domingo, 31 de outubro de 2010

O fogo de Prometeu

Não é culpa sua. Se até Zeus ficou puto quando Prometeu se atreveu a cobiçar-lhe o fogo das caldeiras! Não seria você, mortal com delírios de deidade, que aceitaria numa boa encontrar alguém que te desafiasse. E, se Prometeu conseguiu seu intuito, por que não eu?

Roubei sim, seu coração de fogo – e nunca me arrependerei. Sou impertinente e imperiosa, sou uma menina no corpo de uma mulher, sou tão capaz quanto você! E me atrevo e atreverei a questioná-lo, mais uma vez e ainda, até que me satisfaçam tuas respostas.

Você me puniu, e eu entendo. Mas é uma punição incompleta, não é mesmo? Se até o pobre Prometeu – que era um Titã – teve suas entranhas comidas pelos abutres por toda eternidade, por que não eu? E entenda, não me arrependo: os deuses precisam mais dos homens – e por que não dizer, mulheres – que os mortais deles. É de adoração que eles vivem, e sei que Zeus se deleitava assistindo o tormento de Prometeu diariamente de seu trono no Olimpo, mas principalmente para colher a adoração do pobre infeliz. Só que mesmo ali, incapacitado, Prometeu venceu – porque nunca se arrependeu.

E o deus, derrotado pela arrogância do homem, desaparece. Sim, os abutres hão de me comer o fígado todos os dias. E quando você olhar para mim verá a luz que explode das minhas entranhas e se enfurecerá por não poder possuí-la completamente, por não tê-la dobrado, por não ter conseguido arrancar de mim um pedido de desculpas. Nunca vou me desculpar por tê-lo seduzido, fincado minhas unhas na tua vaidade e te arrastado para a minha rede. E nunca vou me retratar por tê-lo deixado – foi o melhor para mim, e o melhor para você, no fim das contas. Afinal, você nunca admitiria, e nunca o fará: eu cheguei perto demais e você se apavorou, se afastou e me pôs de lado de propósito, para que eu tomasse a atitude que você foi covarde demais para tomar.

Só não me peça de volta o pedaço do teu coração ígneo que roubei para sempre: ele é meu, e você sabe. Meu por direito. Faça essa cara blasé, demonstre desinteresse, aja com o distanciamento que quiser. Há em um ponto do teu coração a ferida mal-cicatrizada deixada lá por meu amor perfeito.

Não.

Não há de sarar jamais.

(Deal with it)



quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Permanência (parte 4)

Desceram as escadas para a área de convivência de mãos dadas. Ela estava nervosa, apreensiva. Ele, ao contrário, parecia radiante. Ela nem se lembrava de tê-lo visto com aquela expressão antes. Pelo menos não em muito tempo. No fundo de sua cabeça, aquela imagem só encontrava um par: o dia em que ficaram juntos pela primeira vez. O dia do beijo.

Sentindo sua apreensão, Luís perguntou:

- Rachel, você está bem?
- Quê? Ah, sim, claro, Luís...
- Você está meio nervosa. O que mudou no caminho do quarto até aqui?
- Nada, Luís, nada. É que o pessoal está esperando te ver com a Maria, e você desce as escadas de mãos dadas comigo, assim, nessa intimidade toda... Acho que o pessoal vai ficar imaginando coisas. Coisas que eu não quero que eles imaginem.
- Como o quê?
- Que eu e você já estávamos de caso há tempos e que eu fui o motivo da tua separação - e que é muita cara de pau da gente. "Coitada de Maria... Nem estão separados oficialmente e eles já estão circulando juntos..."
- Você se importa com isso, Chel?
- Eu não sei o que pensar, Lu. Tudo aconteceu muito rápido para mim.
- Eu vim até aqui só para ficar perto de você. Para ver você, ter a chance de conversar com você. Na tua cabeça pode ser uma coisa inesperada, surpreendente. Mas eu não teria vindo se você não fosse estar aqui. Eu gosto do pessoal, não me entenda mal. Mas eu quero você. E não me importo.

