sexta-feira, 20 de julho de 2012

Dejà vu

Ele procura um rosto. Diariamente, automaticamente, ele busca. Tornou-se um ato reflexo: entra num ônibus olhando a todos, dentro da cara, procurando. Por vezes é até questionado pelas pessoas, e não foram poucas as vezes em que foi convidado a retirar-se de lugares públicos, como exposições e bibliotecas - tudo por causa dessa mania.

Tudo começou a quatro anos, quando foi trabalhar na redação do folhetim sensacionalista da cidade onde vivia desde a época do curso de jornalismo. A correria diária, o cuidado necessário ao equipamento de trabalho - era fotojornalista - as repetidas noites insones por conta de algum crime ou acidente que precisava constar na pauta de amanhã - ele ficava confinado no quarto escuro, e lá passava dias, semanas, já havia passado uma quinzena sem dar as caras na pensão da Valenciana - e a velha senhora acabava batendo à porta da redação - o que, por sua vez, arrancava gargalhadas dos colegas e o tornava alvo fácil das brincadeiras da equipe do Vidal - que era seu repórter-chefe. Era um tal de "olha que assim a velha não consegue dormir!" e "vai acabar te trocando... Mulher não tá fácil não, Reginaldo, pega leve com a velha, vai lá, dá uma fungada no cangote dela..." Hahaha... Eles nunca desistiam, mas ele nem se importava. No fundo, aquela lenga ajudava, parecia fazer o tempo passar mais depressa, e nun piscar de olhos, completava seu primeiro ano de formado e empregado do jornal.

Um dia como outro, o telefone toca mais uma vez antes do despertador - bem antes, já estava tornando-se algo habitual - e a voz arrastada do Vidal dita um endereço:

- Rua das Flores, 35. Conhece?
- Não. Devia?
- É o puteiro, Reginaldo. Claro que devia. Tu é viado?
- Porra, Vidal, num fode, cara! Vê se eu sou homem de freqüentar puteiro?!
- Ah, é. Me desculpa, sua excelência... A velha Valenciana te esquentou a costelinha essa noite, filhão? Pára de resmungar e toca prá lá. A coisa foi feia, Naldo. Te arranca!
- Tô indo...

Na hora em que desligava a merda do telefone, logo lhe ocorriam duas ou três respostas malcriadas e perfeitas para o infeliz - geralmente algo que pusesse a mãe do Vidal no meio - mas ele sempre achava melhor que não lhe tivessem ocorrido na hora. Do jeito que o chefe era, na certa iria gozá-lo ainda mais, ao invés de se ofender. Além disso, daquela vez havia alguma coisa no tom de voz do Vidal que inspirava apreensão - no mínimo. O que poderia ser? "Mataram alguma puta, isso é certo!" e, pensando nisso - para espantar dali o tal nó na garganta - tocou para a Rua das Flores...

Chegou de cara para o crime - e era mesmo assassinato. Já vinha no táxi montando a câmera, tinha o hábito de descer da condução já clicando, dizia querer um número bem grande de opções - acalentava no íntimo o desejo de montar um livro que documentasse sua trajetória, embora soubesse que se continuasse muito tempo naquele tablóide poderia dar adeus às suas aspirações superiores - e o redator-chefe era um sanguinário filho da puta que adorava primeira página à cabidela, pingando sangue vivo - que coagulado nem vende tanto jornal assim.

Só quando a objetiva pousou sobre o defunto ele entendeu o tom de voz do Vidal ao telefone, vinte minutos antes: o morto era seu Arlindo do cafezinho, o ambulante mais antigo e querido da cidade. Não havia em Taquarais quem não conhecesse o Arlindo. Aquilo embrulhou seu estômago de tal maneira que ele precisou de muita coragem para não vomitar ali, na cena do crime. Correu para a sarjeta e verteu fora a ceia que dona Valenciana tinha lhe preparado na véspera. E dali foi ao encontro do Vidal. Sem ter na câmera uma foto para contar a história - ainda.

- Porra, Naldo, logo você, que não perde um clique! Volta lá e bate a foto, depois a gente conversa...

