segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Aragem

Nem aragem. Dois dias e nem aragem. Todas as janelas do pequeno apartamento abertas. Escancaradas. E nem aragem.

Ela perdera a conta das horas de espera, sentada naquela cadeira de palhinha, debaixo do ventilador, rádio ligado bem baixinho, sussurrando ao pé de seu ouvido o noticiário local. Nenhuma notícia. Nem consolo, nem júbilo. Resta a espera. Não havia jeito de retornar no tempo, ou de fazê-lo passar mais depressa, e ela não encontra maneira de concentrar-se em nada. "É o calor" - pensa, e segue redigindo aqueles bilhetinhos mentais: "aqui, as horas se arrastam, e o calor é opressivo. O ventilador só dá conta de mover o ar de um lado a outro da sala-estufa", "o suor me brota por todos os poros, e eu posso sentí-lo enquanto se acumula sobre a minha pele, e escorre por meu corpo", "queria te contar algo de novo, ou até fazer um comentário espirituoso, mas meu cérebro está desnaturando." Todos assinados: "beijo, te amo."

Ela já tinha tentado dormir, mas o esforço fora em vão. A preocupação, a falta de notícias ou contato, e todos os desfechos possíveis se delineando em sua mente... Era impossível dormir, ela não sabia como fazer contato. Restava esperar. E ela o faria em vigília, escrevendo aqueles bilhetes mentais, reafirmando seu amor a cada novo recado, como um bálsamo, um elixir, um amuleto de boa sorte. Como se fazê-lo pudesse prevenir qualquer problema, impedir qualquer tragédia. Livrar de todo o mal.

Na geladeira, um pequeno pedaço de gorgonzola e dois ovos. No ármario, uma lata de molho de tomate e miojo. Muito miojo. Ela prepara um omelete com o queijo e os ovos, e um macarrão ao sugo com o miojo. Ela pensa que chamar de miojada seria mais apropriado, e esse pensamento traz o esboço de um sorriso aos seus lábios. E é só. Ela espera.

Desde o início sentia que aquilo não acabaria bem, e a angústia se acumulava dentro dela, a opressão do calor, as horas acordada... E a solidão.

O que teria acontecido? O que dera errado? "Aconteça o que acontecer, no terceiro dia você vai embora. Eu acho você." Ela ainda tentou argumentar, mas foi rechaçada. "Não, amor, não adianta. Você não pode se dar ao luxo de ficar me esperando. Quando amanhecer o terceiro dia, você vai embora. Eu sempre acho você. Você precisa confiar em mim. Vai dar tudo certo."

Adormece tombada no sofá, e é desperta pelo som do trovão. "Chegou a tempestade, e ele não veio". Amanhece. E é o terceiro dia. Ela se levanta, fecha todas as janelas, toma um longo banho frio. Come o omelete, joga fora o macarrão, junta tudo que é seu. E revista todo o apartamento, à procura de algo que tenha ficado para trás. O envelope caído num canto, entre o sofá e a parede os levaria a ela. Recolhe. "Penso nisso depois."

"Eu acho você."

Respira fundo. Sacode a cabeça, espantando os maus presságios. Sai, batendo a porta atrás de si. Todo aquele futuro ficaria para depois.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Walking backwards

Ela pegou a borracha. Permitiu-se ainda uma última lágrima. E pôs-se a trabalhar.

Abriu o caderno na última página, e não deu-se o trabalho de reler aqueles seus escritos. Sabia como tudo terminara. Sabia o que fazer para acabar com a dor. Lentamente, cuidadosamente. Imprimiu o mesmo afeto, a mesma atenção, o mesmo amor profundo e incabível de que se valera na construção daquela história para dar cabo dela. Ela os usaria também agora.

Com a borracha macia, foi apagando cada palavra dita, cada entrelinha daquele diálogo destrutivo final. Virou a página, e deu continuidade à tarefa. Com absoluta concentração, apagou os encontros incendiários em quartos de motel, as caminhadas lado a lado pelo parque, as sessões de cinema, os almoços e jantares, teatros, pistas de dança, afagos e afetos, dor e deleite. As palavras de amor ditas. E as não ditas. O amor oferecido - e nunca prometido. O amor possível. E o desejo pelo absoluto. As mãos que se tocavam e entendiam tudo, sem nem mesmo dizer palavra. O olhar e a completa aceitação do outro em si, como seu negativo - ela o negativo do outro. Tudo e nada ali, no caderno. E era só varrer dali o grafite, a borracha limpando os parágrafos, suas lágrimas esforçando-se para lavar o que restasse.