Ela ficou sem palavras. Não podia retrucar, nem resistir. Era como sempre fora: ele sempre tinha a última palavra, o último argumento. Sempre claro, mesmo que nem sempre transparente. E era essa característica dele que a deixava apreensiva. Ele era translúcido - as coisas que ele dizia tão claramente pareciam aos seus olhos vultos e contornos, nunca imagens reais. Ela era totalmente transparente para ele. Não sabia mentir nem disfarçar. Nunca pode ocultar o amor que sentia por ele, nunca foi capaz de fingir-lhe indiferença. Ele, por outro lado... Quantas vezes na história dos dois ele fora uma incógnita? Ela já não sabia mais. Esforçou-se para agarrar a lembrança de seus olhos radiantes, exercitou os músculos da confiança, respirou fundo e apertou sua mão na dele. Sorriu e concordou, com um dar de ombros seu característico, que ele sabia significar "ok, vamos lá, what the hell..."

Eles encontraram os colegas já bastante adiantados nos trabalhos etílicos, e todos os receberam efusivamente. Circularam juntos o tempo todo, e Luís dificilmente soltava sua mão. Quanto se afastava era para buscar alguma coisa, ou falar com algum amigo mais chegado - mas em poucos minutos suas mãos estavam ali, tocando seu corpo, suas costas, seus braços. Muitas vezes ela se deixou envolver pela cintura, num abraço bastante íntimo. Renata e Helena estavam em cólicas, e Rachel não pode conter o riso umas duas ou três vezes em que Luís estava de costas para as duas e elas tentavam fazer a inquisição na linguagem de sinais.

- Rachel, vai lá tranqüilizar essas criaturas, pelo amor de Deus!
- Do que você está falando, Lu?
- Ah, Chel, a Rê e a Lena vão ter uma síncope já-já! Elas não param de olhar para cá, cada uma mais arregalada que a outra! Vai lá e conta para elas.
- Tudo bem para você?
- Claro! Mas com uma condição.
- E qual é? - Ele se inclinou e sussurrou em seu ouvido:
- Volta logo para mim...

As amigas mal podiam se revezar durante o que lhe pareceu o interrogatório mais atrapalhado do século! Ela contou o que acontecera em linhas gerais, reservando para si o direito de calar a respeito dos detalhes. Estava apaixonada como uma adolescente, pelo seu amor da adolescência. Parecia a coisa mais improvável e estúpida a se fazer, mas ela sentia que nada podia ser mais perfeito. as amigas ainda tentavam chamá-la a razão, dizendo que aquilo era uma loucura, que todo mundo ia ficar falando - mas ela só pode calá-las com os argumentos de Luís, mesmo que ela mesma estivesse tão assustada quanto elas. A conversa com elas demorava tanto que Luís desistiu de esperar.

- Oi, meninas. Será que vocês podem devolver a minha garota?
- Você é petulante, hein, Luís? - disse uma Helena meio ressabiada.
- Até sou, mas essa nem é a minha principal qualidade. Vamos, Rachel? Já estou com saudade.
- Tchau, meninas. A gente conversa mais depois...

Ele segurou sua mão novamente. Ela evitou os pensamentos que a conversa com Renata e Helena tinham suscitado. Deixou-se guiar para fora do salão. Precisava mesmo de ar fresco. Ele puxou seu corpo para junto. E a beijou ali, onde todos pudessem ver.

- Você não tem mesmo nenhum problema com isso, né?
- Não, meu amor. Não mesmo. E nem me parece que nós devamos nos preocupar. "Eu e você" estava escrito. E pronto. Acho que já fizemos figuração por muito tempo. Vamos sumir daqui?
- Acho ótima idéia!

Deixaram a reunião de colegas de escola e subiram juntos as escadas para o segundo pavimento. Sem combinação prévia, caminharam juntos em direção ao quarto dela.

-Sempre achei esse seu quarto lindo... A gente ficou aqui da outra vez, lembra?
-Claro, querido. Eu nunca vou me esquecer daquele fim de semana da formatura.

Dentro do quarto era outro mundo, um mundo onde ela podia responder ao impulso incontrolável de grudar seu corpo ao dele e esquecer tudo o que ficou para trás. Ela sempre pensava nele como uma grande jazida de magnetita, e em si como uma pequena aresta de ferro: a atração era irresistível e ele já tinha feito demais em evitá-la por tantos anos.

