quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

A tese dos quatro

Sentada no grande sofá de couro branco, na sala de estar do apê que o Sr. D. botou para ela, Cristina resolve finalmente dissertar sobre sua mais arraigada tese:

"Acredito que, para cada mulher boa de verdade, existem quatro homens." Ela diz isso com uma tranquilidade encantadora, como se fora assim, uma verdade absoluta, uma daquelas coisas que todo mundo sabe - ou pelo menos deveria saber.

"E eu sou uma delas mulheres boas de verdade" - ela continuou, desse jeito. "E não pense que eles chegam assim até você, mesmo se você for tão boa quanto eu! Você precisa trabalhar, menina, se concentrar nas suas necessidades como mulher, e pegar aquilo que é seu por direito! Eu sempre acreditei nisso, que a gente precisa saber quem é e do que precisa para ser feliz. Não existe isso de ir descobrindo no caminho, conforme a vida acontece! Você tem que estar no controle da sua vida."

"Olha só para mim, agora. Estou no auge da minha vida, e já completei a minha cartela: O Sr. D. é o meu provedor. Essa categoria é a mais importante - esse é o cara que banca as minhas extravagâncias, e os meus alfinetes também. O melhor de tudo é que ele nem vai me assumir - ele é obviamente casado - nem me deixar, porque comigo ele se sente no controle - e eu não vou a lugar nenhum. Mas também por isso ele não pode me exigir grandes coisas. É claro que teoricamente eu estou sempre a disposição dele, mas na maior parte do tempo é ele que não pode dar conta de mim - e é nesse espaço entre estar a disposição dele e não ser dele de verdade que eu encaixo os meus outros três."

"O Renan é o meu amigo, meu companheiro de festas, idas ao shopping, porres homéricos e baladas feéricas - ele me ajuda a resolver que roupa fica melhor para um evento beneficente ou um jantar de gala, e é sincero - ele diz na lata se acha que ficou ruim! E ele me escuta - ele é praticamente meu terapeuta, sem ser. Ele enxuga as minhas lágrimas. Por vezes, ele chora no meu lugar! Ele é o meu amigo. Está bem você ter amigas mulheres - mas elas nem sempre tem uma perspectiva clara das coisas do ponto de vista dos homens. E sejamos francas: um cara que quer te comer não é isento, ele sempre filtra suas opiniões a seu respeito para manter as possibilidades abertas. Um amigo de verdade pode até transar com você - e eu até transo com o Renan às vezes, quando dá vontade - mas esse não é o principal no seu relacionamento com ele. Ele precisa confiar em você, e você nele. Eu tive outros dois amigos antes do Renan, mas com ele alcancei meu objetivo para essa posição no meu rol de quatro. O amigo não é um papel fixo, como o provedor. Aliás, achar o provedor é o primeiro passo! Você precisa fazer isso antes dos trinta, meu bem - enquanto o seu valor de mercado é alto. Depois, o que há disponível é refugo - e você mesma passará a ser vista dessa forma. Paciência. Já o amigo pode mudar - mas ele é essencial. Mantém a tua sanidade..."

"E há o amante. Sim, com esse o lance é sexo - o cara tem que ser tarado, louco por você, e também precisa entender que você tem necessidades que ele não precisa, nem deve querer, prover. É a posição mais difícil de manter, mas dá para passar algum tempo sem ter um amante enquanto o teu provedor ainda tiver vitalidade - e o Sr. D. é mesmo uma foda sublime. Não, não insista - eu não direi seu nome. Na verdade, até durante a transa eu o chamo assim. Confesso que o faço porque ele fica mais aceso, com mais tesão ainda... Anyway, ele me satisfaz plenamente, então o amante é importante, mas não essencial - ainda..."

