sábado, 4 de maio de 2013

Minúcias (parte 3)

Na semana seguinte ela chegou um pouco depois do horário marcado. Vinha afobada, ainda vestia a roupa de ginástica. Entrou, recebeu o indisfarçável escrutínio da secretaria de Inácio, e alguns instantes depois deixou-se cair sobre o divã de couro branco.

- Nossa, que correria! Desculpe-me o atraso.
- Tudo bem.
- Não, Inácio, não está tudo bem. Eu concordei em estar aqui, eu deveria ter avisado que me atrasaria. Mas me distraí, e quando dei por mim, já era a hora e eu estava a três quarteirões daqui.
- Veio da academia?
- Pilates. Detesto fazer exercícios, mas por algum motivo estranho adoro Pilates.
- Bom para você, exercitar-se.
- É... - Ela foi evasiva. Precisava deixar aquela conversinha de lado e fazer o que tinha ido lá fazer: contar a ele a sua história. Ele pareceu ler seus pensamentos, e deu a deixa:
- Você quer que eu te lembre onde você parou?
- Ah, não, Inácio. Eu sei perfeitamente onde parei. Eu te contei sobre o Fernando. Hoje eu vim aqui te contar sobre o Antônio Carlos... Então ela respirou fundo e começou a falar:

- Eu conheci esse rapaz, o Antônio Carlos, quando trabalhava num escritório de representações comerciais no centro da cidade, gerente administrativa. Ele era um mensageiro, muito gostoso, alto, bonito, tinha consciência do efeito que causava e gostava de exercer esse seu poder sobre as mulheres. Comigo não foi diferente. Na época eu já era casada, tinha uns cinco anos, e ainda não tinha filhos. E ele sempre chegava sorridente, me perguntava como tinha sido o fim de semana, o que eu ia fazer no final do expediente... como a resposta era sempre a mesma - "eu vou prá casa, o meu marido e eu vamos jantar e ver um filme" - ele dizia que duvidava muito que eu fosse uma mulher caseira. Era um flerte casual, e ele não parecia ter uma agenda.

- O que você quer dizer com isso? Agenda?
- Ah! Existem homens que traçam um objetivo, do tipo: eu vou fazer isso, aí eu falo aquilo, e dependendo do que ela disser eu caio dentro! Esses tem agenda. O Toni não tinha agenda: era um oportunista. Ele ia esperar a ocasião favorável acontecer. E eu resolvi que ia fazer acontecer o mais rápido possível - eu estava morrendo de curiosidade!
Então, uma tarde, no horário do almoço, o escritório estava vazio, eu pedi que ele fosse até a minha sala antes de sair para almoçar, porque eu tinha uma correspondência urgente para ele entregar. Ele entendeu perfeitamente - os canalhas sempre entendem - e esperou que todos saíssem para ir até mim. Quando ele entrou na sala já estava claro como água o que ia acontecer. Ele disse alguma gracinha sobre o vestido que eu estava usando, eu perguntei se era problema para ele, ele retrucou que não, não mesmo. E se aproximou como um predador, e me atacou. Ele me beijou com força, e me tirou o fôlego, e a cada beijo era um pedaço do meu corpo que ele despia, e quando eu dei por mim, estava deitada sobre a mesa, e ele entre as minhas pernas. Eu gozei intensamente naquela vez, acho que a mistura de emoções era única: o medo de alguém chegar, o tesão enorme que ele me provocava, a força com que ele me subjulgava. Sei lá, são tantos detalhes que me vem a mente quando penso nele...
Depois daquilo, ele começou a brincar comigo. Me agarrava pelos corredores e me ignorava em público, só respondendo a mim quando o assunto era trabalho. Ele se divertia às minhas custas, e isso me deixava confusa, e eu fiquei perdida. Eu não sabia o que pensar, cheguei a achar que estava apaixonada demais, e que se ele ficasse com outra pessoa eu enlouqueceria. E era isso que ele queria, depois percebi.
Sabe, com o Toni o affair era uma questão de poder. Ele queria subjulgar uma pessoa importante, que estava numa posição hierárquica acima dele. E, se possível, garantir um pezinho de meia. Ele não me pedia nada diretamente, mas deixava escapar que tinha gostado disso ou daquilo, e eu me peguei comprando uma corrente de platina caríssima para ele, corada como uma adolescente. Enquanto o atendente a embrulhava para mim, ele comentou que era um presente de muito bom gosto, e que meu marido ia gostar muito.
Aquilo foi como um balde de água fria sobre mim. Ele viu a aliança no meu dedo, e imaginou que o presente era para ele! Aquilo me deixou transtornada, e eu liguei para o escritório, avisei que não voltaria naquela tarde, dei uma desculpa. Comprei uma lingerie nova, uma garrafa de Veuve Clicquot de boa safra, e fui para casa. Preparei um jantar delicioso, me arrumei e fiquei esperando o Leonardo. A gente teve uma noite incrível, ele adorou o presente - mas gostou mais ainda do champagne e do resto. Depois que ele dormiu, eu levantei, entrei no chuveiro, e chorei. Chorei muito, deixei que a água do chuveiro lavasse todo o sofrimento. E me senti forte o suficiente para ir ao trabalho no dia seguinte acabar com tudo.

