sábado, 29 de agosto de 2009

Secula secullorum

Vivia das coisas do século. Millennia.

Era de números seu cotidiano. Coisas quantificáveis. Sentia-se seguro quando cercado por elas, e na verdade nunca entendera as pessoas com quem se relacionava diariamente. Por que todos valorizavam tanto as situações corriqueiras, o remirremi dos relacionamentos interpessoais, se não se pode atribuir valor real às emoções?

Quando ele falava desse seu ponto de vista, chocava a multidão. Era um escândalo que existisse alguém assim, como ele. Será que ele não sabia que o que mais importa na vida são as pessoas? Mais que dinheiro, patrimônio, poder, ambição... que nada disso leva a lugar nenhum?

Só pensar nisso já o fazia rir. Como as pessoas podem permitir-se esse nível de ilusão - ele sempre pensava - uma vez que os eventos da rotina comprovavam constantemente suas impressões? Não é o que as pessoas dizem valorizar, mas o que realmente valorizam que importa. E são as coisas quantificáveis.

Millennia.

Ele vivia das coisas seculares porque era mais fácil não pensar no que significa amor. Ele não saberia dizer. Talvez já o houvesse experimentado, nos abraços da mãe ou nas rodas dos chamados amigos. Mas não era para ele uma grandeza quantificável - logo, não se aplicava em compreendê-lo.

Como seria lógico, tornou-se um matemático. Era natural a contagem, e gostava de fazê-lo obstinadamente, como um método mais que um exercício mental. Minutos, segundos, tempo, velocidade, distância. Mantinha a distância. E continuava contando...

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Sweet oblivion...

Ela gosta de sentir-se o centro das atenções. É uma bela mulher - e tem consciência disso. Sempre se desloca com cuidado, como que para permitir que o ar carregue seu perfume até as narinas dos homens. E todos eles se viram para observá-la, enquanto passa.

Ela gosta de pensar em si mesma como uma deusa - não uma simples mortal. Sabe ser capaz de inspirar, se não amor - luxúria. Seu corpo não é exatamente perfeito. Sabe que há mulheres muito mais belas que ela. Mas na verdade ela sabe o que fazer com o que tem. É impossível não repará-la. E como ela sabe tirar proveito disso!

É alguém incomum, essa mulher. E agora está com uma ideia fixa: quer ser um objeto de desejo irrecusável. Quer a adoração de um homem de cada vez, em seu altar de carne e sangue. Deseja ter um devoto penitente entre as pernas de cada vez. E não importa como vai alcançar esse objetivo. Ela sabe que ele está mais próximo a cada dia.

Não. Ela não está rejuvenescendo. Para ela passa o tempo como para todos os outros mortais. É a forma como ela olha o mundo - e como devolve ao mundo seus olhares. É o modo como ela se sente - dentro da própria pele. Sente-se plena. Sabe-se dádiva. E quer oferecer-se.

Há muito está apaixonada. Mas seu amor é distante e impossível. E ela cansou de esperar adoração de quem adora. Ela sabe que neste universo outros planetas orbitam sua estrela. E quantos homens não gostariam de fazer dela uma deusa em suas camas?

Ela conhece os caminhos de seu prazer - e sempre teve o dom de descobrir como agradar aos homens que tiveram a oportunidade de seu corpo. É essa mulher que me olha através do salão.

Sentada naquela mesa, do outro lado do bar, o restaurante apinhado de gente - e ela me olha. Li tudo isso em seu olhar. Olhos profundos, alma clara, cabelos emoldurando os lindos traços daquele rosto. Ela é mesmo linda, essa mulher. E é de verdade. Quantas mulheres lindas e verdadeiras você vê por ai, flanando entre os mortais?

Por que ela me quer? Por que resolveu que hoje serei eu o adorador? E por que eu quereria saber? Só de pensar que serei agraciado por essa mulher ímpar - que me importa? Minha preocupação está no depois. Será que ela vai me querer novamente? Ela vai tirar meu sono, e vou desejá-la como nunca a nenhuma outra - só porque dela só terei o que decidir me dar.