Página por página, transformou sua agonia em diligência, e agora não sobrara quase nada. O primeiro beijo, o primeiro encontro, o primeiro olhar. Como doeu correr a borracha por aqueles momentos felizes, e por que teimavam em ficar dentro de si? Da mesma forma como sentira-se angustiada ao iniciar o projeto, temerosa e insegura, por não saber se conseguiria fazê-lo direito, ela se sentia agora, enquanto terminava de apagá-lo.

Apavorada, percebeu então que o efeito desejado não fora alcançado. Sentia ainda a dor excruciante, a proximidade da morte, a angústia como um condor, as asas abertas sobre ela, assombrando, destruindo, magoando. Não podia entender. Se estava acabado, como sobrara tanta dor? De onde tal sofrimento?

Resolveu revisar seu trabalho, olhando enfim as páginas atentamente. E descobriu a resposta.

A borracha fora eficiente. Apagara os registros, completamente. Mas a força desse amor deixara marcas. No papel, no verso de cada folha.

No coração.


sábado, 21 de novembro de 2009

Regra # 3

"Eu sou um homem. Como mulher nunca fui exatamente um sucesso. E é por isso: sou um homem."

Enquanto dirigia para casa, no fim de mais uma semana de trabalho, ela pensava sobre os acontecimentos daquele dia, e mais precisamente dos últimos três meses de sua louca vida... E chegara a esta conclusão. Nunca ouvira falar de uma mulher capaz de fazer o que ela vinha fazendo, com regularidade, nas semanas que sucederam o congresso de Cirurgia cardiovascular em Amsterdã.

Ela estava acompanhando o marido. Ele era um cirurgião renomado, seus trabalhos publicados nas melhores revistas da área, havia trabalhado recentemente em uma colaboração internacional que desenvolveu uma nova técnica de transplante - e dessa vez iria palestrar. Ela sabia exatamente porque tudo aquilo estava acontecendo na vida dele: ele tinha suporte permanente. Sim, é um homem talentoso, genial até - mas quantos talentos são desperdiçados no mundo por falta de suporte? Quantos caras acabam abrindo mão de suas pretensões intelectuais, acadêmicas, profissionais, até pessoais pelo dever de prover a família, dar conforto e segurança à mulher e filhos? Ele chegaria onde chegou sem tê-la ao lado, segurando as responsabilidades familiares, domésticas, logísticas até? E dividindo a provisão, é claro - ela jamais poderia onerar a família...

Tudo isso pesava sobre ela - mas ela estava desistindo de queixar-se. Afinal, ele era um bom homem, um bom marido, um bom pai. A falha no quesito companheirismo - mesmo em se considerando todo o seu peso - não chegava a abalar a média dele. Era uma boa média, enfim. E ela já ouvira mais de uma vez de seus amigos que não se pode exigir demais das coisas, que as pessoas tem seus limites, e que ela devia aprender a lidar - e mesmo aceitar - os limites dele. "Ok, vocês venceram." Mas ele não deveria também saber ligar com os limites dela? Aceitá-los, até?

Era a noite do coquetel de abertura do congresso. Ela ficava esquecida nessas situações, flanando entre bandejas de canapés e prosecco, sorrindo quando solicitado, postando-se ao seu lado, a imagem da mulher perfeita - e aquele turbilhão de sentimentos e - porque não admitir, ressentimentos - dentro dela fervilhando, como a feijoada na panela de pressão, forçando passagem para fora pela tampa... E escapando suavemente, fazendo um chiadinho mimoso... "Arre, já deu!" Escusou-se do marido, balbuciou algo sobre dor de cabeça e saiu pela direita, como o Leão da montanha...

