quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Flores e morte

O Flamboyant vermelho me sorri. Ele ousa me dizer coisas que eu finjo desconhecer - só para que ele continue me contando. Há luzes e cores onde deveria haver somente morte. Ele prevalece onde eu me encolho.

À sua sombra.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Parênteses

Todas as semanas aquele quarto de hotel testemunhava impassível ao encontro dos amantes. E a cada semana eles se esmeravam mais no jogo do amor. Um completava o outro perfeitamente. Era como se lessem os pensamentos um do outro, e já não havia espaço que não tivessem explorado, como se não houvesse fim para aquele desejo que era mais poderoso que a vontade dos dois. Já havia 15 anos, e eles ainda se queriam como então, como quando eram jovens e livres. Só não eram mais: nem jovens, nem livres.

Ela era mãe de dois lindos meninos. Ele, pai de um rapaz. Cada um com sua vida real, com sua família - e dividindo a dinâmica do parêntese. Era assim que ela chamava aquela segunda à tarde, há mais de uma década: parêntese. Era como uma vida paralela, uma ornamentação que conferia um colorido todo especial às suas vidas reais. O grande dilema nunca havia atingido aos dois, enquanto seus corpos entrelaçados dançavam segundo o ritmo - ora cadenciado, ora frenético - das segundas-feiras.

E no entanto, tal como ela já pressentia, dia de muito é sempre véspera de pouco... E não havia porque a vida poupá-la do grande dilema. Ela era feliz em sua vida real, sentia-se parte de algo vivo e pulsante enquanto preparava refeições e conduzia filhos e marido para seus compromissos, enquanto gerenciava a casa e punha ordem em seu pequeno sistema planetário.

Ele não. Vivia uma relação onde sentia-se oprimido e negligenciado, como se fosse acessório e não protagonista de sua vida em família. Hoje, 15 anos depois, o filho criado, ele não via porque deveria continuar ali, atado a convenções em que nunca acreditou. Ela não entendia porque, depois de tantos anos, ele não poderia simplesmente permitir que as coisas entre eles continuassem como estavam, como sempre estiveram.

Ele insistia em dizer que aqueles parênteses não atrapalhavam a sua vida. Ela já não acreditava mais. Ela lhe dizia que nunca saberia olhar para ele como um amigo. A mesa do grande dilema posta à frente deles, e nenhum dos dois tinha a coragem de pegar nos talheres e iniciar o banquete.

Talvez ela precisasse ter força pelos dois, dali para frente. Mas não cruzaria os braços, esperando da vida a resolução daquele problema. A vida lhe daria o que ela queria, simplesmente porque era assim que ela queria!

Levantou-se. Beijou-lhe a boca como sempre. Como desde sempre. Deu-lhe as costas e saiu porta a fora. Como nunca. Como nunca mais. Diante dele, sobre seus braços cruzados sobre o peito, um bilhete:

(Serei sempre tua, mesmo que você nunca mais me procure. Mesmo que esse quarto de hotel nunca mais testemunhe o nosso amor. Mesmo que você me diga que parênteses não são necessários: quem escreve a história da minha vida sou eu, e eu adoro parênteses...)


sábado, 13 de novembro de 2010

Mulher Gato

Às vezes a vida lhe pregava peças, e ela ficava dividida entre caminhar na linha e deixar-se levar.

Ela sempre fazia suas escolhas por ocasião de seu aniversário. E a data se aproximava rapidamente... Dessa vez a decisão era bem simples, mas por algum motivo ainda era difícil para ela a transição entre o que era certo e o que era fácil. Dessa vez, o fácil era o certo. Difícil era decidir o que a outra opção representava. Se não era mais uma questão de saber discernir entre o fácil e o certo, como ela poderia usar sua bússola dali por diante?

De repente era o dia, e a escolha urgia, e ela fez o que precisava fazer. Doeu sim, foi como cortar a própria carne, mas ela sabia que ficaria bem. Mesmo perdendo muito sangue, mesmo que lhe custasse uma de suas cinco vidas. Ah, é claro que ela já fizera a escolha antes... Duas outras vezes. E ainda tinha outras cinco oportunidades de acertar pela frente - antes de arriscar sua vida definitivamente. O que a surpreendia era ter se enganado tanto. Daquela vez ela sentira ter tocado a perfeição com as pontas dos dedos... A menina dentro dela parecia ter encontrado o garoto ideal.

Daquela vez não se deixaria levar. Tomaria as rédeas de sua vida novamente. Deixar-se levar pela vida era coisa de quem não tinha aprendido a se responsabilizar pelas próprias escolhas.

E isso ela já sabia fazer. Tinha aprendido isso há pelo menos duas vidas atrás...

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Permanência (final)

Ela respirou fundo. Não podia ignorar tudo o que eles tinham vivido naquele fim de semana. Por outro lado, não podia ignorar a dor física que sentia só de lembrar daquelas duas semanas, há dez anos atrás, quando o mundo parecia ter deixado de existir, quando nada fazia sentido, quando ela pensava que talvez fosse melhor morrer a voltar à escola e vê-lo novamente. Ela não podia entrar naquele carro, sentar-se ao lado dele e simplesmente agir como se nada tivesse acontecido. Estava claro que aquele era o momento do tudo ou nada, e que ela teria que resolver se podia ou não lidar com todos aqueles sentimentos reprimidos por toda uma vida.

Ele estava apavorado, da mesma forma que estivera naquela ocasião, quando ela desapareceu e cortou toda e qualquer oportunidade de contato. Ele não tinha chão sem ela por perto, o chão podia se abrir e tragá-lo e ele nem se importaria - tudo o que ele queria era poder olhar em seus olhos e dizer-lhe a verdade, toda a verdade: que ele fora um fraco, que não tinha sido digno da confiança dela, que entendia se ela nunca mais quisesse vê-lo - mas que a amava e não queria casar com Maria! Se ela tivesse ouvido, se tivesse sido capaz de enfrentá-lo! Se ela tivesse explodido em impropérios, se tivesse gritado e cuspido nele, se ela ao menos tivesse reagido! No fim das contas, ele sabia que aquela ausência era a reação mais grave. Ele imaginava o quanto ela estava sofrendo por causa daquela maldita transa inconseqüente sem camisinha! Se ele pudesse ao menos se explicar... Mas sabia que nenhuma explicação era explicação suficiente.