E enquanto ela segue sua existência, e se faz oferenda e ídolo, eu vou ficar por aqui. Imaginando quantos antes e quantos depois de mim irão tocá-la, provar o sabor do seu suor e da sua saliva, deslizar a língua por seus mamilos e clitóris, oferecer-lhe o gozo jorrado para fora do corpo como um óbolo. Fazê-la gozar à exaustão, até que ela chore de prazer. Ver cair-lhe a máscara de deusa e roçar os dedos na verdade do que ela é.

Ela dá de si, e sua felicidade emana. Sua pele luminosa, sua voz envolvente - ela me chama. É provavelmente a única sereia mítica que eu jamais encontrarei. Ela sabe que eu entendi onde ela quer chegar. E sorri - porque não gosta de perder tempo. Ela vai me perguntar se quero sair daqui. E vai ouvir a resposta que quer. Desde pus meus olhos nela, desde que seu perfume me invadiu as narinas, desde que sua imagem atingiu o cortéx visual. Sou dela - e ela é a minha deusa. Em seu altar deposito meu coração, estripado pela beleza quente que sobe de seu corpo, penetra por meus poros e me escraviza, só por hoje - para ela. Para mim, toda uma vida...


quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Asco

O vômito quente subiu como um raio até sua boca. Ele não conseguiu respirar, e acordou engolindo, suando frio, nauseado. A tosse fazia seu peito doer, e a ardência no esôfago tornava a respiração insuportável. Passados os segundos de agonia, correu para o banheiro para permitir que aquele excremento pútrido deixasse seu corpo. Sentou-se no chão duro perto da privada. E chorou amargamente.

Sempre vomita quando está sob pressão. E odeia vomitar. É tortura sobre tortura. O pior é que agora esse fenômeno anda acontecendo até no sono. Ele sonha com imagens desconexas, os fantasmas das decisões que adia diariamente se acumulando sobre sua cabeça, sua covardia diante das coisas pequenas, sua inércia diante do que realmente importa - e ele agora acorda com a boca cheia de vômito, sufocando e pedindo a Morte que venha - enquanto luta para recobrar o fôlego.

A vida cheia de compromissos. Mulher, filhos, trabalho, dinheiro, responsabilidades, idealismo, compromisso, amigos e álcool. Álcool pontuando tudo isso: travessão, vírgula, ponto de interrogação. Parágrafo, aspas, mais um travessão. Dois pontos, parágrafo.

Exclamação. Ela chegou uma tarde quente de março, era uma brisa de carne e luz. Aquela menina de uns vinte e poucos anos entrou pela porta do escritório para uma entrevista. Queria a vaga de assistente. Falava inglês e francês - e falava pelos cotovelos. Ele só ouvia um zumbido, sua imagem brilhando e manchando de púrpura visual suas retinas.

Ele chora sentado no banheiro, ignorando o cheiro da privada e o desconforto da posição. Ele sabe que precisa acabar com aquilo. Mas não quer, não pode fazê-lo. É um fraco - e se despresa por isso. Ele é mau com ela, se ficar. Não quer mais que seu corpo - é o que lhe diz. No íntimo, deseja devorar-lhe a alma, roubar sua luz quando ela não estiver olhando, prendê-la entre seus dedos, fazer dela sua escrava. Tê-la sempre. Mas não teria isso, porque não quer dar de si. Ela fica orbitando a sua volta. Ele quase pode sentir seus pensamentos, ela é clara - e ele uma sombra. Ela fica ali, olhando para ele do fundo da sua mente. Do fundo do copo de scotch. Do fundo do coração. Ele quer ter tudo. Mas isso precisa acabar.

Amanhã.

Ele levanta e se vira para o espelho. Os olhos vermelhos estarão inchados pela manhã. É tudo uma grande inutilidade. É só desejo... Ele nem a ama. Nem tanto assim. Como precisa entoar essa mantra. Reticências...