Sentou-se no bar do hotel. Precisava de uma dose de scotch antes de subir ao quarto. E então ela o viu - e o reconheceu imediatamente! Era um seu ex-namorado, eles já não se viam há alguns anos, ela não podia lembrar-se quantos. Ele se aproximou, conversaram, descobriram as novidades um do outro. E descobriram que nada daquilo importava. Não falaram sobre as sensações que estavam experimentando naqueles minutos de conversa, e não lhe pareceu conveniente continuar ali, dando bandeira no lobby do hotel. Desculpou-se com ele também, disse alguma coisa sobre ter um dia cheio no dia seguinte, e subiu - não sem antes beijá-lo. Ela tinha tentado o rosto, mas ele ofereceu a boca - e foi um beijo como os outros, do passado comum. Desvencilhou-se dele e subiu. Excitadíssima.

Não pode conter-se e masturbou-se no chuveiro, enquanto a água morna lambia seu corpo e a fazia pensar na língua dele pelo seu corpo, no esperma dele jorrando sobre sua barriga. Ficou louca de desejo, e sentia que ele provavelmente estaria naquele momento em seu quarto, fazendo a mesma coisa... "Ai, ele me tira do sério, esse homem. Como pode o tesão resistir tantos anos, quando a paixão já está morta - ou pelo menos adormecida..." agora não saberia mais dizê-lo. Deitou na cama, mas não conseguia dormir. Ficou agitada, e depois de rolar por alguns minutos, abandonou as tentativas e resolveu descer para a piscina. Deixou um bilhete para o marido: "Não pude dormir. Estou na piscina. Bj".

Mergulhou na água fria da piscina, arrepiou-se e permitiu que o corpo se adaptasse a temperatura. Deu algumas braçadas. E não conseguiu relaxar. Afundou e tentou manter a apnéia, o máximo possível. Veio à tona e encontrou seus olhos, fixos nela.

- "Não pode dormir?"
- "Não."
- "Nem eu..."

Ela observou paralisada enquanto ele entrava na água, descendo pelas escadas para não quebrar o contato visual. Ela sabia estar presa nele como uma mariposa, atraída pelo olhar penetrante da serpente. Não saberia evitá-lo. E então nem tentou.

Suas mãos tocaram o corpo dela com firmeza. Envolveu sua cintura e abraçou-a forte. Sua boca cobriu a dela e tirou seu fôlego. As mãos dele desfizeram o laço da parte de cima do biquíni, tocaram a pele dos seios, e os mamilos sentiram as pontas de seus dedos, depois sua língua - exatamente como ela se lembrava. Ele a virou de costas, e explorou seu torso e suas costas, as mãos percorrendo seus seios enquanto os lábios beijavam e sugavam a pele e as pequenas sardas das costas, a língua se insinuando em suas orelhas e os dedos acariciando seu sexo por sobre o tecido elástico do biquíni, e ela sentindo a rigidez do seu pênis forçando a base da sua coluna.

Como que desperta do transe, finalmente suas mãos tocaram o corpo dele, suas unhas bem cuidadas arranhando a pele de suas pernas, apalpando sem pudor o sexo dele, deslizando a palma da mão pela barriga e passando os dedos por dentro da sunga, acariciando sua glande com a palma da mão e ouvindo seu gemido de prazer ao seu toque. Ele retribuiu tirando seu biquíni e tocando o sexo dela. Ele gemeu e sua respiração ficou mais ofegante quando percebeu a que ponto sua excitação havia chegado. Molhou seus dedos dentro dela e provou seu gosto.

-"Você ficou mais gostosa ainda... Preciso sentir esse gosto na minha língua inteira..."

E ela não protestou quando ele levantou seu corpo até a borda da piscina, deixando o sexo dela na altura da sua boca. Ele era um especialista em sexo oral naquela época em que se conheceram, e ela não podia mais esperar para sentir seus lábios e sua língua dentro dela, lambendo, mordiscando, comendo... Ele parecia ouvir seus pensamentos, e a chupava com tanta perícia que ela gozou quase instantaneamente.

Os olhos dele procuraram os dela, fixando-se neles. Sem dizer palavra, sustentou seu corpo pelos quadris, e a deslizou, as pernas abertas, para a penetração vigorosa, o seu pênis tão duro que ela sentia sua pulsação dentro dela. Não demorou muito ele também gozou, num jorro veloz, o pênis encostado em sua barriga, espalhando sêmen por sobre seu abdome.