As escolhas que fizeram tinham trazido os dois até ali. Tinham estado juntos por todo o fim de semana, conversado sobre tudo - e tinham evitado o único assunto que não podia ser calado. Estavam pagando caro demais pela ingenuidade que escolheram abraçar durante aquelas horas doces de idílio. Naquele momento, tudo o que Rachel queria era fugir dali. Tudo o que Luís queria era dissuadí-la. Ele sabia que talvez a tivesse perdido para sempre, depois da chegada de Maria.

Ao invés de ficar ali, esperando que as coisas se resolvessem, Rachel resolveu ir se despedir dos amigos. Helena e Renata estavam muito preocupadas. Perguntaram se ela não queria ficar, e afirmaram que dariam um jeito para que ela voltasse com uma das duas. Ela apenas agradeceu, tentando parecer normal - mesmo ali, no olho do furacão. Suas amigas a conheciam muito bem, e sabiam que ela estava bem triste, mas não podiam pressioná-la. Rachel sentiu-se acolhida, e disse isso a elas. Mas tinha que ir, tinha que fechar aquela história. Todos estavam se divertindo tanto que a ausência deles não seria percebida - afinal, tinham estado lá, mas era como se não estivessem. Dali voltou ao quarto, verificou se havia deixado algo para trás e fechou aquela porta pela última vez. Nunca mais voltaria àquele lugar. Apesar de todas as lembranças felizes que ele evocava, não podia ignorar que fora durante a viagem de formatura que Luís e Maria conceberam seu filho, e que tudo havia desmoronado a partir daquele ponto. Desceu até a recepção para fechar a conta - e encontrou Luís à sua espera.

- Você vai comigo? - Havia um tom de súplica em sua voz, e ela sentiu raiva de verdade.
- Vou, se você parar de se fazer de vítima.
- Tudo bem. Eu só quero que você entenda que eu realmente não imaginava que ela viesse até aqui.
- Ela adora uma baixaria, Luís. Eu já devia imaginar. Mas baixei a guarda, e foi nisso que deu. Eu só quero deixar bem claro que vou me manter distante. Não quero fazer nada de que me arrependa, mas se você puder facilitar a minha vida, diga a ela que não mexa comigo, por favor. Eu calei por dez anos. Nem mais um minuto, ok?
- Ok, Chel. Combinado.
- Então vamos fechar a conta e sair daqui logo.
- Já resolvi tudo, não se preocupe.

Ela não encontrou forças para retrucar e exigir que dividissem a conta. Só concordou e acompanhou Luís até o carro, onde ele já tinha colocado as suas malas, sem dizer mais nada. Maria tinha ido na frente, e ele se comprometera a chegar ao velório para a cerimônia do adeus. Eles viajaram sem trocar palavra - ela absorta em seus pensamentos, ele apreensivo, ambos infelizes. O que quer que acontecesse, ambos sabiam que nada mais seria como antes. Encontraram o Marquinhos na entrada da capela. Era um menino lindo, e ela se viu diante de um Luís de 10 anos. O menino correu até o pai e o abraçou.

- Você é a Rachel? - perguntou a queima roupa, sem soltar o pai.
- Sim.
- A mamãe disse que você era uma baranga. Não é verdade. - Rachel se limitou a sorrir. Ele continuou:
- A mamãe disse que o papai deixou a gente por sua causa. É verdade?
- Acho que só seu pai pode responder isso, querido. Eu só posso dizer que nunca imaginei que fosse vê-lo de novo até esse fim de semana.
- A minha mãe fala muitas coisas de você...
- Tenho certeza que ela nunca te contou a história inteira. Mas não é hora para essa conversa, meu bem. Acho que sua mãe e toda a família estão esperando por você e seu pai, e a cerimônia já deve estar começando, não é mesmo?
- Você vai entrar com a gente?
- É isso que você quer?
- É. É sim.
- Tudo bem, então.

Entraram na capela em silêncio, ela se manteve sempre um passo atrás dos dois. A família inteira ali, olhando para ela sem entender nada, ela ali sem saber direito por que. A cerimônia transcorreu tranqüilamente e terminou bem rápido. Rachel acabou relaxando. Ela devia saber que nunca podia baixar a guarda na presença da Maria.

- Será que eu vou ser mesmo obrigada a tolerar a tua puta aqui hoje, Luís?

Rachel sentiu que ia desmaiar, mas ao invés disso uma fúria absoluta cresceu dentro de seu peito, e, sem saber exatamente como, começou a falar diretamente para Maria, baixo e lentamente:

- Puta, né? Engraçado isso... Daqui de onde eu estou olhando eu só vejo uma puta. A puta que deu para o meu namorado e engravidou dele para forçar um casamento! Você por acaso conhece essa puta, Maria? Pois é, foi essa puta que me humilhou diante de toda a escola, num pátio lotado, na hora do recreio! Foi essa puta que riu da minha cara todos esses anos. E sabe para quê? Para perder o marido justamente para a minha lembrança! Quer saber do que mais? Você é uma puta bem patética e incompetente... Como é que esse homem nunca me esqueceu, hein? Como é que você não conseguiu me tirar da cabeça dele, nem com filho, nem com família!? Isso, minha cara, é o que você devia estar se perguntando, ao invés de vir até aqui me afrontar durante a despedida do teu próprio pai! Eu só estou aqui porque o teu ex-marido me disse não conseguiria passar por isso sem mim, e porque o teu filho me pediu para entrar. Mas é claro que isso nunca ia te passar pela cabeça! Me faz um favor, Maria: nunca mais se aproxime de mim, ouviu? Nunca mais sequer me dirija a palavra! Se há uma coisa de que eu me arrependo é de não ter te feito engolir os dentes... Então não me faça perder a paciência, ok? Não brinque com fogo.

Ela engoliu em seco e deu as costas a uma Maria atônita. Olhou para o menino e disse:

- Desculpe, Marcos. Eu realmente poderia ter me contido, mas eu não quis fazer isso.
- Eu não tenho nada com isso, né?
- Não. Não mesmo. - eles sorriram e se entenderam. Ela continuou:
- Você é um rapazinho muito bacana. Gostei de conhecer você, viu? De verdade.
- Eu também. Você e meu pai vão morar juntos agora?
- Isso a gente ainda não resolveu. Mas eu acho que não tem mais clima para eu ficar aqui, né?
- É. Eu acho que você está certa. O meu pai pode ficar?
- Isso é com ele, ok? Eu vou ficar lá fora, porque as minhas coisas estão no carro dele, mas ele pode ficar, eu não tenho pressa.

