seu orgulho e declarar seu amor a ela - ali a vida dos dois recomeçou de verdade.

Eles não falaram em nenhum momento sobre o que aconteceria depois de terminado o fim de semana. Evitaram tocar no assunto "Maria e Marcos", como num pacto de silêncio não proclamado. Para Rachel era colocar o carro na frente dos bois - ela sabia que não tinha nada com aquele assunto, era a vida dele que estava pendente. A dela já estava resolvida, era uma mulher livre, vivia sozinha e nada devia a ninguém. Para Luís era um assunto desnecessário. Quando saiu de casa, na semana anterior àquela viagem, tinha levado consigo apenas uma pequena valise com algumas roupas e objetos pessoais. Foi para um Apart próximo ao seu antigo endereço, só para ficar perto do filho, e mandou alguém buscar suas coisas dois dias depois. A separação era fato consumado. Ele queria ser feliz novamente. E o único lugar onde queria recomeçar era nos braços de Rachel.

Ficaram entre os lençóis daquela cama, fazendo amor. Completamente despidos: pele e alma, desprovidos de disfarces. Podiam finalmente tocar um no outro: carne e coração. Mais que seus corpos, partilharam a intimidade plena do desnudar-se, de estar diante do outro, o outro como espelho, espelho da história que tinham para construir juntos. Mas não ousavam tentar recuperar o fio da meada. Queriam começam uma história nova, trazer do passado somente as lembranças felizes. A ingenuidade pode atingir qualquer faixa etária, e eles estavam se permitindo serem ingênuos. Queriam acreditar em finais felizes. Queriam driblar o passado e sair ilesos, como crianças travessas que tocam a campainha do vizinho e saem correndo tão rápido que não são descobertos.

O passado dos dois era doloroso, havia ressentimento entre eles - tanto que ninguém entre os amigos podia imaginar que os veria juntos outra vez. Mas o passado os espreitava, e estava tocaiando na próxima esquina - aquilo não podia durar para sempre. E durou até domingo, antes do café da manhã. O telefone do quarto tocou estridente, e Rachel teve um pressentimento ruim.

- Lu, é melhor atender.
- Ah, Chel, não é nada! Deve ser a Lena chamando a gente para descer...
- Não, Lu. Atende, vai. Acho que é para você.
- Nossa, Chel, tá bem...

Ele atendeu e a realidade caiu sobre eles de súbito. Ele se empertigou na beirada da cama, respondendo ao interlocutor com monossílabos. Sua expressão facial demonstrava somente cansaço, e ele não discutia nem argumentava. Só aquiescia. Desligou dois minutos depois. O grave silêncio entre eles gritava, e ecoava nas paredes.

- Quem era, Lu? - Rachel quebrou o silêncio, constrangida.
- É a Maria que está lá embaixo, Chel. Ela veio me buscar.
- Por quê? Aconteceu alguma coisa com o Marquinho?
- Não. O pai dela morreu.
- Você precisa ir.
- É, preciso. Mas quero que você vá comigo.
- Acho que é imprudente, Luís.
- Acho que, se você não for comigo, ela vai achar que eu vou voltar para casa. Eu não vou, Rachel. Mesmo que você não esteja do meu lado, mesmo que não queira fazer parte da minha vida. Eu não posso ser arrastado de volta para aquela história - e eu preciso de você agora. Por tudo que a gente viveu desde sempre, meu amor.
- Lu, a Maria vai me detonar - e você sabe disso.
- Eu sei também que você sabe se defender. Por favor...

Levantaram e vestiram-se rapidamente. Juntaram suas coisas dentro das malas de qualquer jeito e desceram juntos, as mãos dadas, numa última tentativa de simular normalidade. Nada mais seria normal entre eles, e a ingenuidade que eles evocaram evaporou-se instantaneamente do momento em que puseram os pés na recepção. Maria estava de pé, muito digna, vestida de preto, os olhos escondidos por enormes óculos escuros e um chapéu de abas largas sobre a cabeça. Era a imagem da estrela hollywoodiana enlutada. Mas toda aquela classe desapareceu no instante em que ela viu Rachel ao lado de Luís.

- Eu não acredito que você teve a audácia de vir até aqui com o meu marido! Você não tem vergonha, não?
- Eu tenho, Maria. E você também devia. Afinal, você acabou de perder seu pai...
- Você é muito cara de pau, hein, garota? - Luís resolveu intervir.
- Olha, Maria, fui eu que pedi à Rachel para vir comigo. Eu quero que ela esteja ao meu lado. Nós já conversamos longamente sobre isso.
- Acontece que é o sepultamento do meu pai, e você vai lá com a tua piranha! É muita falta de respeito pelo teu filho!
- Olha só, Maria, eu não admito que você fale assim da Rachel. Isso não é verdade, e você sabe que está se excedendo.