Ele não sabia explicar: como, mesmo tanto tempo depois, tantos anos de distanciamento frio, eles ainda podiam sentir tanta paixão assim um pelo outro. Ela era a mulher mais encantadora, mais inteligente, mais luminosa que ele já conhecera, e nunca houve um dia em que não sentisse sua falta, mesmo quando já não se viam há muito, mesmo se ninguém dissesse seu nome. Todos os dias pensava nela. Todos os dias passava pela porta do seu prédio, olhando, vigiando. Ele queria mantê-la por perto, ela rechaçara todo e qualquer contato.

E mesmo assim, um nos braços do outro - e o mundo podia acabar.

(To be continued...)

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Devoção

E me lanço ao mundo, como o pescador lança a rede ao mar. Eu me jogo, eu me entrego, eu enfio a colher no meio do prato de mingau, sem medo de me queimar. O que vier na rede é meu, e eu o recebo feliz e agradecida. Lanço as redes com esperança renovada, todos os dias - nunca se sabe o que o mar pode trazer - e é este o exercício último de devoção do pescador pelo mar.

Assim eu amo, assim me ofereço, assim sou a encarnação da devota e da deusa ao mesmo tempo: sou Afrodite e sou Hera, sou Diana e Atena. E sou a sacerdotiza em seus templos, serviçal e solene.


sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Permanência (parte 3)

Rachel e Luís eram os únicos instalados na casa grande. Os outros colegas tinham optado por apartamentos ou chalés, para acomodar a filharada. Parecia que só os dois tinham pedidos quartos simples, e ela ficou imaginando por que a Maria não viera - mas preferiu não perguntar. Embora a trégua estivesse estabelecida, não convinha cutucar a onça, e ele era hipersensível - talvez se ofendesse com a pergunta e tivesse um ataque. Ela preferia a trégua, porque não queria ter de lidar com um clima no meio do fim de semana. Ele a ajudou a subir com sua mala, e descobriram que estavam no mesmo andar:

- Quer que eu te acompanhe até o quarto, Rachel?
- Não precisa, Luís, sério. Eu posso arrastar a bagagem daqui em diante. - Ele sorriu e aquiesceu.
- Tudo bem, então. A gente se vê no brunch?
- Claro! Imagina o chilique que a Renata vai dar se eu não descer?

Despediram-se entre sorrisos, com um aceno de cabeça - e ela ficou grata por isso. Preferia evitar o contato físico. Enquanto se afastava, ela pode sentir o olhar dele sobre ela, acompanhando-a a distância. Aquilo sempre a perturbava, aquela mania dele de bancar o bom moço, como se estivesse cuidando dela mesmo sem estar ao seu lado. Incrível como no passado era uma das coisas mais sedutoras a seu respeito...

Já instalada, Rachel resolveu tomar um banho antes de descer até a área de convivência do hotel, onde todos os ex-colegas se reuniriam em poucos minutos para um brunch. Era a idéia de Renata de uma abertura chique para o evento: "ah, gente, não é o máximo? Bebericar um prosecco e jogar conversa fora entre uma beliscadinha e outra?"A Rê sempre fora a fresca da galera - mas tinha bom gosto, e ninguém negava. Era um luxo sim, e todos acharam a idéia ótima. Ela olhou o quarto e ficou muito satisfeita. Era o mesmo em que ficara instalada durante a viagem de formatura. Ficava no final do corredor da ala norte do prédio. Por isso, tinha duas janelas: uma dava para a frente do hotel e a outra estava voltada para a área da piscina natural. Se ela se sentasse nesta, podia ver ao fundo as estrebarias e a área de arvorismo - um pré requisito moderno para hotéis fazenda como aquele. Ela achou maravilhoso estar ali de novo, e inspirou profundamente. Adorava o cheiro de grama recém aparada, da água daquela piscina, o cheiro dos estábulos até. Sobre a cama, havia um pequeno arranjo de flores e uma cestinha com bombons - um brinde de boas vindas - e junto a eles um folder com a programação do hotel naquele fim de semana. Ela sentou na cama e passou os olhos pelo impresso. E não pode conter uma gargalhada. "A Lena é uma figura mesmo..." Sabia que aquilo só podia ser coisa da amiga: ao lado de cada atividade que ela sabia que Rachel não curtiria, uma notinha do tipo "Vamos lá!"ou "Deixa de preguiça!"e "Por que não tentar?" Ainda rindo, levantou e despiu-se para o banho.