O menino a puxou para baixo e deu-lhe um beijo no rosto, agradecido. Ela sorriu e devolveu o beijo. Levantou-se e olhou Luís nos olhos:

- O filho de vocês é maravilhoso, Luís.
- É verdade. E você, me espera?
- Sim. Estarei no carro, ok?
- Claro. Fica com as chaves.

Ela abraçou Luís, e ele se surpreendeu - mas era uma surpresa boa, um alívio depois da tensão dos últimos minutos. Ele não sabia de onde vinha a força dela, mas estava agradecido por aquele gesto. Profundamente agradecido. Ela deixou a sala e foi sentar-se no carro. Tinha ainda alguns minutos antes de poder estar sozinha com ele. Mas não tinha mais dúvidas. Ela tinha tentado fugir, tinha se afastado de todos os amigos comuns, tinha construído novos relacionamentos e até se casado, quando encontrou alguém que a amava, estimulava e fazia feliz. Nunca foi capaz de esquecê-lo, o passado sempre estivera presente, e ela sabia daquilo agora, depois daquele fim de semana com ele. Os anos que passaram separados tinham afastado as vidas, não as pessoas, e eles estavam ligados novamente. Ela sabia das fraquezas dele como homem, mas não podia negar que ele a amasse. De sua parte, nunca havia negado o amor. Tinha calado, isso sim - mas foi a maneira que encontrou para continuar vivendo. Não havia motivos para continuar calada.

Tinham pela frente uma conversa dura, algum tempo para aparar arestas, e um relacionamento para construir. Não seria fácil. Mas talvez fosse a única possibilidade que restava. Ela reclinou o banco do carona, onde tinha escolhido se sentar, e acabou cochilando.

Acordou sobressaltava, com Luís batendo de leve no vidro dianteiro.

- Olá, dorminhoca.
- Oi, meu amor. E aí, correu tudo bem?
- É, dentro do possível... Abre a porta para mim? - Ela puxou a trava imediatamente, e ele sentou-se atrás do volante.
- A gente precisa conversar.
- Com certeza, Lu.
- Chel, o Marcos vai comigo para casa hoje, e talvez tenha que ficar uma semana direto, por causa do inventário e tudo mais. A gente pode esperar mais esse tempo até resolver quem vai morar com quem?
- Opa, muita calma nessa hora, Luís! Você está se antecipando demais, não acha?
- Mas eu pensei... Você veio comigo, disse aquilo tudo para a Maria na maior elegância, foi super doce com o meu filho... Eu fiquei confuso agora.
- Meu amor, não confunda as coisas: é uma coisa a gente ficar juntos, outra a gente ir morar juntos. Acho que precisamos de mais um período de adaptação.
- Mas por que, querida? Eu preciso de você do meu lado. Eu sei o que eu quero há dez anos - acho que há mais tempo, até.
- Luís, isso é precipitado! Você tem que pensar no Marcos, precisa dar segurança a ele. E a mim.
- O que ainda falta para você se sentir segura, Rachel?
- Você precisa ser forte para mim, Luís. Eu sei que para você, ter me trazido aqui foi o supra sumo da força, mas na verdade você não se sentiu forte para estar aqui sozinho - e me pediu ajuda. Eu vim, como estive no teu casamento: como uma muleta. Mas eu também preciso de segurança. Eu preciso ter certeza de que você não vai vacilar mais, que isso aqui é o que você quer, que não vai haver outros deslizes.
- Ah, Chel... Eu não sei o que dizer. Eu entendo a tua posição, mas você não está enxergando a coisa pelo meu ponto de vista! Eu estou me expondo aqui com você! Eu coloquei meu coração na janela! Todo mundo sabe que eu te quero. E ninguém duvida que isso é recíproco. Nem eu. Mas você ainda precisa do cavaleiro de armadura...
- Eu acho que a gente não vai avançar muito assim, a gente só se defendendo. Mas o Marcos não pode esperar. Você me leva para casa?
- Claro. Vou pegá-lo e a gente vai. Você janta conosco?
- Pode ser. E depois vocês me levam para casa.
- Tá bom, tá bom... Sem golpe, juro.

Eles riram e saíram juntos do carro para buscar o menino. Ele era uma criança adorável, e Rachel estava achando que aquilo parecia bom demais... Ele veio até o pai sem protestos, depois de se despedir de todos. A mãe já tinha preparado uma mala com as coisas dele, e não seria necessário ir até a casa da Maria e estar na presença dela nem mais um minuto - o que ela viu como uma benção. Luís se despediu da ex-mulher cordialmente e pegou o filho pela mão. O menino estendeu a outra mão para ela. Ela deu-lhe a sua mão e seguiram, os três, para o carro.

Luís assistia em silêncio, enquanto seu filho conversava com ela as maiores amenidades, como se a conhecesse há muito tempo e fossem íntimos. Por um minuto parecia que a vida dele tinha sido aquela desde sempre, e que eles eram uma família de verdade. Era como estar no cinema, assistindo a uma comédia romântica com final feliz. E talvez fosse isso mesmo, talvez finalmente eles pudessem ter um final feliz. Eles entraram no carro e resolveram ir primeiro ao apart onde Luís estava morando, para deixar as coisas de Marcos e mostrar a casa à Rachel. Depois iriam ao apartamento dela, e combinaram de ajudá-la a preparar um espaguete ao molho inventado - com o que eles pudessem encontrar no armário de mantimentos.

E deixaram de fazer planos ali. O futuro era um mistério que precisavam desvendar, sim. E tinham tudo de que precisavam para fazê-lo. Tinham um ao outro. E tinham todo o tempo do mundo...


(The end)

Estranhamento

Essa mulher que me olha do espelho - eu não a conheço. Ela é muito mais velha que eu, tem olhos profundos e linhas que contam uma história em torno deles. Tem cabelos brancos em profusão brotando-lhe do topo da cabeça, crescendo em comprimento enquanto sua idade avança.

Essa mulher que me olha do espelho - eu a estranho. Ela me olha com doçura do fundo dos olhos, e vejo nela a labareda que incendeia o meu interior. Essa mulher doce é água, mas há dentro dela fogo. Ela carrega o fogo na alma e no ventre, e sua fala suave transparece conteúdos que me são familiares - e tanto me incomodam quanto atraem.

Essa mulher que me olha do espelho - eu a acolho. Ela cuida de mim como eu cuido dela. Há amor em cada passo que ela dá, na maneira apaixonada como se entrega à vida, na forma desprotegida como oferece seu coração. Ela entra na arena, e os leões avançam. E ela espera, sem mover-se um milímetro. Ela sabe que podem dilacerar-lhe a carne, até o coração - mas não podem extinguir sua luz.