Rachel preferiu se afastar dos dois. Ela não queria ofender a outra, sabia o que era a perda que ela estava enfrentando - mas não tinha sangue frio suficiente para tolerar aquilo por muito tempo. O passado dos três condenava Maria, mas por uma tendência à benevolência e ao seu orgulho ferido, Rachel sempre se furtara de dar o troco à outra. Talvez tivesse chegado a hora de acertarem as contas.

Quando Rachel e Luís namoravam, Maria era a ex dele. Rachel estava apaixonada demais para perceber que eles ainda mantinham algum vínculo. Em sua mente eles estavam sempre juntos, e não havia tempo para que ele ficasse com qualquer outra garota. Mas ela estava enganada. O filho dos dois, Marcos Vinícius, fora concebido durante o namoro dela com Luís, e também o motivo do fim do relacionamento e do casamento deles. Ela podia lembrar com detalhes de como Maria a humilhara diante dos colegas de escola. Ela estava cheia de orgulho, estava grávida do seu namorado, e estava ali, de pé no centro do pátio, proclamando aquilo aos quatro ventos, ridicularizando Rachel de todas as formas possíveis. Ela gritava que Rachel não era mulher suficiente para satisfazer o Luís, e que agora ela estava carregando a prova concreta das puladas do seu namorado, para quem quisesse ver. Rachel simplesmente se levantara e saíra de cena. Passou quinze dias sem ir à escola. E voltou ao convívio dos colegas como se nada houvesse acontecido. Durante aquela semana, Luís fora todos os dias à sua casa, e tentara convencer a mãe dela que o deixasse subir a conversar. Dona Luíza dizia somente que Rachel não estava bem disposta, que eles poderiam conversar numa outra oportunidade. A verdade era que Rachel estava prostrada, num estado de choque que a impedia de sequer levantar-se da cama ou comer qualquer coisa. Ela nada disse em casa sobre o que acontecera entre eles - dissera à mãe somente que Luís tinha morrido para ela - e fora necessário chamar o médico em casa para determinarem o que fazer a respeito de sua recuperação. Todos temiam que ela viesse a perder o último ano do curso, que não pudesse mais frequentar à escola, que não tivesse condições emocionais para continuar dividindo o mesmo espaço físico com o ex-namorado. O pai esbravejara, dissera que o rapaz não prestava, que ele nunca tinha aprovado o tal relacionamento - mas a mãe apenas calou e fez a vontade da filha. Silenciou o marido e deixou que Rachel vivesse sua dor.

Ela entrou em sala de aula como se não tivesse passado duas semanas ausente, entregou um atestado médico ao professor e sentou-se na primeira fileira, como de hábito. Luís passou todo o tempo da primeira aula tentando chamar-lhe a atenção, mas Rachel estava como surda. Ele ainda tentara convencê-la a pelo menos conversar com ele. Ela lhe dissera somente que não havia nada para falarem, que dali por diante eram somente colegas de classe.

Ele ainda insistiu por mais de três meses, e então chegou o mês do casamento. Ele entregou-lhe uma carta, longuíssima, explicando - como se houvesse explicação - tudo, dizendo que tinha sido um imbecil e pedindo a ela somente duas coisas: que o perdoasse - e que fosse sua madrinha de casamento, ao lado de seu primo Casimiro. Dizia que só poderia passar por aquilo se ela estivesse ali, com ele. Ela somente olhou para ele e perguntou se havia algum acordo a respeito de cores de vestidos, se haveria um ensaio para a cerimônia e a que horas todos deveriam chegar. Ele mal podia encará-la, sentiu nela um profundo descaso por tudo o que ele tivera o trabalho de escrever naquela carta. Entregou-lhe um papel com dois números de telefone: o da cerimonialista e o do tal primo.

E ela estava lá, no altar, assistindo à cerimônia, como havia prometido a ele. Não transparecia nenhum sentimento - parecia até uma pessoa estranha, alheia às famílias e aos noivos, como se fosse uma atriz convidada para ocupar o lugar de uma madrinha ausente. Não compareceu à recepção, mas entrou na fila dos cumprimentos e beijou os noivos, desejando-lhe felicidades.