A água estava deliciosa, temperada na medida para um banho relaxante e revigorante ao mesmo tempo. Deixou que a água lambesse seu corpo e lavasse as preocupações. Tantos anos depois, o que importava seu passado com Luís? Ela ainda balançava quando o via, não podia negar. Mas o que ele tinha com isso? Ela sabia que era problema seu. Ele provavelmente já havia descido, e estava agora sentado numa espreguiçadeira rindo e tomando um prosecco com os outros colegas, sem nem se lembrar que tinha vindo com ela. Enrolou-se numa toalha macia e deixou-se ficar ainda um pouco deitada na cama, pensando no que deveria vestir. Imaginou tudo que tinha trazido na mala e decidiu usar um vestidinho de verão frente única, estampado com flores. Estava bem quente aquela hora, e só deveria esfriar mais tarde. Vestiu-se rapidamente, ajeitou os cabelos num rabo de cavalo alto e passou um batom cor de boca - sem nem se olhar no espelho - e saiu para o corredor.

Ele estava sentado no chão, na frente da sua porta.

- Nossa, que visão!
- O que você está fazendo aqui?
- Ah, eu não quis descer sozinho...
- Então levanta, vai. A gente já está atrasado.
- Achei que você ia me perguntar de novo pela Maria.
- Por quê?
- Ué, foi a primeira coisa que você quis saber... Eu pensei...
- Luís, olha só: não vai dar certo isso. Se você quer me dizer alguma coisa, diz logo.
- Ela ficou no Rio. A gente está se separando.
- O quê? Nossa... Desculpa, Luís... Foi insensível da minha parte.
- Não, tudo bem. Eu só queria tirar isso do nosso caminho.
- Você está bem?
- Ótimo, meu anjo. Não há razão para se viver uma mentira a vida inteira, só porque você prometeu.
- E ela? E o Marquinhos?
- Acho que estamos todos nos acostumando com a idéia. Olha, eu queria te contar antes de descer. Não quero que você me ouça falando da separação casualmente, numa rodinha de colegas de escola. Eu sei como você leva essas coisas a sério.
- Obrigada pela consideração, Lu. Estou me sentindo mal por não ter percebido antes, quando você usou aquele tom de descaso pela manhã, na portaria do meu prédio. Se houver alguma coisa que eu possa fazer...

Ela não pode continuar. Ele se arremessou sobre ela num impulso, e a beijou como sempre. Como nunca. Ela ainda tentou resistir, tentou refrear seu impulso. Foi para ela também inevitável ceder. Sentir a proximidade de seu corpo, o calor dos seus braços, o gosto da sua saliva - nada era novidade, e era um mundo novo. Sem separar seus lábios dos dele, ela encostou na porta do quarto e a abriu, deslizando para dentro colada a ele. Bateu a porta às suas costas ainda presa àquele abraço, àquele beijo - como uma mosca na teia da aranha. Era o beijo da morte, mas era tão bom...

O beijo só terminou quando já estavam nus, os dois sobre as cobertas da cama, ele deitado sobre o corpo dela, dentro dela, suas mãos entrelaçadas enroladas aos lençóis, os dois suados, ofegantes, excitados. Entregues.

Ela olhou para ele, e encontrou seus olhos no mesmo movimento. Nada disseram por longos minutos. Ela quebrou o silêncio com um suspiro. Ele sorriu e disse:

- Se a gente descer agora, talvez ainda tenha um pouquinho de prosecco para você, meu amor...
- Eu já estou embriagada, obrigada.
- Vamos. A gente toma um banho e desce. Ou não...
- Vamos descer sim, Luís. O pessoal está esperando por nós.
- Eu esperei por você muito tempo - e você está aqui, agora. Eu poderia ficar aqui o fim de semana inteiro.

Ela não replicou, por não saber o que pensar. Todo aquele tempo mantendo distância tinha sido inútil diante da força do desejo dele. Ela sabia que não devia ter cedido - mas era tarde demais para pensar nisso agora. Precisavam descer, encontrar as pessoas. E depois decidir o que fazer.


(To be continued...)

Gueixa

"Merda, Pumpkin! Se você não queria ser gueixa, veio estudar nessa porra de escola por quê? Responde, Pumpkin!"