Essa mulher que me olha do espelho - eu a amo. Eu sou ela. E ela sou eu.


segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Permanência (parte 5)

Passaram o fim de semana recolhidos ao quarto. Tinham que fazer um esforço enorme para descer as escadas e passar algum tempo entre os amigos, e já tinham acostumado com as brincadeiras da galera, sempre implicando com o sumiço dos dois. Não se importavam. Queriam somente estar juntos, como se aquele hiato de dez anos não houvesse existido, como se tivessem estado juntos todos aqueles anos. Para ambos era como se nunca tivessem se separado. Quando Rachel resolveu deixar cair por terra as resistências, quando Luís resolveu engolir seu orgulho e declarar seu amor a ela - ali a vida dos dois recomeçou de verdade.

Eles não falaram em nenhum momento sobre o que aconteceria depois de terminado o fim de semana. Evitaram tocar no assunto "Maria e Marcos", como num pacto de silêncio não proclamado. Para Rachel era colocar o carro na frente dos bois - ela sabia que não tinha nada com aquele assunto, era a vida dele que estava pendente. A dela já estava resolvida, era uma mulher livre, vivia sozinha e nada devia a ninguém. Para Luís era um assunto desnecessário. Quando saiu de casa, na semana anterior àquela viagem, tinha levado consigo apenas uma pequena valise com algumas roupas e objetos pessoais. Foi para um Apart próximo ao seu antigo endereço, só para ficar perto do filho, e mandou alguém buscar suas coisas dois dias depois. A separação era fato consumado. Ele queria ser feliz novamente. E o único lugar onde queria recomeçar era nos braços de Rachel.

Ficaram entre os lençóis daquela cama, fazendo amor. Completamente despidos: pele e alma, desprovidos de disfarces. Podiam finalmente tocar um no outro: carne e coração. Mais que seus corpos, partilharam a intimidade plena do desnudar-se, de estar diante do outro, o outro como espelho, espelho da história que tinham para construir juntos. Mas não ousavam tentar recuperar o fio da meada. Queriam começam uma história nova, trazer do passado somente as lembranças felizes. A ingenuidade pode atingir qualquer faixa etária, e eles estavam se permitindo serem ingênuos. Queriam acreditar em finais felizes. Queriam driblar o passado e sair ilesos, como crianças travessas que tocam a campainha do vizinho e saem correndo tão rápido que não são descobertos.

O passado dos dois era doloroso, havia ressentimento entre eles - tanto que ninguém entre os amigos podia imaginar que os veria juntos outra vez. Mas o passado os espreitava, e estava tocaiando na próxima esquina - aquilo não podia durar para sempre. E durou até domingo, antes do café da manhã. O telefone do quarto tocou estridente, e Rachel teve um pressentimento ruim.

- Lu, é melhor atender.
- Ah, Chel, não é nada! Deve ser a Lena chamando a gente para descer...
- Não, Lu. Atende, vai. Acho que é para você.
- Nossa, Chel, tá bem...

Ele atendeu e a realidade caiu sobre eles de súbito. Ele se empertigou na beirada da cama, respondendo ao interlocutor com monossílabos. Sua expressão facial demonstrava somente cansaço, e ele não discutia nem argumentava. Só aquiescia. Desligou dois minutos depois. O grave silêncio entre eles gritava, e ecoava nas paredes.

- Quem era, Lu? - Rachel quebrou o silêncio, constrangida.
- É a Maria que está lá embaixo, Chel. Ela veio me buscar.
- Por quê? Aconteceu alguma coisa com o Marquinho?
- Não. O pai dela morreu.
- Você precisa ir.
- É, preciso. Mas quero que você vá comigo.
- Acho que é imprudente, Luís.
- Acho que, se você não for comigo, ela vai achar que eu vou voltar para casa. Eu não vou, Rachel. Mesmo que você não esteja do meu lado, mesmo que não queira fazer parte da minha vida. Eu não posso ser arrastado de volta para aquela história - e eu preciso de você agora. Por tudo que a gente viveu desde sempre, meu amor.
- Lu, a Maria vai me detonar - e você sabe disso.
- Eu sei também que você sabe se defender. Por favor...

Levantaram e vestiram-se rapidamente. Juntaram suas coisas dentro das malas de qualquer jeito e desceram juntos, as mãos dadas, numa última tentativa de simular normalidade. Nada mais seria normal entre eles, e a ingenuidade que eles evocaram evaporou-se instantaneamente do momento em que puseram os pés na recepção. Maria estava de pé, muito digna, vestida de preto, os olhos escondidos por enormes óculos escuros e um chapéu de abas largas sobre a cabeça. Era a imagem da estrela hollywoodiana enlutada. Mas toda aquela classe desapareceu no instante em que ela viu Rachel ao lado de Luís.

- Eu não acredito que você teve a audácia de vir até aqui com o meu marido! Você não tem vergonha, não?
- Eu tenho, Maria. E você também devia. Afinal, você acabou de perder seu pai...
- Você é muito cara de pau, hein, garota? - Luís resolveu intervir.
- Olha, Maria, fui eu que pedi à Rachel para vir comigo. Eu quero que ela esteja ao meu lado. Nós já conversamos longamente sobre isso.
- Acontece que é o sepultamento do meu pai, e você vai lá com a tua piranha! É muita falta de respeito pelo teu filho!
- Olha só, Maria, eu não admito que você fale assim da Rachel. Isso não é verdade, e você sabe que está se excedendo.

Rachel preferiu se afastar dos dois. Ela não queria ofender a outra, sabia o que era a perda que ela estava enfrentando - mas não tinha sangue frio suficiente para tolerar aquilo por muito tempo. O passado dos três condenava Maria, mas por uma tendência à benevolência e ao seu orgulho ferido, Rachel sempre se furtara de dar o troco à outra. Talvez tivesse chegado a hora de acertarem as contas.