Ainda ficaram ali, imóveis, curtindo o momento, mal respirando. A ela parecia que aquilo viera bem a calhar - e não havia a menor necessidade de conversarem sobre o tinha acontecido. Ele quebrou o silêncio levantando-se, enrolando o corpo numa toalha e pegando um roupão para ela.

- "Quer me encontrar de novo, no Rio?"
- "Por que não?"

Então trocaram telefones, ela lhe disse que só estaria de volta dali a duas semanas, ele voltaria no dia seguinte - e despediram-se com um beijo suave, "beijo de aeroporto" - ela pensou.

Ficou ali por mais alguns minutos, depois levantou-se também, para subir. Descobriu que seu biquíni não estava lá. "Cretino, levou um souvenir..." Rindo com a ideia, foi para o quarto, tomou um banho morno e deitou ao lado do marido, que nem se mexeu. Ela pensou no que o namorado dissera, antes de ela contar sobre a viagem: "ele te trata como se você fosse um bichinho de estimação, como um peixe, a quem nem ao menos se precisa demonstrar afeto! Eu não sei como você consegue viver com ele! E agora mais essa: Lua de mel! Você é uma Pollyana mesmo..."

É, ela tinha um namorado... E isso ainda sublinhava com um marcador luminoso a sua "masculinidade". Era nisso que pensava agora, e fora nisso que pensara naquela noite em Amsterdã, antes de entregar-se ao sono.

Ela estava perdidamente apaixonada pelo seu professor de canto. Havia muito tempo que não cantava, e resolveu entrar na aula de canto para relaxar, ter um hobby. E lá estava ele, o único homem capaz de fazê-la sentir-se ao mesmo tempo tudo e nada. Nunca se sentira insegura a respeito dos sentimentos de um homem por ela. Até conhecê-lo, apaixonar-se, seduzi-lo - e deixar-se seduzir. Com ele, ela vivia numa montanha-russa de emoções desenfreadas. Ele era tão casado quanto ela, e inicialmente ela tinha pensado que esse era o "ingrediente X" do possível romance. Assim ambos estariam protegidos - os dois tinham tudo a perder... E, no entanto, ele fazia estragos constantes em sua auto-estima, jogava em sua cara as coisas que ela escondia até de si mesma! E ela tornava sua vida conjugal um problema. Ele lhe dizia que agora os pequenos conflitos domésticos pareciam terríveis, as discordâncias abriam abismos entre ele e a mulher, e que ele, que sempre se sentira solitário - onde quer que estivesse - agora sentia-se completo, porque ela o fazia sentir-se completo. Eles tinham tantos conflitos... Ela sentia que não podia ser feliz com ele - e jamais seria feliz sem ele. Um impasse.

Viajara tão triste por ter que deixá-lo... Ele não entendia por que ela precisava ir com o marido, não queria que ela fosse, e disse que não iria mais vê-la se ela fizesse a viagem. Não havia como atender aquele seu pedido. Talvez por isso tivesse trocado telefone com o Regra 3. Era assim que chamava o ex, atual amante.

Com ele não há conflitos, as regras são simples e claras - ela liga, marcam o encontro, ela passa para buscá-lo, vão a um motel, transam alucinadamente, gozam muitas vezes, tomam um banho, ela paga a conta e o leva de volta. E vida que segue.

As deliciosas tardes que passam juntos a fazem pensar no namorado - "por que ele complica tanto?"- e no marido - "por que eu faço isso? Ele não merece." E ela sabe, lá bem no fundo, que não é essa a questão. É uma questão de poder. "Eu faço isso porque posso, porque sei como, porque entendo as regras. Faço porque sou um homem. E homens precisam disso."

A estrada passa rapidamente pela janela do carro. Logo estará de volta em casa. Beijará os filhos, o marido, jantarão todos juntos, conversarão sobre o dia - e ela sabe que vai sorrir antes de começar a contar-lhes sobre seu trabalho. E mais tarde vai fazer amor com o marido, e vai chorar no travesseiro, com saudades do namorado, a quem ama de verdade. Mas antes de fechar seus olhos para dormir, vai agradecer aos deuses. Pelo Regra 3.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Na chuva...