Ele voltou, as lágrimas ali, rolando e embaçando o visor, e ele tentando ser profissional. Lembrou da primeira vez que viu o seu Arlindo. Ele estava com o carrinho de café na rodoviária naquele dia, quando ele chegou a Taquarais. E lhe deu uma bala junto com o café. "É de brinde, para te adoçar a boca! Seja bem-vindo, meu filho! Essa cidade tem visgo - tome cuidado, hein? Não vá se agarrar aqui..." Sempre sorridente, sempre com uma piada na ponta da língua - e um gracejo para cada menina que chegava para estudar na Estadual... Naquele momento, ele pensou que já fazia algum tempo o sorriso deixara os lábios do Arlindo. E agora era definitivo. Ficou terrivelmente triste, e curioso. E voltou para junto do Vidal, dessa vez com a câmera cheia de fotos batidas de vários ângulos, e a cara de interrogação.

- Tá na cara, né, Naldo! Isso tem a ver com a filha do Lindo, meu filho... Tô vendo pela tua cara que você nem sabe do que eu tô falando, né não, excelência? Ô Naldo, a filha do Lindo virou puta... Era por isso que o pobre diabo andava todo cabisbaixo, não reparou não?
- É, eu reparei sim... - e como ele não fosse um cara passivo ou lacônico, Vidal percebeu que estava abalado, e até mudou o tom da conversa.
- Ele vinha a algum tempo assuntando o paradeiro da caçula pela cidade, mas ninguém ia contar uma coisa dessas ao homem, né? Todo mundo adorava ele, meu filho! Só que pelo jeito ele acabou pegando a safadinha no ato... E sabe lá com quem ela estava deitando... O resultado taí, agora é melhor a polícia investigar direitinho, que nessa cidade esse assassinato não vai ficar impune, ah, isso não vai mesmo! - e então, como um raio, a pergunta ocorreu a ele. Talvez por ter percebido que não tinha nenhum outro fotógrafo ali ainda, só ele e o Francês, da polícia:
- Como foi que tu chegou aqui tão rápido, Vidal? Não tem mais ninguém, só a gente...
- Aí é que está, meu filho. Eu tava comendo a cafetina...

Voltou para casa antes de ir para a redação. Nunca tinha feito isso antes. Os rapazes diziam - e ele se orgulhava - que ele tinha estômago forte, que nunca nunquinha se abalava com nada do que via. E já tinha visto coisas do arco da velha: gente enganchada que nem cachorro no cio, gente morta em acidentes terríveis, sangue por todo lado - "nada abala o Naldo", eles diziam. "Isso nasceu para tirar foto de desgraça!" Mas aquele crime tinha conteúdo emocional, o defunto não era qualquer um que ele nunca tinha visto. Era o Arlindo. E tinha sido coisa limpa, o assassino deu dois tiros: o primeiro, no quarto, pegou só de raspão. O segundo, já na soleira na porta da rua. E Arlindo caíra ali, na porta de um estabelecimento de má fama - logo ele, um homem de excelente reputação.

Mais tarde, já refeito do susto, porém não da tristeza, pôs-se a revelar as fotos. Tentou fazê-lo com grande distanciamento, tarefa dificílima, e percebeu que valorizava mais aquele homem do jamais imaginara. Para manter o profissionalismo fez tudo mecanicamente, a cabeça vazia. Na mesa do Vidal, antes da reunião com o redator-chefe, espalhou as fotos com displiscência, e nem sequer olhou-as uma segunda vez.

- Onde é que você vai, Naldo?
- Ao banheiro, preciso pedir agora?
- Arre, segura tua onda, meu filho! Tá todo mundo aqui na mesma merda que você, todo mundo meio órfão de pai e de amigo, então pode segurar a peruca e ficar aí mesmo.
Engoliu em seco e voltou para junto da mesa, sem dizer palavra.
- Melhor assim... Vamos fazer uma pré-seleção, ok?