Quando Rachel e Luís namoravam, Maria era a ex dele. Rachel estava apaixonada demais para perceber que eles ainda mantinham algum vínculo. Em sua mente eles estavam sempre juntos, e não havia tempo para que ele ficasse com qualquer outra garota. Mas ela estava enganada. O filho dos dois, Marcos Vinícius, fora concebido durante o namoro dela com Luís, e também o motivo do fim do relacionamento e do casamento deles. Ela podia lembrar com detalhes de como Maria a humilhara diante dos colegas de escola. Ela estava cheia de orgulho, estava grávida do seu namorado, e estava ali, de pé no centro do pátio, proclamando aquilo aos quatro ventos, ridicularizando Rachel de todas as formas possíveis. Ela gritava que Rachel não era mulher suficiente para satisfazer o Luís, e que agora ela estava carregando a prova concreta das puladas do seu namorado, para quem quisesse ver. Rachel simplesmente se levantara e saíra de cena. Passou quinze dias sem ir à escola. E voltou ao convívio dos colegas como se nada houvesse acontecido. Durante aquela semana, Luís fora todos os dias à sua casa, e tentara convencer a mãe dela que o deixasse subir a conversar. Dona Luíza dizia somente que Rachel não estava bem disposta, que eles poderiam conversar numa outra oportunidade. A verdade era que Rachel estava prostrada, num estado de choque que a impedia de sequer levantar-se da cama ou comer qualquer coisa. Ela nada disse em casa sobre o que acontecera entre eles - dissera à mãe somente que Luís tinha morrido para ela - e fora necessário chamar o médico em casa para determinarem o que fazer a respeito de sua recuperação. Todos temiam que ela viesse a perder o último ano do curso, que não pudesse mais frequentar à escola, que não tivesse condições emocionais para continuar dividindo o mesmo espaço físico com o ex-namorado. O pai esbravejara, dissera que o rapaz não prestava, que ele nunca tinha aprovado o tal relacionamento - mas a mãe apenas calou e fez a vontade da filha. Silenciou o marido e deixou que Rachel vivesse sua dor.

Ela entrou em sala de aula como se não tivesse passado duas semanas ausente, entregou um atestado médico ao professor e sentou-se na primeira fileira, como de hábito. Luís passou todo o tempo da primeira aula tentando chamar-lhe a atenção, mas Rachel estava como surda. Ele ainda tentara convencê-la a pelo menos conversar com ele. Ela lhe dissera somente que não havia nada para falarem, que dali por diante eram somente colegas de classe.

Ele ainda insistiu por mais de três meses, e então chegou o mês do casamento. Ele entregou-lhe uma carta, longuíssima, explicando - como se houvesse explicação - tudo, dizendo que tinha sido um imbecil e pedindo a ela somente duas coisas: que o perdoasse - e que fosse sua madrinha de casamento, ao lado de seu primo Casimiro. Dizia que só poderia passar por aquilo se ela estivesse ali, com ele. Ela somente olhou para ele e perguntou se havia algum acordo a respeito de cores de vestidos, se haveria um ensaio para a cerimônia e a que horas todos deveriam chegar. Ele mal podia encará-la, sentiu nela um profundo descaso por tudo o que ele tivera o trabalho de escrever naquela carta. Entregou-lhe um papel com dois números de telefone: o da cerimonialista e o do tal primo.

E ela estava lá, no altar, assistindo à cerimônia, como havia prometido a ele. Não transparecia nenhum sentimento - parecia até uma pessoa estranha, alheia às famílias e aos noivos, como se fosse uma atriz convidada para ocupar o lugar de uma madrinha ausente. Não compareceu à recepção, mas entrou na fila dos cumprimentos e beijou os noivos, desejando-lhe felicidades.

E nunca mais quisera fazer parte daquilo. Era uma história sórdida, da qual não quisera participar à época, e da qual nunca fizera parte. Era um problema deles. E ela preferia que continuasse assim. Até agora, até aquele fim de semana. Parecia que finalmente o Passado conseguira dar-lhes o bote. E dessa vez tudo viria à tona - à sua revelia.

- Rachel, por favor. Rachel, onde você vai?
- Eu vou deixar vocês conversarem, Luís. Essa história não é minha.
- Mas é, Rachel! Você não pode fugir disso para sempre.
- Posso sim, Luís. Eu fugi disso por dez anos. Não estou disposta a enfrentar nada agora. É problema de vocês.
- Não Rachel! É problema nosso! Se você não tivesse me abandonado, se não tivesse me impedido de me aproximar naquela época, essa história poderia ter sido diferente... - ela não permitiu que ele continuasse:
- Ah é, Luís? E como seria diferente? Você ia abandonar a Maria grávida para continuar namorando comigo, como se nada houvesse acontecido? Ou você pretendia fazer um filho em mim, para não ter que casar com ninguém? Me diga agora de que maneira essa história poderia ter sido diferente?
- Eu não queria casar com ela, Rachel! Eu podia ser pai do Marcos sem ser marido dela!
- Hoje em dia pode ser, mas naquele tempo? Você pode se enganar o quanto quiser, querido - no final não faz diferença! Se você não quisesse casar com ela não precisava de mim do teu lado para dizer esse não - mas precisou de mim para dizer sim!
- Eu queria estar com você ali, você não entende até agora, mesmo depois de todo o fim de semana?
- E você acha que só porque a gente se ama você está redimido das tuas dívidas, Luís? A vida é um cobrador amargo: ela te deixa atrasar, mas sempre cobra juros altíssimos!
- E eu vou pagar para sempre por um erro que eu cometi há quase 11 anos atrás?
- Um casamento até pode acabar, Luís. Mas um filho é para sempre. Foi por isso que eu nunca quis ter filhos, e pelo mesmo motivo o meu casamento não funcionou. Ele entendeu que eu não atrelaria a minha vida à ele - e nos separamos.
- Rachel, não faz isso comigo, por favor! Eu precisava de você no altar naquele dia, eu preciso de você agora! Eu chorei durante toda a festa, era como se eu tivesse morrido quando você apertou minha mão naquela fila de cumprimentos. Como você consegue ser tão fria?
- Fria?! Fria? é isso que você pensa, né? Que eu sou uma pedra, que não sinto nada! Só que eu confiei em você! Confiei cegamente - e você me traiu com a tua ex, fez um filho nela e deixou que ela me humilhasse diante de toda a escola! O que exatamente você queria que eu fizesse? Que eu cortasse os pulsos? Que tomasse 30 comprimidos de valium? Que tivesse um ataque histérico, me embolasse com ela no meio do pátio, pegasse a Maria pelos cabelos e fizesse ela retirar o que tinha dito? ERA VERDADE, Luís! Ela estava certa - e eu errada, enganada, iludida, crédula. Você perdeu e eu perdi. Ela ganhou, e fim. Eu precisei juntar toda a minha dignidade para voltar à escola e terminar o ano junto com a turma. Precisei de todo o auto-controle do mundo para te olhar nos olhos de novo e aceitar aquele pedido desumano, de que eu fosse tua madrinha de casamento. E precisei evitá-los por todos esses anos. E mesmo sendo inocente, a vida está aqui agora, me cobrando isso também.