Ela não sabia o que dizer. Manteve sua cabeça baixa e seus olhos no chão, como se esperasse que este se abrisse e lhe tragasse por inteiro. Ela pensava que seria mais fácil morrer, e invejava a sorte das meninas de saúde mais frágil e vontade menos resoluta. Como queria ser como elas: deixar a vida por doença ou suicídio. Mas sabia que a Morte só viria para levá-la quando já estivesse gasta pelos anos.

"Merda, Pumpkin, responde!"

Ela em silêncio. Sempre em silêncio. Há momentos em que resposta nenhuma é a melhor resposta. Logo viria o abraço e o perdão. E ela seguiria adiante, sem olhar para trás.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Queixa

Você roubou a minha caixa de crayons coloridos, minhas canetinhas e meus lápis de cor.

Sorte sua eu não ser egoísta. Mas você podia ter simplesmente pedido...

(Enquanto isso uso as cores do meu arco-íris pessoal para colorir a minha vida.)


domingo, 17 de outubro de 2010

Permanência (parte 2)

A viagem acabou parecendo mais curta, à medida que o distanciamento dava lugar à antiga intimidade. Afinal, tinham sido colegas por três anos - até que se tornaram amigos. Muitas viagens de trem depois, a amizade se transformou em outra coisa. Claro que todos os amigos em comum já tinham percebido que havia fogo sob aquela cortina de fumaça - mas eles não pareciam dar atenção àquilo. Pelo menos até uma tarde chuvosa de maio, em que se sentaram num banco sob o bloco E (de engenharia) e ela deitou a cabeça displicente em seu peito, os olhos cerrados.

Ele nunca mais olhou para ela do mesmo jeito depois daquilo. A única coisa em que podia pensar era que precisava encostar seus lábios nos dela, descobrir que gosto tinha sua melhor amiga, tocá-la de alguma forma que não fosse fraternal. Nem sabia dizer de onde viera o impulso, mas jamais se arrependera - fora o melhor, mais intenso e apaixonado beijo que ele já havia experimentado na vida.

Ela nunca soubera de onde aquele beijo tinha vindo, mas também não sabia dizer por que diabos ele tinha demorado tanto para tomar aquela atitude. Ela não tinha olhado para ele daquela maneira antes. Só que, naquele momento, seus lábios nos dela, parecera a única coisa certa nesse mundo. Ela jamais havia sido beijada daquele jeito. Nem jamais seria. Tudo nele era perfeito para ela, e só ali, em seus braços, ela tinha finalmente percebido isso.

Mesmo agora eles viviam à sombra daquele beijo. E ainda persistia aquela cumplicidade antiga, derretendo o gelo de anos de distância e ressentimento. Eles não se atreveram, entretanto, a verbalizar o que estava claro. O equilíbrio retituído durante as breves horas do trajeto, desde que o gelo fora quebrado, era delicado, e nenhum dos dois estava disposto a brigar. Curiosa e surpreendente, a trégua se estabeleceu sem que fosse necessário discutir seus termos - e ambos sabiam que era melhor assim, para o bem do fim de semana.

Chegaram ao hotel em pouco mais de duas horas, e ainda estavam rindo quando saíram do carro. Deram de cara com uma Helena tensa e uma Renata temerosa. Rachel apenar sorriu e cumprimentou as amigas:

- Olá, comissão organizadora! Parece que foi ontem a formatura, hein? Esse lugar não mudou nada...

As duas se entreolharam, desconfiadas:

- Fizeram boa viagem? - Foi a vez de Luís responder:
- Claro! Ou vocês pensaram que a Chel ia chegar aqui com o meu fígado meio comido?

Todos riram, e foi o suficiente para descontraí-las, e ele se afastou para pegar as malas no carro. Quando se viram sós com ela, as duas começaram a inquisição:

- O que aconteceu, Chel? Ele se comportou durante a viagem, ficou tudo bem?
- Nossa, meninas... Eu pensei que tivesse dado para perceber que a gente veio bem. Começou meio mal, mas a viagem acabou sendo tranquila. Eu vim dirigindo desde o posto de gasolina. Foi legal.
- E... você está bem, amiga?
- Por que não estaria?