"O meu amante de hoje é um cara do meu passado, com quem encontrei na saída do cinema há alguns meses. Tivemos um affair, mas ele era do tipo casador, e eu sempre estive focada nas minhas necessidades... Acabou, ele se casou, descasou, está num relacionamento no momento - mas sou sua válvula de escape. E ele é a minha. Com ele eu faço coisas que não consigo fazer com o Sr. D., ou com o Renan. Ah, um detalhe importante: o Sr. D. sabe da existência do Renan, e acha que ele é gay. Mas ele não pode nem sequer imaginar a existência do Júlio César..."

Bem nesse ponto ela ri alto, mas de si mesma do que por estar achando graça em alguma coisa. E se perde um pouco. Fica olhando para o teto, observando as sombras que se movem, projetadas pela luz do Sol bloqueada pela cortina de voil colorida e diáfana. Respira fundo, e continua:

"Onde foi mesmo que eu parei? Ah, sim, o amante - é claro. Até os 40, 45 dá para trocar de amante com uma certa tranquilidade - e podem até ocorrer algumas surpresas interessantes. Tenho uma amiga que se separou recentemente e descobriu um novo mundo nos clubes de sinuca do subúrbio! São tantos rapazes mais jovens que ela, loucos para aprender truques novos nas mãos de uma bela mulher madura... Entretanto, até esse encanto da maturidade fenece - e é necessário reconhecer a própria decadência para estabelecer um vínculo com o amante da época. E neste vínculo deve estar explícita a natureza desta relação. Ajuda muito se o cara for meio cafajeste, ou então teu contemporâneo. Assim, ele vai te entender, e atender as tuas necessidades: ele vai realizar a natureza da troca ativa que existe entre vocês, e isso vai ajudá-lo - e a você - a aceitar o fato de você ter outros homens transitando nas outras esferas da tua vida... A essa altura, o provedor já declinou também - e você precisa ter feito um pé de meia, senão... Bem, a idéia geral é que, se o provedor morrer - melhor dizendo, quando isso acontecer - você já possa continuar a vida sem substituir essa figura. E é preciso também tomar cuidado para não se envolver demais com amantes muito cafajestes. Esses costumam ser os mais gostosos, os que te deixam com mais tesão - e geralmente, são os que se comportam como perfeitos gigolôs! Querida, vai por mim: o meu pé de meia é meu, e eu não vou dilapidar meu patrimônio sustentando o pau alheio!"

Mas uma vez ela se perde. Percebo que provavelmente já foi envolvida numa história como essa, e, como é uma mulher inteligente, conseguiu se desvencilhar - mas não sem algum dano. Aquelas linhas finas ao redor de seus belos olhos amendoados, tão profundos e verdadeiros, se pronunciavam mais enquanto ela falava dessa possibilidade. Talvez tenha acontecido mais de uma vez - mas ela é um tubarão-sereia: é o predador mais topo de cadeia que já existiu. Não cairá assim facilmente nas armadilhas do amor.

"Cristina, você já enumerou três tipos de homem. Na sua tese, no entanto, você falou sobre quatro. Quem é o quarto homem?"

"Você é atenta. Eu gosto de você." Ela me sorri, aquele sorriso perfeito de pérolas adamascadas - e eu retribuo seu sorriso.

"Anjinho, eu vou te dizer: o quarto é o Amor. Ele é o homem que você deveria evitar por toda a vida, mas - paradoxalmente - resolve ser dele para o resto da vida." Ela ainda sorri, mas percebo uma lágrima acumulando-se no canto externo de seus olhos. Ela luta, esforça-se para não piscar, para impedir que aquelas lágrimas escorram e borrem sua maquiagem - mas é inútil. A predadora é uma presa também, do tipo que é mordida e envenenada, e consegue escapar para contar a história. Mas passa toda a vida procurando seu quase algoz - seu quase assassino.

Ela continua. Altiva, corajosa. "Eu amei somente uma vez. E fechei meu coração para isso. É a coisa mais bela que se pode vivenciar - e também a mais insuportável dor que se pode experimentar numa vida. Se percebo que vou sentí-lo novamente - o amor - desvio meu olhar e a atenção para outro ponto, forço o momento a perder-se na escuridão. E ainda assim acredito que uma mulher não pode considerar-se plena ou feliz se não tiver amado e sido amada por alguém. Reciprocamente, perdidamente."