A equipe reunida em volta do seu trabalho e ele querendo fugir dali, todos dando palpite sobre os melhores ângulos... E ele se pegou fazendo o oposto do que fizera até então - com a lupa na mão direita, analisava em detalhe cada foto, procurando entre as pessoas clicadas junto ao corpo alguma que pudesse ter qualquer relação com aquilo. E ali, durante o trabalho, começou sua obsessão: na pequena aglomeração à porta no prostíbulo, um rosto familiar. Ele não sabia quem era a menina de cabelos escuros caíndo sobre os olhos, sobre o rosto - longos cabelos negros, como a Iracema de Alencar. Nem virgem, nem Iracema: era a filha de Arlindo. Uma menina quando a conhecera - devia ter então uns 12 anos - agora era aos seus olhos uma mulher. Mulher da vida. Aquilo perturbou Reginaldo profundamente, e deixou nele aquela marca - procurar o rosto, um rosto na multidão.

Passou a pensar em como se sentia aquela moça, sabendo-se culpada da morte do pai. Pois assim fora apurado pela polícia local: o Arlindo descobriu o paradeiro da filha, foi até o puteiro armado com uma .38 não registrada, entrou pela porta gritando pela moça e pegou a pobre no horário de expediente - e em posição de sentido. Aquilo transtornou o velho, ele partiu para cima do cliente, o homem lutou com ele, tomou-lhe a arma e atirou contra o velho. Tudo bem explicadinho, tintim por tintim, pela Madalena - observe bem a ironia do nome da moça. É, era esse o nome da filha do Arlindo: Madalena.

Tudo ficou resolvido, o homem se apresentou na delegacia no mesmo dia, a justiça considerou aquele um crime de legítima defesa, e Madalena sumiu na poeira da estrada. Reginaldo ainda tentou falar com ela no dia do julgamento, mas foi vã a tentativa - ela levantou-se e saiu do tribunal como um relâmpago, mal pronunciada a sentença.

Desde aquele dia, ele a está procurando. Sabe que não vai encontrá-la. Ela jamais voltará a Taquarais. Para o que voltaria? Os irmãos e irmãs nunca a perdoariam. As pessoas da cidade olhariam para ela sempre de soslaio, sempre lembrando, sempre acusando. Fizera bem ela, de seguir o caminho que resolvessem seus passos. Começar nova vida, inventar uma história, um passado bem triste, que ocultasse o real motivo daquela infelicidade sem fim dentro dela, transbordando por seus olhos - para, quem sabe, poder ser feliz de novo. No fundo, talvez soubesse que era isso que o pai queria para ela - felicidade. Talvez, ficasse ela ali em Taquarais, a morte do seu Arlindo tivesse sido vã, e ela jamais teria chance de encontrar a tal felicidade que julgava ser o que o pai desejava para ela. Ou talvez tivesse aceitado algum convite de algum cliente, e estivesse agora num apê bonitinho de algum bairro suburbano da capital, teúda e manteúda de algum figurão da TV...

Ele nunca saberia. Nunca mais seus olhos redondos e assustados no meio da multidão. Nunca mais a oportunidade de consolá-la por sua perda - perda de que todos se apoderaram, ele inclusive. Nunca os cabelos negros descendo por seus ombros, suas costas nuas, registrados por sua objetiva. Nunca mais.

Mas não! Não desistiria de buscar. Talvez nessa busca ele encontrasse o que perdeu quando viu o corpo do seu Arlindo ali, estirado no calçamento. Talvez nos olhos dela estivessem as respostas às perguntas que nunca deixara de fazer. Mesmo agora, quase três anos depois do acontecido, quando as feridas cicatrizaram, quando a dor passou a dormência, e a dormência se transformou naquela pontadinha que notifica seu dono que o tempo vai mudar...

Ele procura um rosto. Constantemente. Sabe que sempre vai buscar.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Dipshit around the world

Então, pessoas... Coisas incríveis ainda acontecem por aqui. Apesar de o ritmo ainda não ter engrenado como eu gostaria, um dos contos que publiquei neste blog foi traduzido para o inglês e está sendo usado para divulgar o trabalho dos novos contistas brasileiros por aí.

Quem tiver interesse em ler/ver como ficou pode encontrá-lo aqui. O original em português está aqui e aqui.

E, se você gostar desse antiguinho, que tal visitar os arquivos deste blog? Fica a dica.

As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...