A ausência de réplica fez cair entre elas o véu da trégua, e quando o Luís voltou com as malas, ela pode ainda sorrir e agradecer - e receber seu sorriso de volta. Um sorriso aberto, largo, cheio do charme que ele sempre transbordara. E com aquele ingrediente secreto, capaz de tirá-la do sério. Ela pegou sua bagagem e virou-se em direção à recepção, para evitar seu olhar penetrante. E vestiu a armadura, apesar da trégua. Era preciso se preparar para o ataque surpresa...

(To be continued...)

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Permanência (parte 1)

Encontrá-lo não foi fácil.

Depois de tantos anos, todo o trabalho que teve para evitá-lo foi por água a baixo naquela tarde. Era o encontro do aniversário de vinte anos de sua antiga turma do curso técnico e ela, que tinha sido muito ativa durante aquele período, sentia que não podia recusar o convite da comissão organizadora: duas de suas melhores amigas tinham tido essa idéia brilhante - e no início ela nem se opusera. Tinha achado uma idéia excelente, de fato. E então, a idéia brilhante: "e os meninos do quarto ano? A gente não deveria chamá-los também?"

Ela fora muito resistente, e as duas sabiam muito bem por quê. Então elas consideraram que talvez nem devessem chamar a todos - e ela percebeu que concordar naquele ponto seria uma confissão de pânico. E de imaturidade também. Depois de algumas conversas mais, dividiram a lista de telefones, e obviamente o número dele não constava da lista que veio parar em suas mãos.

A cada telefonema dado ela ficava mais animada. Seria tão bom reencontrar os antigos colegas, tão queridos e importantes em sua vida, estar com eles por todo um final de semana! Era a idéia perfeita: repetir a viagem de formatura, para um hotel fazenda em Mendes, no estado do Rio. "É tão pertinho, Rachel! E podemos levar as crianças, né? Tem recreadores!!!" Ela entendia as preocupações das amigas, embora não compartilhasse delas. Tinha sido casada por cinco anos, mas não tiveram filhos, e depois do divórcio ela nunca mais pensou em casamento. Gostava de dizer aos amigos que aquilo era coisa que só se faz uma vez na vida - como ir à Austrália ou pular de bungee jump. Ela já tivera a sua cota de cuecas para lavar, jantares para preparar e lugares para ir acompanhando o marido. Prezava demais sua liberdade, e dizia que flertada com a solidão a tantos anos que quando encontrou a chance de ficar com ela não pensou duas vezes!

No dia da reunião para os últimos preparativos da viagem, Helena quis conversar com ela em particular, antes de Renata chegar com sua listagem final.

- Chel, preciso falar sobre o Luís.
- Por que, Lena?
- É que ele confirmou presença...
- E?
- Ah, Chel, você sabe por que essa conversa, né?
- Lena, sério: e?
- Ele disse que só iria se você fosse também. disse que você era a única pessoa da turma que ele queria ver novamente.

Ela nem sabia o que fazer com essa informação. Afinal, por que ele resolveria torturá-la mais um pouco, quase dez anos que não se encontravam, quase dois anos desde seu divórcio? Ele era casado, ela estava presente à cerimônia - como madrinha. Era esse o tipo de requinte de crueldade de que ele usara à época. Ele queria que ela estivesse ali, no altar, assistindo seu enlace... Que cretino! E agora é que a Helena dizia isso a ela!

- Acho que quem não vai a esse final de semana no campo sou eu.
- Pára, Rachel. Pára agora, por favor! Você não está pensando direito. Vai ver ele quer te pedir desculpas, talvez acredite que vocês precisam conversar, talvez... - ela nem deixou a amiga completar a frase:
- Pára você, Lena! Pára de inventar desculpas para o Luís, tá? Ele é adulto e sabe bem se defender, não precisa de advogado de defesa.
- Tá, tá bem... Cruzes, que ódio hein, menina? Você precisa se libertar disso.