Amanhã. Agora, uma chuveirada e back to bed. Ela pode procurar outro que lhe dê o que deseja. Ela que se vire. Ele que morra de saudade - quando a deixar. Talvez seja a sua última paixão. Mas isso é um risco que não vale as perdas. E ela vai ficar por ali, flanando pelos corredores do escritório, assistente administrativa de outra seção da empresa. Uma chaga aberta, e ele sabe que é tudo mentira. Mas precisa mentir para si mesmo. Ama sua vida. Ela diz que não se importa e que ele pode manter seu conforto familiar, sua vidinha como ela é. Ela diz muitas coisas. Isso precisa acabar. E só vai doer se eventualmente seus olhos pousarem nos dela, por acidente.

É. Amanhã. Mais um adiamento. Parênteses. Ele finge não ter ouvido esse pensamento em particular.

Outra dose de scotch antes de dormir. E torcer para que não aconteça de novo.

Nem o vômito, nem a dor. Muito menos o amor.

Ponto final.


segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Perfeição

Para ela, a perfeição estava por todos os lados.

No alvorecer, preenchendo cada espaço de seu campo visual com um banquete sinuoso e volátil de cores - como a paleta de um artista.

No menino da padaria, que passava por sua porta duas vezes ao dia - bem cedo, enquanto o dia acorda, com seus pães perfumados de forno e fermento; e no fim da tarde, com as guloseimas coloridas da hora do lanche.

Na estação do trem, logo cedo, tão apinhada de gente diversa. Tantas procedências, tantos destinos, tanta vontade reprimida, tantas obrigações e cansaço refletidos em cada olhar - e na linguagem dos corpos se arrastando pelo caminho invisível...

Nas sutilezas de cada pessoa atendida, suas histórias corriqueiras e únicas em sua simplicidade. Problemas comuns, de gente comum, eram para ela a grande verdade da vida. Para ela eram todos comuns - e sobretudo ela mesma, no anonimato seu de cada dia. A paisagem humana - todos gado, e tão particulares! Eram as estrelas no firmamento da vida - suas escolhas, as conseqüências de cada uma delas, êxitos e fracassos, todos brilhando sobre o mundo numa coreografia dinâmica. Derramava amor sobre tudo isso, encantada.

O fim do dia, vermelhos e laranjas explodindo no céu - igual e diferente a cada crepúsculo. A conversa animada do happy hour, voltar para casa pensando em nada, o trajeto desfilando rápido pela janela do trem, como um borrão de luzes artificiais. As noites quentes do verão - mesmo no inverno. Era o verão de sua vida, as décadas da maturidade de flor desabrochada, de fruta madura, de crisálida abandonada e imago pronto - a borboleta das asas azuis em que finalmente se transformara. Sentia em suas células - era a mesma - mas diferente.

Podia passar dias só observando esses pequenos eventos. Era um deleite particular, intransferível. Era a verdade absoluta da existência: a perfeição está nas pequenas coisas. Sentia a perfeição no pulsar do mundo a sua volta, nos recônditos da paisagem urbana, no bucolismo de cada beira de estrada. Era uma questão de educar o olhar.

Via perfeição em gente que habitava sua vida há tempos. Em sua mãe, ciumenta e afetuosa. Em seu pai, distante e ainda assim encorajador. Nos desafios que seus irmãos representavam para ela. Em seu marido e seu filho - as jóias da coroa. E nos amores outros - os amigos de infinita beleza que a vida distribuíra por suas estradas.

Canteiros. Eram como canteiros. E ela sempre pára para cheirar as flores...

Encontrou o amor várias vezes - e sempre se encantava com a perfeição em cada pessoa especial de sua vida. Nos amores presentes e recíprocos como nos platônicos, e ainda nos reservados e distantes - amores como o de seu pai.

Não conseguia perceber a perfeição que escorria de seus olhos, nem a doçura de cada palavra sua, seus gestos generosos e plenos de afeto genuíno. Havia perfeição nela mesma - perfeição por ela ignorada.