Ela chorava como nunca, como se toda a dor do mundo estivesse transpassando seu coração em um átimo. Ele não sabia o que fazer, o que dizer. Ela era a mulher da sua vida. Ele já a havia perdido uma vez. Não podia perdê-la novamente.

- Rachel, por favor, eu te amo! Você é a única mulher do mundo para mim...
- Eu sei que você me ama, só não me diga mais isso, porque desse jeito não faz diferença! Eu quero um amor que eu possa levar comigo.
- Eu te prometo que você vai poder me levar contigo, meu amor. Eu te prometo que tudo vai acabar bem. Vem comigo, eu estou te implorando. Já que a vida está cobrando isso, eu pago. Pago o preço que for - se você vier comigo.

Ela ficou ali, olhando para ele, as lágrimas turvando a sua visão. Ela sentia que podia confiar nele, mas já tinha se enganado antes. Ele já tinha falhado com ela - e tinha sido ao terrível, algo que lhe custava até hoje noites em claro e horas de terapia. Ele parecia resolvido. Agora era a vez de ela se decidir.

(to be ended...)

domingo, 31 de outubro de 2010

O fogo de Prometeu

Não é culpa sua. Se até Zeus ficou puto quando Prometeu se atreveu a cobiçar-lhe o fogo das caldeiras! Não seria você, mortal com delírios de deidade, que aceitaria numa boa encontrar alguém que te desafiasse. E, se Prometeu conseguiu seu intuito, por que não eu?

Roubei sim, seu coração de fogo – e nunca me arrependerei. Sou impertinente e imperiosa, sou uma menina no corpo de uma mulher, sou tão capaz quanto você! E me atrevo e atreverei a questioná-lo, mais uma vez e ainda, até que me satisfaçam tuas respostas.

Você me puniu, e eu entendo. Mas é uma punição incompleta, não é mesmo? Se até o pobre Prometeu – que era um Titã – teve suas entranhas comidas pelos abutres por toda eternidade, por que não eu? E entenda, não me arrependo: os deuses precisam mais dos homens – e por que não dizer, mulheres – que os mortais deles. É de adoração que eles vivem, e sei que Zeus se deleitava assistindo o tormento de Prometeu diariamente de seu trono no Olimpo, mas principalmente para colher a adoração do pobre infeliz. Só que mesmo ali, incapacitado, Prometeu venceu – porque nunca se arrependeu.

E o deus, derrotado pela arrogância do homem, desaparece. Sim, os abutres hão de me comer o fígado todos os dias. E quando você olhar para mim verá a luz que explode das minhas entranhas e se enfurecerá por não poder possuí-la completamente, por não tê-la dobrado, por não ter conseguido arrancar de mim um pedido de desculpas. Nunca vou me desculpar por tê-lo seduzido, fincado minhas unhas na tua vaidade e te arrastado para a minha rede. E nunca vou me retratar por tê-lo deixado – foi o melhor para mim, e o melhor para você, no fim das contas. Afinal, você nunca admitiria, e nunca o fará: eu cheguei perto demais e você se apavorou, se afastou e me pôs de lado de propósito, para que eu tomasse a atitude que você foi covarde demais para tomar.

Só não me peça de volta o pedaço do teu coração ígneo que roubei para sempre: ele é meu, e você sabe. Meu por direito. Faça essa cara blasé, demonstre desinteresse, aja com o distanciamento que quiser. Há em um ponto do teu coração a ferida mal-cicatrizada deixada lá por meu amor perfeito.

Não.

Não há de sarar jamais.

(Deal with it)



quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Permanência (parte 4)

Desceram as escadas para a área de convivência de mãos dadas. Ela estava nervosa, apreensiva. Ele, ao contrário, parecia radiante. Ela nem se lembrava de tê-lo visto com aquela expressão antes. Pelo menos não em muito tempo. No fundo de sua cabeça, aquela imagem só encontrava um par: o dia em que ficaram juntos pela primeira vez. O dia do beijo.

Sentindo sua apreensão, Luís perguntou:

- Rachel, você está bem?
- Quê? Ah, sim, claro, Luís...
- Você está meio nervosa. O que mudou no caminho do quarto até aqui?
- Nada, Luís, nada. É que o pessoal está esperando te ver com a Maria, e você desce as escadas de mãos dadas comigo, assim, nessa intimidade toda... Acho que o pessoal vai ficar imaginando coisas. Coisas que eu não quero que eles imaginem.
- Como o quê?
- Que eu e você já estávamos de caso há tempos e que eu fui o motivo da tua separação - e que é muita cara de pau da gente. "Coitada de Maria... Nem estão separados oficialmente e eles já estão circulando juntos..."
- Você se importa com isso, Chel?
- Eu não sei o que pensar, Lu. Tudo aconteceu muito rápido para mim.
- Eu vim até aqui só para ficar perto de você. Para ver você, ter a chance de conversar com você. Na tua cabeça pode ser uma coisa inesperada, surpreendente. Mas eu não teria vindo se você não fosse estar aqui. Eu gosto do pessoal, não me entenda mal. Mas eu quero você. E não me importo.

Ela ficou sem palavras. Não podia retrucar, nem resistir. Era como sempre fora: ele sempre tinha a última palavra, o último argumento. Sempre claro, mesmo que nem sempre transparente. E era essa característica dele que a deixava apreensiva. Ele era translúcido - as coisas que ele dizia tão claramente pareciam aos seus olhos vultos e contornos, nunca imagens reais. Ela era totalmente transparente para ele. Não sabia mentir nem disfarçar. Nunca pode ocultar o amor que sentia por ele, nunca foi capaz de fingir-lhe indiferença. Ele, por outro lado... Quantas vezes na história dos dois ele fora uma incógnita? Ela já não sabia mais. Esforçou-se para agarrar a lembrança de seus olhos radiantes, exercitou os músculos da confiança, respirou fundo e apertou sua mão na dele. Sorriu e concordou, com um dar de ombros seu característico, que ele sabia significar "ok, vamos lá, what the hell..."

Eles encontraram os colegas já bastante adiantados nos trabalhos etílicos, e todos os receberam efusivamente. Circularam juntos o tempo todo, e Luís dificilmente soltava sua mão. Quanto se afastava era para buscar alguma coisa, ou falar com algum amigo mais chegado - mas em poucos minutos suas mãos estavam ali, tocando seu corpo, suas costas, seus braços. Muitas vezes ela se deixou envolver pela cintura, num abraço bastante íntimo. Renata e Helena estavam em cólicas, e Rachel não pode conter o riso umas duas ou três vezes em que Luís estava de costas para as duas e elas tentavam fazer a inquisição na linguagem de sinais.