Então Renata chegou e elas encerraram o assunto. As semanas passaram rapidamente, ela ocupadíssima fechando um novo contrato para sua produtora, as meninas resolvendo os últimos detalhes da viagem. Quando deu por si, já era quarta-feira. Elas tinham reservado um fim de semana prolongado, com feriado na sexta, e iriam viajar na quinta pela manhã. Tinham também montado um esquema de transporte solidário, onde quem tivesse lugar sobrando no carro levaria alguém que estivesse a pé. Era seu caso: o carro precisava de manutenção, e como era só ela mesma, pediu carona. Ela nem sabia com quem iria, e ligou para a Renata para descobrir quem seria seu motorista. Ela desconversou. Disse que a lista estava com a Helena, e que ela não sabia de cor. Então, ela ligou para a Helena. A amiga disse que ela iria com o Olavo, e que ele tinha combinado de ligar para ela combinando o horário da saída ainda naquela tarde. Mas ela tinha o número do telefone do Olavo, e não quis perder tempo. Ligou:

- Oi, Olavo?
- Ele!
- É Rachel, tudo bem?
- ...
- Olavo, você está me ouvindo?
- Ah, claro, Chel... Só estou meio distraído. Tudo bem?
- Sim, malas prontas e tal. Estou ligando para saber como vai ser amanhã. Você quer que eu vá até a sua casa ou prefere marcar um ponto de encontro?
- Ah, eu peguei seu endereço, querida. Não esquenta de vir até aqui! Afinal, passar por aí é meio que caminho, né? Pode ser tipo umas 8h, 8:30h?
- Olavo, você que manda! Eu fico esperando na portaria, que é para a gente não se atrasar, ok?
- Combinado! Eu tenho um Punto preto - fica de olho.
- Obrigada, querido.
- Disponha!
- Um beijo, tchau.
- Tchau.

No dia seguinte, cinco minutos antes da hora combinada, Rachel resolveu descer para a portaria do edifício onde morava, para evitar qualquer inconveniente ao amigo. Estranhou quando o Corola prata estacionou bem na frente do prédio. "Que saco! Agora, quando o Olavo chegar vai ser difícil ele arrumar um lugar para parar... " Estranhou ainda mais quando o motorista do carro abriu a porta, e olhou para ela, sorrindo. "Só pode ser sacanagem!" Era o Luís, andando ma direção da portaria, sorrindo o tempo todo.

- Bom dia! Vejo que continua paranóica com relação aos horários...
- O que você está fazendo aqui?
- Nossa! Nem bom dia? Foi a recepção mais fria da minha vida!
- Nem começa, Luís! Cadê o Olavinho? Ele combinou que vinha me buscar.
- E eu combinei com ele que era melhor você ir comigo.
- Com que direito? E cadê a Maria?
- Ai, que grosseria, hein, Rachel? Eu não tenho idéia da programação da Maria para hoje. Depois de tantos anos, parece que você continua a mesma.
- E você também, manipulador egoísta!
- Bem, agora que já fizemos nosso catching up, deixa eu pegar a sua bagagem.
- Pode deixar, eu vou de outro jeito.
- Ah, vai arrumar um taxi prá te levar até Mendes agora...
- E se eu não quiser passar duas horas e meia de viagem sentada do teu lado?
- Tem sempre o banco de trás... Mas eu acho que a gente conversa melhor se você for sentada no banco da frente.

Ela não respondeu. De alguma maneira, ele sempre terminava as discussões. Para o bem ou para o mal. Incapaz de tomar uma atitude, ela assistiu enquanto ele entrou no jardim da entrada do prédio, pegou suas malas com desenvoltura e se dirigiu até o carro, abriu o porta-malas e guardou sua bagagem. Abriu então a porta do carona para ela e esperou que entrasse para fechá-la.

- O filho do Olavo está internado na emergência do Copa D'or. Crise aguda de bronquite. Eles não vão mais viajar. Ele achou que você ia entender.
- Meu Deus! Será que eu não devia ir até lá, prestar solidariedade?
- Faça isso por telefone, querida. O dia está lindo e provavelmente vai esquentar - e eu não quero pegar a estrada mais tarde.

Viajaram por quase uma hora em silêncio - um silêncio pesado, denso, que se poderia cortar com uma faca - quebrado somente no início, pelo som da voz de Rachel ao telefone com Olavo, perguntando pelo menino. A conversa foi rápida, ela ficou mais tranquila, mas ainda estava irritadíssima com o amigo. "Custava ele me avisar que não poderia me buscar?" Mas ela sabia que talvez não tivesse cabeça para avisar nada a ninguém se seu filho ficasse doente. Era estar tão perto dele que a deixava tensa. Sempre houvera essa tensão entre eles.