- Você o demitiu?
- Demiti-lo? Não. Eu pedi demissão. Para mim sempre haveria novas possibilidades de trabalho, mas para ele... Bem, eu tenho formação superior, experiência profissional, boas referências. E saí de lá para uma posição melhor numa rede de supermercados. Eu não poderia continuar trabalhando naquela sala, não depois de tudo o que aconteceu ali...
- E você aprendeu com ele, Tereza?
- Ah, não... Sabe, poder se exerce de maneiras diferentes, por motivos diferentes. O que para o Toni era uma maneira de se sentir poderoso e dominante, para outros era o desejo de admiração, a necessidade de se provar, de alimentar a auto estima, de ser o grande amante, o forte, o especial... E, para cada necessidade básica do ego de um homem eu levei um tombo. Só dói menos hoje em dia, que já estou escolada. E mesmo assim, ainda me acontece. É inacreditável até para mim que eu ainda possa cair nessa armadilha. Mas é como é.
- Ele não parece ter sido tão importante para você...
- Viu só, Inácio? Você está julgando. Eu tinha te avisado que iria acontecer. Há um distanciamento emocional porque essa fórmula de relacionamento é ruim. Falar desse tipo de experiência é ruim, porque não é uma relação entre iguais. Esse homem, o Antônio Carlos, não me vê como uma sua igual: ele se vê como melhor do que ele, e precisa me subjulgar, de uma forma ou de outra. E não pode haver felicidade ou boas lembranças neste tipo de história. Mas não significa que tenha sido menos importante, ou menos intenso. Eu sempre me pergunto: e se o atendente da joalheria não tivesse feito aquele comentário? E se?
- Desculpe-me Tereza, eu... - Ela cortou o pedido de desculpas, seca:
- Não se desculpe. Perceba: eu me expus ao teu julgamento, como estarei exposta ao dos que lerem o teu livro, mas o fiz voluntariamente. É por minha vontade que estou aqui - e já sabia que isso aconteceria. - Respirou fundo e concluiu:
- "E se" é a pior das perguntas, é uma prisão disfarçada de possibilidade. Na verdade, é uma impossibilidade que te aprisiona no passado onde ela era possível. E eu aprendi a viver no hoje. Não há cadeias onde eu passei.
- Entendo. De qualquer maneira, essa é uma fórmula diferente. Você se esquece deles? Dos Antônio Carlos?
- Às vezes sim - é quando caio na mesma armadilha uma segunda vez que me lembro. Mas do Toni eu nunca esqueci. Foi logo depois dele que eu engravidei pela primeira vez. No final das contas, ele me ajudou a olhar para dentro do meu casamento e a dar o próximo passo: frutificar.

O silêncio caiu entre eles, e para Inácio era um silêncio opressivo. Era claro que ele sabia que a estava julgando, mas ele não imaginava que ela fosse perceber sua manipulação tão rapidamente. Ela era uma mulher muito inteligente, e ele estava cansado daquele diálogo.

Ela olhava para ele enquanto o silêncio gritava em seus ouvidos. Ela estava tranquila, mas sentia raiva quando se lembrava do Toni. Ela tinha sido louca por ele, mas não sabia pensar nele com carinho. Era raiva o que ela sentia, e ela sabia porquê.

- Sabe, Inácio, existem dois tipos de relacionamento: os bons e os ruins. Os bons sempre dão certo, mesmo quando terminam. Os ruins sempre dão errado, mesmo quando duram toda a vida.
- Obrigado, Tereza. Podemos continuar semana que vem?
- Claro, Inácio.