- Rachel, vai lá tranqüilizar essas criaturas, pelo amor de Deus!
- Do que você está falando, Lu?
- Ah, Chel, a Rê e a Lena vão ter uma síncope já-já! Elas não param de olhar para cá, cada uma mais arregalada que a outra! Vai lá e conta para elas.
- Tudo bem para você?
- Claro! Mas com uma condição.
- E qual é? - Ele se inclinou e sussurrou em seu ouvido:
- Volta logo para mim...

As amigas mal podiam se revezar durante o que lhe pareceu o interrogatório mais atrapalhado do século! Ela contou o que acontecera em linhas gerais, reservando para si o direito de calar a respeito dos detalhes. Estava apaixonada como uma adolescente, pelo seu amor da adolescência. Parecia a coisa mais improvável e estúpida a se fazer, mas ela sentia que nada podia ser mais perfeito. as amigas ainda tentavam chamá-la a razão, dizendo que aquilo era uma loucura, que todo mundo ia ficar falando - mas ela só pode calá-las com os argumentos de Luís, mesmo que ela mesma estivesse tão assustada quanto elas. A conversa com elas demorava tanto que Luís desistiu de esperar.

- Oi, meninas. Será que vocês podem devolver a minha garota?
- Você é petulante, hein, Luís? - disse uma Helena meio ressabiada.
- Até sou, mas essa nem é a minha principal qualidade. Vamos, Rachel? Já estou com saudade.
- Tchau, meninas. A gente conversa mais depois...

Ele segurou sua mão novamente. Ela evitou os pensamentos que a conversa com Renata e Helena tinham suscitado. Deixou-se guiar para fora do salão. Precisava mesmo de ar fresco. Ele puxou seu corpo para junto. E a beijou ali, onde todos pudessem ver.

- Você não tem mesmo nenhum problema com isso, né?
- Não, meu amor. Não mesmo. E nem me parece que nós devamos nos preocupar. "Eu e você" estava escrito. E pronto. Acho que já fizemos figuração por muito tempo. Vamos sumir daqui?
- Acho ótima idéia!

Deixaram a reunião de colegas de escola e subiram juntos as escadas para o segundo pavimento. Sem combinação prévia, caminharam juntos em direção ao quarto dela.

-Sempre achei esse seu quarto lindo... A gente ficou aqui da outra vez, lembra?
-Claro, querido. Eu nunca vou me esquecer daquele fim de semana da formatura.

Dentro do quarto era outro mundo, um mundo onde ela podia responder ao impulso incontrolável de grudar seu corpo ao dele e esquecer tudo o que ficou para trás. Ela sempre pensava nele como uma grande jazida de magnetita, e em si como uma pequena aresta de ferro: a atração era irresistível e ele já tinha feito demais em evitá-la por tantos anos.

Ele não sabia explicar: como, mesmo tanto tempo depois, tantos anos de distanciamento frio, eles ainda podiam sentir tanta paixão assim um pelo outro. Ela era a mulher mais encantadora, mais inteligente, mais luminosa que ele já conhecera, e nunca houve um dia em que não sentisse sua falta, mesmo quando já não se viam há muito, mesmo se ninguém dissesse seu nome. Todos os dias pensava nela. Todos os dias passava pela porta do seu prédio, olhando, vigiando. Ele queria mantê-la por perto, ela rechaçara todo e qualquer contato.

E mesmo assim, um nos braços do outro - e o mundo podia acabar.

(To be continued...)

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Devoção

E me lanço ao mundo, como o pescador lança a rede ao mar. Eu me jogo, eu me entrego, eu enfio a colher no meio do prato de mingau, sem medo de me queimar. O que vier na rede é meu, e eu o recebo feliz e agradecida. Lanço as redes com esperança renovada, todos os dias - nunca se sabe o que o mar pode trazer - e é este o exercício último de devoção do pescador pelo mar.

Assim eu amo, assim me ofereço, assim sou a encarnação da devota e da deusa ao mesmo tempo: sou Afrodite e sou Hera, sou Diana e Atena. E sou a sacerdotiza em seus templos, serviçal e solene.


sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Permanência (parte 3)

Rachel e Luís eram os únicos instalados na casa grande. Os outros colegas tinham optado por apartamentos ou chalés, para acomodar a filharada. Parecia que só os dois tinham pedidos quartos simples, e ela ficou imaginando por que a Maria não viera - mas preferiu não perguntar. Embora a trégua estivesse estabelecida, não convinha cutucar a onça, e ele era hipersensível - talvez se ofendesse com a pergunta e tivesse um ataque. Ela preferia a trégua, porque não queria ter de lidar com um clima no meio do fim de semana. Ele a ajudou a subir com sua mala, e descobriram que estavam no mesmo andar:

- Quer que eu te acompanhe até o quarto, Rachel?
- Não precisa, Luís, sério. Eu posso arrastar a bagagem daqui em diante. - Ele sorriu e aquiesceu.
- Tudo bem, então. A gente se vê no brunch?
- Claro! Imagina o chilique que a Renata vai dar se eu não descer?

Despediram-se entre sorrisos, com um aceno de cabeça - e ela ficou grata por isso. Preferia evitar o contato físico. Enquanto se afastava, ela pode sentir o olhar dele sobre ela, acompanhando-a a distância. Aquilo sempre a perturbava, aquela mania dele de bancar o bom moço, como se estivesse cuidando dela mesmo sem estar ao seu lado. Incrível como no passado era uma das coisas mais sedutoras a seu respeito...

Já instalada, Rachel resolveu tomar um banho antes de descer até a área de convivência do hotel, onde todos os ex-colegas se reuniriam em poucos minutos para um brunch. Era a idéia de Renata de uma abertura chique para o evento: "ah, gente, não é o máximo? Bebericar um prosecco e jogar conversa fora entre uma beliscadinha e outra?"A Rê sempre fora a fresca da galera - mas tinha bom gosto, e ninguém negava. Era um luxo sim, e todos acharam a idéia ótima. Ela olhou o quarto e ficou muito satisfeita. Era o mesmo em que ficara instalada durante a viagem de formatura. Ficava no final do corredor da ala norte do prédio. Por isso, tinha duas janelas: uma dava para a frente do hotel e a outra estava voltada para a área da piscina natural. Se ela se sentasse nesta, podia ver ao fundo as estrebarias e a área de arvorismo - um pré requisito moderno para hotéis fazenda como aquele. Ela achou maravilhoso estar ali de novo, e inspirou profundamente. Adorava o cheiro de grama recém aparada, da água daquela piscina, o cheiro dos estábulos até. Sobre a cama, havia um pequeno arranjo de flores e uma cestinha com bombons - um brinde de boas vindas - e junto a eles um folder com a programação do hotel naquele fim de semana. Ela sentou na cama e passou os olhos pelo impresso. E não pode conter uma gargalhada. "A Lena é uma figura mesmo..." Sabia que aquilo só podia ser coisa da amiga: ao lado de cada atividade que ela sabia que Rachel não curtiria, uma notinha do tipo "Vamos lá!"ou "Deixa de preguiça!"e "Por que não tentar?" Ainda rindo, levantou e despiu-se para o banho.