"Eu estava na faculdade naquela época - foi um pouco antes que conhecer o D. Era só uma menina, inexperiente e tola. E ele era tudo o que um homem pode ser - e era ainda mais. Ele tinha uma luz, uma qualidade superior, um talento para as artes. Era um anjo. E um demônio. Ele me viu, e se aproximou de mim com uma intenção apenas. E sua intenção se realizou plenamente. Eu fui sua, somente sua, do momento que nossos olhos se encontraram até hoje. A cada lembrança se renova em mim o amor, a dor, a posse, a perda - a perda de algo que jamais tive. Ele quis ser meu, mas seu desejo foi menor que seu medo de entregar-se. E foi somente ele que eu quis. E foi."

"Você sabe de seu paradeiro?"

"Ora, querida" e seu olhar tornou-se tão intenso quanto vago "ele está sempre comigo. E tem meu coração nas mãos, entre seus dedos cruéis - e ele se diverte em apertá-lo com força, e amassá-lo, de quando em vez..."

Ela deu a entrevista por encerrada. "O Sr. D. pode chegar a qualquer momento, e preciso me refazer, menina. Você me perdoa? Quer mais alguma coisa? Acha que será preciso continuarmos uma outra hora?"

Agradeci, disse-lhe que entraria em contato quando resolvesse, e deixei o apartamento - e a mulher. Ambos sós, com seus pensamentos nas sombras - e por um instante foi como se pudesse vislumbrar, nas projeções do Sol no teto da sala de estar, o rosto de seu amor de ontem. De sempre.

Aquela mulher tem tudo o que sempre desejou. Mas jamais pode ter o que mais quis.



sábado, 23 de janeiro de 2010

Tramp

A fina malha da minha vida se esgarça
E vejo - através do véu das minhas verdades
A mentira que me tornei.

Quantas delas ainda valem,
E quantas já se transformaram em passado?
História e mentira
Se confundindo eternamente
- pois trançadas no tear da vida, constituindo a mesma trama.

Desgastada pelo uso
desbotada e surrada
A mentira - verdade reeditada
volta à moda:

Stoned lies wear.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Underfed

Recolho as migalhas de amor que caem da tua mesa - diligentemente, sem pressa. Na constância deste ato reside a cadência da minha vida. É delas que se alimenta esse meu lado obscuro, andarilho e vadio, e ele vive mal humorado, irritado e triste - porque está sempre faminto.
Me alimento de migalhas, enquanto você se farta de amor, outros contigo. A família tão perfeita, santificada pelo banquete constante; a lealdade parasitária dos amigos, dos colegas de trabalho, dos vizinhos... Todos eles drenando tua energia vital, enquanto você se esforça para impedir que as tuas migalhas cheguem até mim...
Quantas delas você me sonega, quando passa o papel absorvente sobre a toalha do jantar, quando chega antes de mim com a vassoura e a maldita pá e as lança ao lixo? Eu posso viver muitos anos, posso ter só mais uns mil dias, posso perder o rumo dessa prosa e mudar de assunto - e se isso acontecer, quem vai se importar de recolher essas pobres migalhas? Só eu preciso fazê-lo: você se dá a todos graciosamente, generosamente - dá de si o que tem e o que lhe fará falta! - mas para mim, negará até essas migalhas, enquanto puder.
E, quando te faltarem forças, quando te drenarem até que reste um quase nada qualquer, quando de ti pouco houver de reconhecível, você virá a mim - e eu, mendiga e suja, faminta e fraca, ainda tirarei de minha boca o que não tiver para entregar! A seiva lacrimejante e óbvia da minha adoração de folhetim, essa mentira que alimento de lembranças mofadas - essa vai ser tua salvação, e o meu declínio.
Enquanto estiver ao meu lado, tudo o que há de verdadeiro e puro e impossível será teu. Mas até isso durará um átimo. Eu posso estar faminta, e estar à morte, mas qualquer colherada mal cheia de meu amor é amor demais. E em pouquíssimo tempo, lá se vai o moribundo - mais vivo do que nunca, do que ontem, quando bateu à porta e deitou na minha cama, e nem fez amor comigo, por fraco demasiado - lá vai o renovado, distribuir por aí o que recebeu na casa da miséria.
É assim por não haver outra maneira. Se houvesse, se eu a encontrar... As migalhas se acumularão em outro lugar.