Ela se levantou e estendeu a mão direita para ele. Ele apertou sua mão com firmeza, e ela saiu da sala. Ele pegou o gravador e começou a tomar notas a respeito da sessão. Repetiu literalmente suas últimas palavras: "existem dois tipos de relacionamento: os bons e os ruins. Os bons sempre dão certo, mesmo quando terminam. Os ruins sempre dão errado, mesmo quando duram toda a vida." E desligou o gravador, pegou uma caderneta com o nome dela na capa, e passou a anotar no papel. Precisaria elaborar bem a conversa...


(to be continued)


quinta-feira, 2 de maio de 2013

Minúcias (parte 2)

"Eu só sei dizer que chovia, que naquele dia a noite caiu sobre a cidade às três horas da tarde, e que em questão de minutos estava tudo alagado, e não dava mais para sair do laboratório. Eu fiquei ali, vendo os meus colegas resolverem ir embora, um por um. Fiquei com medo, sei lá por quê. O meu marido, então namorado, estava fora da cidade, trabalhando num projeto novo, e devia estar de volta em duas semanas. Eu liguei para ele, contando a situação, e ele concordou que a melhor opção era ficar onde estava - seca e em segurança. Só me fez prometer que ia trancar tudo, e se despediu.
De repente eu fiquei sozinha. Completamente sozinha. E me deu medo. Da janela, a situação parecia não ter mudado. Tudo cheio. E eu meio que entrei em pânico. Ali, sozinha, presa numa sala minúscula e repleta de fósseis... Então eu peguei as chaves e algum dinheiro, deixei a mochila no laboratório e saí para descobrir se alguém ainda tinha ficado na faculdade, e se dava para tentar ir para casa. E esbarrei nele na papelaria. Literalmente esbarrei. Eu peguei um livro qualquer numa prateleira da loja, e o estava folheando e andando em direção ao caixa quando esbarrei nele. O pedido de desculpas mútuo foi substituído por um sorriso meio sem jeito. E logo ele quis saber se eu ia tentar ir para casa, emendando que tinha um grupo de alunos que ia ficar no refeitório durante a noite. Eu disse que tinha onde ficar e agradeci, e ele perguntou se eu ficaria bem, sozinha. Ele tinha um jeito especial de olhar, era como se ele realmente visse você, ele podia olhar através de mim. E eu fiquei sem palavras."
Ela fez uma pausa comprida. Inspirou profundamente e deixou o perfume da chuva tomar conta dos seus sentidos. Era difícil falar daquilo, mas ela lembrava de todos os pequenos detalhes daquela noite: o cheiro do hálito dele, o gosto do beijo, o tamborilar da chuva na janela do laboratório, o calor do desejo e o peso das suas mãos sobre o corpo dela. Era emocionante poder falar daquele episódio abertamente a alguém genuinamente interessado no que ela tinha para contar. Tentou se concentrar de novo. Ela precisava terminar o que tinha começado.
"Ele só sorriu e me perguntou se eu queria comer alguma coisa. Diante da minha negativa, se ofereceu para me acompanhar até a minha sala. Eu comecei a agradecer e de repente aceitei sua oferta. Eu já tinha recusado tantos convites dele naquela noite que fiquei constrangida em negar mais aquilo. Ou talvez, em algum canto da minha cabeça, eu já estivesse revolvida. Não tenho certeza.
Caminhamos até o prédio onde a minha sala ficava. Conversamos todo o tempo, e como a gente tinha assunto! Ele fez questão de me levar até o terceiro andar. Subimos de escada - o prédio estava sem energia - e ele já ia se despedir quando eu ofereci um café. Sempre tinha café naquele lugar. E ele aceitou na mesma hora.