Talvez outros olhos pudessem algum dia revelar-lhe esse encanto que dela emanava. Talvez o tempo lhe trouxesse uma pessoa capaz de fazê-lo. Ela nem pensava nisso, mas seu coração - tão repleto de amor - andava precisando enxergar-se. Talvez algum dia seu caminho cruzasse um amor assim - amor de despertar.

Uma vez desperta, não poderia mais dormir para a beleza de quem era - e para a inegável perfeição de seu coração de fogo e água, de detalhes e delicadezas, de tormentas e calmarias. E amar-se seria quiçá mais importante que derramar-se aos pés de seu amor, tão recente quanto eterno. Tão novo quanto antigo - e sem dúvida verdadeiro - mesmo que recluso, reticente e relapso.

And she would miss his flattering, and all the compliments he bestowed so gracefully upon her.

And her lips would become numb, her skin would ache for his touch - and he would be nowhere to be found... And maybe, just maybe, they would have a chance to find perfection where it really lies - in the depths of inexplicable love...

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Êxito

Pragmática, ela caminha entre as fileiras de funcionárias de sua pequena confecção. Desde bem pequena, o som das máquinas de costura enche seus ouvidos. No ínicio, era como um despertador. A mãe - costureira - acordava antes dela, e já começava, bem cedo, seus aviamentos. Aos poucos, à medida que crescia, via aumentar dentro de si o desejo de compartilhar aquele ofício com sua mãe.

Ela trabalhava tanto que nunca tinha tempo para a filha - a aproximação através do trabalho pareceu-lhe óbvia desde seus seis anos. Começou anotando em um caderninho as medidas das clientes regulares de sua mãe. Assim, logo que aprendeu a ler, mostrou sua serventia. Dali para a máquina, um pulo. Para o corte, pulo e meio. E assim, quase sem perceber, aprendeu o ofício - e descobriu seu talento. Era uma modelista. Desenhava vestidos tão lindos que a quantidade de trabalho quase triplicou, e, quando fez quinze anos, uma cliente importante, mulher de sociedade, fez a sua mãe uma proposta:

- Eu gostaria de te oferecer uma oportunidade à Esmeralda, Arlete. Você é melhor costureira que já conheci, e não visto nada que não seja grife se não for realizado por você. Mas essa menina sua é um achado! Ela é estilista do berço. E eu acredito no potencial dela.
- E o que a senhora tem em mente, dona Escolástica?
- A idéia é mandá-la para uma escola de estilo. Sei que ela vai despontar.
- E o que a senhora ganha com isso? - perguntou a mãe, desconfiada como boa mineira.
- Ganho o direito de agenciá-la como estilista, e de comercializar o trabalho dela, por um período de cinco anos.

A mãe ficou de conversar com a filha. Sabia que era uma oportunidade de ouro - mas era Esmeralda que decidiria.

E agora, todos aqueles anos de estudo, de trabalho árduo e muita dedicação estavam se pagando. Agora, é a sua própria confecção. Seu trabalho rende dividendos só para si. Dona Escolástica tinha sido uma fada madrinha - só que agora, a Cinderela não precisava mais de príncipe encantado - ela sabia cuidar de si.

Dona Arlete, a mãe, não vivera para vê-la formada. A artrite que lhe incomodara desde sempre transformou-se num câncer ósseo. E quando descoberto, já era terminal. Ela ficou sozinha. Sua companheira de vida era a mãe. Era dela que sempre sentiria saudade.

E por isso decidira não formar vínculos, caminhar sozinha nesse mundo, celebrizada em seu trabalho, mas nunca em sua vida pessoal. Não haveria filhos, ou marido. Talvez amantes - homens e mulheres - mas ninguém a quem se apegar.

Um dia, quem sabe, viria a baixo - aquele palacete, aquela construção elaborada que era ela. Um dia desses, alguém dirá, ela cairá do cavalo.

Por hora, seu pragmatismo a leva adiante, um pé de cada vez. No ritmo da cerzidura.

As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...