Cinema mudo

Ela estava tão cansada...

Fora uma semana árdua, de trabalhos pesados e extenuantes - tanta coisa a fazer, tanto para pôr no lixo, Tanto lixo para pôr em ordem, tanta resolução ainda antes do momento da despedida - e ela, que sempre se soubera uma insone, vinha dormindo o sono dos inocentes. Sentia-se vivendo uma existência concreta pela primeira vez - era como se a história que trilhara até ali fosse etérea, virtual - pela força do contraste entre as realidades: agora e então.

Ah, a vida simples! Pela manhã, para o café, nada além de pão com manteiga e o bom e velho preto. Almoço frugal e depois, só a sopa na hora do jantar. Água fria para banhar-se e cama para dormir - nunca mais para fazer amor. O amor que existisse no mundo estava no passado, já fora todo feito, realizado. Restava somente a contemplação do amor manufaturado-pretérito. Os artífices do passado viveram tempos mais auspiciosos. Hoje era em meio à sombras que ela deslizava, e não havia para ela amor que não multicolorido. Amor em grayscale não era senão um simulacro, um invólucro mal acabado para o verdadeiro amor.

O que mais lhe surpreendia era que o amor mais colorido que jamais fora retratado fosse o de seus pais, que viveram na época dos filmes mudos, realizados totalmente em preto e branco. Encantador como em filmes antigos se possa ver as cores não registradas na película... Basta ter imaginação, e dar-lhe espaço para espalhar-se...

É mais fácil uma existência de trabalhos árduos, braçais. Contraditoriamente, nunca antes sua mente acadêmica tinha ficado tão relaxada - e nunca antes tinha tido tempo para divagar sobre a realidade do amor em preto e branco. Em sua vida, nenhum amor jamais tivera as cores de Casablanca, de My fair Lady. Eram tecnicolor, mas também desbotados. Por mais que ela se esforçasse, por mais que se lhes derramasse por sobre a palheta brilhante, seu pequeno sol incandescente, vermelho-vivo, sobre o coração do outro. Muito mais fácil existir em andrajos e farrapos, coberta pela poeira cintilante que em vão passara dias tentando remover de sobre os móveis, os aparatos tecnológicos, os eletrônicos. De sobre as caixas onde guardavam papéis tão desimportantes como a própria natureza desse trabalho inútil.

Sempre haverá poeira para espanar. Sempre haverá a possibilidade de contemplar o amor da sombra, contemplar o pretérito daqui - do presente. Sempre haverá o cinema mudo - e suas cores imaginárias.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Nota da autora

Aos meus queridos amigos - que se tornaram leitores e passam por aqui - e aos meus leitores - queridos por sê-lo...

Desejo, em primeiro lugar, um excelente 2010 a todos. Desejo poder continuar enchendo esse espaço virtual com minhas palavras. E finalmente, desejo que continuem voltando...

Muitas idéias, pouco tempo... Esse mês - e esse ano - começo publicando Drummond. Explico: ganhei uma coletânea de presente de Eduardo, e está sendo interessante revisitá-lo... É esse amor de que ele fala que entrego aqui, sem reservas, a todos e cada um de vocês - e também a mim mesma.

As Sem-Razões do Amor
(Carlos Drummond de Andrade)

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.

Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.

Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.


As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...