E nunca mais quisera fazer parte daquilo. Era uma história sórdida, da qual não quisera participar à época, e da qual nunca fizera parte. Era um problema deles. E ela preferia que continuasse assim. Até agora, até aquele fim de semana. Parecia que finalmente o Passado conseguira dar-lhes o bote. E dessa vez tudo viria à tona - à sua revelia.

- Rachel, por favor. Rachel, onde você vai?
- Eu vou deixar vocês conversarem, Luís. Essa história não é minha.
- Mas é, Rachel! Você não pode fugir disso para sempre.
- Posso sim, Luís. Eu fugi disso por dez anos. Não estou disposta a enfrentar nada agora. É problema de vocês.
- Não Rachel! É problema nosso! Se você não tivesse me abandonado, se não tivesse me impedido de me aproximar naquela época, essa história poderia ter sido diferente... - ela não permitiu que ele continuasse:
- Ah é, Luís? E como seria diferente? Você ia abandonar a Maria grávida para continuar namorando comigo, como se nada houvesse acontecido? Ou você pretendia fazer um filho em mim, para não ter que casar com ninguém? Me diga agora de que maneira essa história poderia ter sido diferente?
- Eu não queria casar com ela, Rachel! Eu podia ser pai do Marcos sem ser marido dela!
- Hoje em dia pode ser, mas naquele tempo? Você pode se enganar o quanto quiser, querido - no final não faz diferença! Se você não quisesse casar com ela não precisava de mim do teu lado para dizer esse não - mas precisou de mim para dizer sim!
- Eu queria estar com você ali, você não entende até agora, mesmo depois de todo o fim de semana?
- E você acha que só porque a gente se ama você está redimido das tuas dívidas, Luís? A vida é um cobrador amargo: ela te deixa atrasar, mas sempre cobra juros altíssimos!
- E eu vou pagar para sempre por um erro que eu cometi há quase 11 anos atrás?
- Um casamento até pode acabar, Luís. Mas um filho é para sempre. Foi por isso que eu nunca quis ter filhos, e pelo mesmo motivo o meu casamento não funcionou. Ele entendeu que eu não atrelaria a minha vida à ele - e nos separamos.
- Rachel, não faz isso comigo, por favor! Eu precisava de você no altar naquele dia, eu preciso de você agora! Eu chorei durante toda a festa, era como se eu tivesse morrido quando você apertou minha mão naquela fila de cumprimentos. Como você consegue ser tão fria?
- Fria?! Fria? é isso que você pensa, né? Que eu sou uma pedra, que não sinto nada! Só que eu confiei em você! Confiei cegamente - e você me traiu com a tua ex, fez um filho nela e deixou que ela me humilhasse diante de toda a escola! O que exatamente você queria que eu fizesse? Que eu cortasse os pulsos? Que tomasse 30 comprimidos de valium? Que tivesse um ataque histérico, me embolasse com ela no meio do pátio, pegasse a Maria pelos cabelos e fizesse ela retirar o que tinha dito? ERA VERDADE, Luís! Ela estava certa - e eu errada, enganada, iludida, crédula. Você perdeu e eu perdi. Ela ganhou, e fim. Eu precisei juntar toda a minha dignidade para voltar à escola e terminar o ano junto com a turma. Precisei de todo o auto-controle do mundo para te olhar nos olhos de novo e aceitar aquele pedido desumano, de que eu fosse tua madrinha de casamento. E precisei evitá-los por todos esses anos. E mesmo sendo inocente, a vida está aqui agora, me cobrando isso também.

Ela chorava como nunca, como se toda a dor do mundo estivesse transpassando seu coração em um átimo. Ele não sabia o que fazer, o que dizer. Ela era a mulher da sua vida. Ele já a havia perdido uma vez. Não podia perdê-la novamente.

- Rachel, por favor, eu te amo! Você é a única mulher do mundo para mim...
- Eu sei que você me ama, só não me diga mais isso, porque desse jeito não faz diferença! Eu quero um amor que eu possa levar comigo.
- Eu te prometo que você vai poder me levar contigo, meu amor. Eu te prometo que tudo vai acabar bem. Vem comigo, eu estou te implorando. Já que a vida está cobrando isso, eu pago. Pago o preço que for - se você vier comigo.

Ela ficou ali, olhando para ele, as lágrimas turvando a sua visão. Ela sentia que podia confiar nele, mas já tinha se enganado antes. Ele já tinha falhado com ela - e tinha sido ao terrível, algo que lhe custava até hoje noites em claro e horas de terapia. Ele parecia resolvido. Agora era a vez de ela se decidir.

(to be ended...)

As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...