As coisas ficam confusas nesse ponto, e eu não sei dizer como foi que tudo começou, mas me lembro de todos os detalhes do que aconteceu ali. Acredito que esse não seja o objetivo da sua pesquisa, então vou omitir isso. O importante para mim é que, apesar de ter acontecido há tantos anos, é mais significativo contar isso aqui do que o meu último romance. Há um padrão, entende? Os affairs se repetem, seguem fórmulas. Eles podem vir em cor e tamanho diferente, mas são fórmulas. Eu sempre dou nomes aos meus compostos. Essa é a fórmula Fernando: acontece meio sem querer, cresce rapidamente e exige tomada de decisão. Sempre acaba do mesmo jeito: eu sofro porque não quero abrir mão, mas sei que é preciso, e nunca mais o vejo. Eventualmente fico sabendo dele por algum conhecido. Ele sempre está muito bem e aparentemente nem se lembra que eu existo. Eu nunca me esqueço dele.
Desse jeito só me aconteceu duas vezes. E eu nunca me esqueci de nenhum dos dois, mas também não sou cruel ou cretina a ponto de procurá-los. Eu sei que poderia machucar - ou ser machucada. Em qualquer dos dois casos é sofrimento desnecessário, porque não há solução para a questão.
Terminou três meses depois, ele me dizendo que se eu terminasse o meu namoro estaríamos casados em seis meses - e, se não o fizesse, jamais o veria novamente. Eu morri um pouco por dentro, mas não vi a opção que ele me mostrou. Eu não vi. Para mim não era possível dar as costas ao meu namorado. A minha lealdade estava em outro lugar. E ele se foi."
Ela sentou na chaise em frente à mesa de Inácio. Estava cansada. Contar aquele história tinha drenado suas energias. Ele achou melhor deixar as perguntas para outra oportunidade.
-Vamos parar por hoje.
-Eu agradeço, Dr. Inácio. Acho que relembrar tudo isso sobrecarregou meu sistema... Você tem alguma pergunta? - Ele percebeu um certo receio na voz dela.
-Você teme as perguntas.
-Não, doutor. O julgamento das pessoas me incomoda, só isso.
-Eu não estou aqui para julgá-la, Teresa.
-Ah, não - mas vai fazê-lo. É da natureza humana, julgar. - Ele não retrucou.
-Então eu prometo guardar meu julgamento para mim.
-Talvez não seja uma boa ideia essa sua pesquisa, afinal. Estou me expondo a esse julgamento à enésima potência.
-Você quer desistir? Eu não quero pressioná-la, mas essa tua teoria das fórmulas me interessou muito. Queria entender como você percebe a dinâmica dos affairs, como você se referiu às relações extraconjugais. Mas você está livre para resolver o que quer fazer com isso.
-Nem são muitas as minhas fórmulas. Eu acho que nós repetimos fórmulas em nossos relacionamentos, e que elas são um reflexo de nossas personalidades e experiências. Comigo acontece sempre de três maneiras bem diferentes, mas sempre as mesmas três fórmulas: Fernando, Antônio Carlos e Laerte. Te interessa mesmo saber disso?
-Sim, Teresa.
-Então... quando eu volto?
-Na próxima quinta.
-Se eu mudar de idéia, eu prometo que ligo avisando.
-Combinado - ele disse, estendendo-lhe a mão direita. Ela retribuiu sustentando seu olhar, desafiadora.
Ele a acompanhou até a porta, esperou que ela saísse e pediu que a secretária reservasse a próxima tarde de quinta para Teresa. Ignorou a careta da mulher e fechou-se no consultório. Precisava tomar notas antes que seu primeiro paciente da noite chegasse.
Já na calçada, ela olhou a chuva que agora caía pesada. Sorriu, deixou a proteção da marquise, e a chuva a abraçou. A água estava fria. Em segundos ela estava encharcada, e ainda assim seguiu pela chuva, sem dar importância a isso.