Ele resolveu parar num posto de gasolina. Virou-se para ela e disse:

- Eu preciso completar o tanque, e estou com fome. Se você puder ficar aqui enquanto abastecem o carro, eu vou lá na conveniência. Quer alguma coisa?
- Não, obrigada. Pode deixar esse abastecimento comigo - eu proporia o mesmo ao Olavo.
- Não precisa, boba. Eu iria fazer a viagem sozinho, ia gastar o mesmo combustível. Só me faz um favor?
- Sim?
- Tenta ser menos chata durante o próximo trecho, ok? E, se você quiser, pode dirigir o carro.

Ela ficou ali, imóvel, enquanto ele se afastava em direção a loja de conveniência, olhando para ele enquanto caminhava. Não sabia por que, mesmo depois de todos esses anos, ele ainda provocava todos aqueles sentimentos nela. Quando o frentista terminou o abastecimento, ela pediu que verificasse água e óleo, completasse o compartimento do limpador de párabrisas e lavasse os vidros - mais para fazer hora do que porque fosse necessário. Quando ele voltou, o carro estava pronto para prosseguir, mas ela não.

- Tenho que ir ao banheiro.
- Banheiro de posto, Rachel? Tem certeza? A gente pode parar mais adiante, num lugar mais limpinho...
- Não, Luís, a gente já perdeu um tempão aqui, vamos chegar tarde demais no hotel fazenda se formos parando como um trem da Central!

Eles riram. riram muito. Tinham usado o Parador por tantos anos... Quantas vezes pegaram aquele mesmo trem juntos, indo ou voltando da escola, rindo como agora?

- Numa boa, Lu. Eu não sou assim tão fresca - sou suburbana por dentro.
- É a primeira vez hoje que você relaxa de verdade.
- Ah, é, espertalhão? E por que?
- Você não me chama de Lu há uma década.

Ela sorriu sem graça e virou-se na direção dos banheiros. Estava trêmula, e não conseguia pensar direito. Ela realmente o tinha chamado de Lu - "um diminutivo para um nome diminuto", como ela costumava dizer, brincalhona, naquela época. Era um deslize que não poderia se repetir.

Voltou rapidamente e perguntou se poderia mesmo dirigir seu carro. Ele assentiu e ela sentou-se atrás do volante. Sempre quis dirigir aquele carro, e aproveitou a oferta dele sem inibições - sabia que era boa motorista, e pelo jeito ele também se lembrava disso.

Detrás do volante, o tempo passava mais depressa, e ela pisava fundo no acelerador, encurtando as distâncias. Ele não reclamava. Parecia até estar curtindo o momento, e eles conseguiram entabular uma conversa sobre amenidades, como a previsão do tempo para o final de semana e o resultado da megasena. Mas a tensão estava ali, e os dois sabiam que ela não desapareceria, simplesmente. Aquela tensão sobrevivera ao tempo e a distância.

Ela não iria a lugar nenhum.


(to be continued...)


domingo, 10 de outubro de 2010

Nojo

Quando eu finalmente te matar dentro de mim eu reapareço, cretino. É, é você mesmo, seu mentiroso.

sábado, 9 de outubro de 2010

Under the influence of the moon...

Silêncio.

Tudo em mim é silêncio. Não é proposital. É um movimento para dentro, é o deslocamento da alma na direção dos processos misteriosos que se desenrolam no íntimo do meu corpo.

Os personagens que me habitam normalmente perderam a força para esse intruso, que já foi microscópico e minúsculo, hoje é mínimo, e em breve será grande - mas já é perfeito, porque é meu, e é nosso, e está presente.

A sua companhia, que ainda é indelével, a cada dia se avoluma, e logo será impossível que me passe despercebido. E, na velocidade do tempo que passa, logo estará em meus braços, e eu o alimentarei no meu seio, e a minha vida estará completa.

Então quero dizer que talvez, só talvez, eu fique um pouco distante desse lugar aqui. Não o abandonarei porque é parte de mim - e uma parte importante, que negligenciei por tanto tempo e que hoje me é carissíma. Mas tenho tanto em mim agora a que preciso dar atenção...

Amo todos vocês, meus amigos, meus leitores - tão poucos e tão fiéis - que me acompanharam nessa redescoberta. Perdoem meu distanciamento, e o decréscimo de qualidade que eventualmente sofram meus já nem tão bons escritos. Até a próxima...


As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...