Queria correr para longe, queria sentir a chuva... A água da chuva, a lavar-lhe a alma, a escorrer-lhe pelo corpo provocando arrepios incontroláveis. Queria fazer amor com a chuva.

Não podia lembrar-se de quando aquele romance começara. Era ela ainda menina, e fugia para o quintal sempre que chovia. No princípio era somente uma brincadeira de criança: enlamear-se para que sua mãe quase enlouquecesse de raiva dela, entrando assim toda suja pela casa, tornando imprestável o tapete persa, presente do bisavô... Ela sabia que levaria umas boas palmadas pela travessura, mas era tão gostoso...

Com o passar dos anos, entretanto, a mania não a deixara. Ela ainda escapulia para o pomar do sítio da tia avó, e permitia que seus dedos afundassem na lama, que a chuva colasse o vestido em sua pele, revelando-lhe os contornos do corpo de mulher. Dançava na chuva como uma pagã, em louvação à divindade da fertilidade, cega e surda aos apelos maternos, aos olhares do mundo... E caía, quantas vezes caía, e rolava pelo chão de terra, terra molhada, perfumada e fértil como a sua imaginação. Sempre vira na chuva uma amiga, um amante, uma confidente, um cúmplice. Sempre a chuva para ela como um amigo, íntimo, leal.

E agora essa novidade: andava obcecada pela ideia de dividir seu ritual da chuva com ele. Porque ele não era um ele qualquer. Porque, em sendo ele, ela - a chuva, jamais se negaria, ou ressentiria.

Ele estaria lá, no sítio da tia avó, naquele fim de semana. E todas as previsões meteorológicas eram unânimes: chuva na madrugada. Nas noites que precederam o fim de semana, ela acordou banhada em suor, os sonhos que povoavam a sua imaginação, seu inconsciente, impublicáveis.

Ele chegou na sexta. Já era quase noite, e a chuva o precedera. Por algum motivo inexplicável, todos os primos decidiram ir a Paty aquela noite - e tinham saído uns quinze minutos antes de sua chegada. Ela estava sozinha. Não quisera ir, não podia estar fora, precisava vê-lo chegar. E também, a casa não podia estar vazia, o amigo tinha que ter quem o levasse até eles. Então, resolveu-se que ela ficaria. E pronto. Foi o fado.

Ela estava no pomar quando ele chegou, sentada no chão de terra, encharcada e enlameada até os ossos. Ela tremia, seus lábios roxos e suas mãos doloridas pela água fria. E ela adorando cada instante. Ele pensou em despertá-la do transe, mas preferiu observá-la de perto, oculto por uns arbustos. A lua já atravessava as nuvens menos densas, e sua luz diáfana conferia um colorido onírico aquela cena - a moça que se entregava à chuva parecia saída de um conto de fadas, e mesmo assim era tão real...

Ela percebera sua presença, mas resolveu permitir que ele a observasse. Como poderia negá-lo? E era a única maneira de saber se ele entenderia. Então, depois de alguns minutos, ela voltou-se para ele. Sabia exatamente para onde olhar, e, ao perceber que havia sido descoberto, ele corou violentamente. Por sorte, ela não poderia sabê-lo. E no entanto, ela não se mostrava assustada, ou tímida. Ela o esperava, ele agora sabia. Ela sorriu, e seus olhos o convidavam a chegar perto, a participar daquele seu momento. Tão transparentes, tão claros, e tão irrecusáveis...

Aproximou-se lentamente. Temia que aquele quadro se dissipasse por completo se fosse descuidado. E não disse palavra, pois palavras eram mesmo desnecessárias. Suas mãos a tocaram de leve nos ombros. Ela deu uma risada e o derrubou no chão. Ele ficou ali, estatelado no chão escorregadio, a olhá-la, incrédulo. E ela pousou os lábios nos dele, à princípio suave e em seguida poderosamente, a força de seu desejo subjulgando a última gota de recato que lhe restara, a chuva lavando todas as máscaras que se colocaram entre eles.