(to be continued...)

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Minúcias (parte1)

(Esse conto eu comecei a escrever em 2011, e eu até sabia como ia terminar. Por algum motivo, a ideia me deixou. Agora deu vontade de concluir a história de Tereza, então vou republicar um capítulo por dia, e recomeçar de onde parei. Espero que ela descubra seus motivos...)



E então já era quinta-feira e ela tocou a campainha da sala faltando três minutos para a hora marcada. Uma mulher de meia idade, cabelos grisalhos presos na altura da nuca num coque displicente, abriu a porta e a recebeu com uma careta de desaprovação. Ela riu de volta, desdenhosa. Enquanto esperava, ficou analisando a secretaria do Dr. Inácio: maquiagem carregada, um vestido surrado que um dia já tinha sido azul marinho, unhas muito longas pintadas em um tom de azul metálico, escarpins cinza chumbo. Ela era detalhista, e não via nisso mal algum. Alguém uma vez lhe dissera que Deus estava nos detalhes - e ela passou a entender como um elogio quando as pessoas mencionavam essa sua característica. Mas sabia que era no mínimo rude quando escrutinava alguém daquela maneira. Só não sabia como evitá-lo.

Logo a porta do consultório se abriu e Inácio apareceu na porta. Ele sorriu para ela e pediu que entrasse. Ela devolveu-lhe o sorriso, levantou-se, meneou a cabeça para a mulher entrou na sala contígua. Era muito diferente da antessala diminuta. Era ampla e muito bem decorada, mobiliada com bom gosto e sem afetação. Cada objeto ali parecia ter sido adquirido em anos de viagens pelo mundo, e o resultado era um mosaico de referências a respeito daquele homem que tanto a intrigava. Ele a havia abordado há duas semanas, no seu café favorito, enquanto ela saboreava um espresso curto olhando a chuva. Ela adorava a chuva, e ele fez um comentário certeiro a respeito de como o perfume da chuva ali era especialmente fresco. Ela explicou que a proximidade da floresta era responsável por tal efeito, e a conversa fluiu entre eles. E então ele lhe disse que era antropólogo e psicólogo, e que estava escrevendo um livro sobre infidelidade - e perguntou se ela não queria participar do projeto com seu depoimento. Aquela pergunta feita assim, à queima-roupa, surpreendeu-lhe de tal forma que ela apenas aquiesceu. Ele então entregou a ela um cartão, com o endereço e o telefone daquele consultório. Pediu que ela ligasse e marcasse um apontamento com sua secretária, e lá estava ela, diante dele, pronta para despejar sua história. Mas antes ela precisava saber... Como?

- O quê?

-Desculpe. Acho que pensei em voz alta, Dr. Inácio. Eu sei porque você me pediu para vir até aqui. Isso eu entendi perfeitamente. Mas gostaria muito de saber como foi que percebeu que eu poderia oferecer-lhe algum relato, que eu faço parte da sua amostra - como?

-Há uma qualidade indelével, uma espécie de marca, nas pessoas capazes de amar, Tereza. Eu posso explicar o que vi em você, mas prefiro que você me conte sua história primeiro. Temo que revelar esse detalhe antes do teu depoimento possa interferir negativamente no teu relato. Seria pedir demais que você me contasse o que quiser primeiro, e guardasse a curiosidade para o final?

-Acho que posso aguentar mais um pouco para saber, se isso for uma promessa.

Ele sorriu e concordou com a cabeça, enquanto se sentava atrás da mesa de jacarandá recém polida e encerada (incrível como ela não conseguia se desligar dos detalhes).

-Quanto tempo nós temos?

-Você não deve se preocupar com isso, Tereza. Eu não recebo duas pessoas para o projeto num mesmo dia, e geralmente atendo aos meus pacientes pela manhã ou à noite. Reservei o período da tarde para esse projeto, então sinta-se à vontade para levar o tempo que for necessário.

-E te incomoda se eu não ficar sentada? É que eu elaboro melhor enquanto me movimento...

-Tudo bem.

-Posso olhar os teus objetos, tocá-los? Eles me atraem a atenção.

-Claro.

Então ela respirou fundo, e andou em direção à janela, e a chuva começou a cair quase simultaneamente. Ela encostou no parapeito e ficou olhando a chuva em silêncio. Inspirou profundamente o perfume no ar, e seus olhos se encheram de melancolia. Ela sabia que aquela experiência era no mínimo inusitada. Só não sabia onde poderia levá-la. E ela começou a falar:

"A primeira vez que traí chovia, como hoje. Não foi algo planejado. Simplesmente aconteceu. É engraçado falar disso agora, tantos anos passados... É uma lembrança tão doce que nem parece real. Eu sei que é real, mas nem parece. Faz tanto tempo...

Nós éramos colegas de faculdade. Mesma grade de horários, cursos diferentes, algumas matérias em comum. Nos encontrávamos pouco, sempre nos horários das aulas, e quase nunca nos falávamos. E eu sempre soube que ele seria um amante incrível. Havia alguma coisa nele que eu não sei descrever, talvez a maneira como parecia atento ao que lhe diziam, ou a forma como segurava o lápis enquanto tomava notas das aulas... Ele usava lápis, um detalhe que eu considero sedutor: a possibilidade de apagar tudo e reescrever por cima, sei lá. Você pode considerar isso uma besteira, mas eu vejo significado nas coisas mais banais. Eu sou assim, detalhista."



(to be continued...)

As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...