Ele devolveu-lhe o beijo na mesma intensidade. E, como num balé ensaiado à exaustão, suas mãos percorreram os corpos um do outro, sem pressa, traçando os caminhos do desejo com terra e saliva em suas peles. Ela, encantada, mergulhava em seus olhos, em sua boca; sugava da fonte todo o seu amor, que até momentos atrás estivera oculto. Ele, febril, queria sentir cada centímetro quadrado da sua pele, marcá-la como sua, seu amor confundindo-se com seu desejo.

E aquele luar filtrado iluminava os corpos terracota, as unhas dele cravadas em seus quadris, a grama pontilhando de verde a pele alva manchada de barro vermelho, as roupas dos dois já largadas pelo pomar, demarcando a trilha dos amantes da chuva. Na clareira, onde o luar dominava, finalmente consumou-se o amor, seus corpos como um, ele pesando sobre ela, ela cedendo feliz à sua própria sedução. E a chuva testemunhando o milagre que se fez ali, abençoando como um deus pagão seus dois adoradores.

E para ela o amor se fizera a três: ela, ele, e a chuva.

No dia seguinte, quando o Sol pôs enfim a cara larga e ofuscante no céu, encontrou os dois adormecidos no carramanchão, e quem visse de longe acreditaria serem a escultura de amantes: seus corpos ainda cobertos de terra formando um conjunto harmonioso.

Acordaram, entreolharam-se e sorriram. Sabiam que nada mais seria como antes. E não poderiam estar mais felizes. Se houve algo a ser dito, a coreografia do amor tornara desnecessário. Ele a amava, ela o amava. Ponto.

Até a próxima chuva.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Confissão

Acordei de um sono sem sonhos, agitado pelas preocupações que não me pertencem.

Em algum momento da noite, senti teu cheiro bem próximos às minhas narinas, e foi insano, como se você estivesse realmente aqui. Já não está. Tenho a sensação de que teus olhos me estão fitando, de que, se de repente abrir os meus, você vai estar a centímetros de distância, me olhando e fazendo beiçinho, carinha de pidão... E fico até com medo de me acordar totalmente.

Já é dia. A porta da manhã se escancara sobre mim, inevitável, e eu preciso ir. Tenho uma longa jornada pela frente. A água fria do chuveiro ajuda as células a despertar, a acompanhar a consciência - esta, desperta há horas. O sabonete deslizando pela minha pele, seu perfume insistente tentando roubar o teu cheiro de mim. Resisto, mas dura pouco, e de certa maneira agradeço à espuma macia, ao perfume de figos e cupuaçu, por me libertarem da sensação do teu toque, do cheiro do teu corpo - mesmo que somente durante os breves minutos que dura o banho.

Vou trabalhar, ainda preocupada. Onde andas? Como estás? Para cada pensamento uma sentença definitiva: "você sabe que isso não te cabe..." Que me importa? É só no que penso hoje, enquanto me movo através do dia como um avatar que, num videogame manjado, pula todos os perigos e pega todos os prêmios - mas já nem te emociona.

Talvez porque hoje não haja motivo. Sinto o teu cansaço, sinto a tua tristeza, eles me encantam e ferem igualmente, e eu quero tanto te tocar, te consolar, e é como se estivesse presa em uma redoma de vidro temperado, de onde não consigo escapar, de onde minha voz gritada não pode chegar aos teus ouvidos. E você se afasta, e eu grito, e canto, e choro, e chamo: "me espera, eu tenho uma confissão a fazer!" E você se vai...

Eu sei - that's just the way it is... Mas eu quero confessar o inconfessável. A confissão ficou retida pela redoma. Um dia, um dia sem pressa, eu vou fazê-la ao pé do teu ouvido. O teu mundo vai tremer um bocadinho, como um pequeno abalo sísmico daqueles que nem é percebido pelas pessoas, e marca 0,5 na escala Richter. As tuas placas tectônicas vão se acomodar em torno do teu coração, da tua mente - e você seguirá adiante, o pedaço do meu coração preso entre os dentes balançando displicentemente sendo levado como um troféu. Inabalável.

E o mel que escorre dos meus lábios, espesso e cristalizado, a luz que transborda de meus olhos, quente e brilhante - a minha dádiva - são o que de mim ficará intacto na tua lembrança.

As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...