A água estava deliciosa, temperada na medida para um banho relaxante e revigorante ao mesmo tempo. Deixou que a água lambesse seu corpo e lavasse as preocupações. Tantos anos depois, o que importava seu passado com Luís? Ela ainda balançava quando o via, não podia negar. Mas o que ele tinha com isso? Ela sabia que era problema seu. Ele provavelmente já havia descido, e estava agora sentado numa espreguiçadeira rindo e tomando um prosecco com os outros colegas, sem nem se lembrar que tinha vindo com ela. Enrolou-se numa toalha macia e deixou-se ficar ainda um pouco deitada na cama, pensando no que deveria vestir. Imaginou tudo que tinha trazido na mala e decidiu usar um vestidinho de verão frente única, estampado com flores. Estava bem quente aquela hora, e só deveria esfriar mais tarde. Vestiu-se rapidamente, ajeitou os cabelos num rabo de cavalo alto e passou um batom cor de boca - sem nem se olhar no espelho - e saiu para o corredor.

Ele estava sentado no chão, na frente da sua porta.

- Nossa, que visão!
- O que você está fazendo aqui?
- Ah, eu não quis descer sozinho...
- Então levanta, vai. A gente já está atrasado.
- Achei que você ia me perguntar de novo pela Maria.
- Por quê?
- Ué, foi a primeira coisa que você quis saber... Eu pensei...
- Luís, olha só: não vai dar certo isso. Se você quer me dizer alguma coisa, diz logo.
- Ela ficou no Rio. A gente está se separando.
- O quê? Nossa... Desculpa, Luís... Foi insensível da minha parte.
- Não, tudo bem. Eu só queria tirar isso do nosso caminho.
- Você está bem?
- Ótimo, meu anjo. Não há razão para se viver uma mentira a vida inteira, só porque você prometeu.
- E ela? E o Marquinhos?
- Acho que estamos todos nos acostumando com a idéia. Olha, eu queria te contar antes de descer. Não quero que você me ouça falando da separação casualmente, numa rodinha de colegas de escola. Eu sei como você leva essas coisas a sério.
- Obrigada pela consideração, Lu. Estou me sentindo mal por não ter percebido antes, quando você usou aquele tom de descaso pela manhã, na portaria do meu prédio. Se houver alguma coisa que eu possa fazer...

Ela não pode continuar. Ele se arremessou sobre ela num impulso, e a beijou como sempre. Como nunca. Ela ainda tentou resistir, tentou refrear seu impulso. Foi para ela também inevitável ceder. Sentir a proximidade de seu corpo, o calor dos seus braços, o gosto da sua saliva - nada era novidade, e era um mundo novo. Sem separar seus lábios dos dele, ela encostou na porta do quarto e a abriu, deslizando para dentro colada a ele. Bateu a porta às suas costas ainda presa àquele abraço, àquele beijo - como uma mosca na teia da aranha. Era o beijo da morte, mas era tão bom...

O beijo só terminou quando já estavam nus, os dois sobre as cobertas da cama, ele deitado sobre o corpo dela, dentro dela, suas mãos entrelaçadas enroladas aos lençóis, os dois suados, ofegantes, excitados. Entregues.

Ela olhou para ele, e encontrou seus olhos no mesmo movimento. Nada disseram por longos minutos. Ela quebrou o silêncio com um suspiro. Ele sorriu e disse:

- Se a gente descer agora, talvez ainda tenha um pouquinho de prosecco para você, meu amor...
- Eu já estou embriagada, obrigada.
- Vamos. A gente toma um banho e desce. Ou não...
- Vamos descer sim, Luís. O pessoal está esperando por nós.
- Eu esperei por você muito tempo - e você está aqui, agora. Eu poderia ficar aqui o fim de semana inteiro.

Ela não replicou, por não saber o que pensar. Todo aquele tempo mantendo distância tinha sido inútil diante da força do desejo dele. Ela sabia que não devia ter cedido - mas era tarde demais para pensar nisso agora. Precisavam descer, encontrar as pessoas. E depois decidir o que fazer.


(To be continued...)

Gueixa

"Merda, Pumpkin! Se você não queria ser gueixa, veio estudar nessa porra de escola por quê? Responde, Pumpkin!"

Ela não sabia o que dizer. Manteve sua cabeça baixa e seus olhos no chão, como se esperasse que este se abrisse e lhe tragasse por inteiro. Ela pensava que seria mais fácil morrer, e invejava a sorte das meninas de saúde mais frágil e vontade menos resoluta. Como queria ser como elas: deixar a vida por doença ou suicídio. Mas sabia que a Morte só viria para levá-la quando já estivesse gasta pelos anos.

"Merda, Pumpkin, responde!"

Ela em silêncio. Sempre em silêncio. Há momentos em que resposta nenhuma é a melhor resposta. Logo viria o abraço e o perdão. E ela seguiria adiante, sem olhar para trás.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Queixa

Você roubou a minha caixa de crayons coloridos, minhas canetinhas e meus lápis de cor.

Sorte sua eu não ser egoísta. Mas você podia ter simplesmente pedido...

(Enquanto isso uso as cores do meu arco-íris pessoal para colorir a minha vida.)


domingo, 17 de outubro de 2010

Permanência (parte 2)

A viagem acabou parecendo mais curta, à medida que o distanciamento dava lugar à antiga intimidade. Afinal, tinham sido colegas por três anos - até que se tornaram amigos. Muitas viagens de trem depois, a amizade se transformou em outra coisa. Claro que todos os amigos em comum já tinham percebido que havia fogo sob aquela cortina de fumaça - mas eles não pareciam dar atenção àquilo. Pelo menos até uma tarde chuvosa de maio, em que se sentaram num banco sob o bloco E (de engenharia) e ela deitou a cabeça displicente em seu peito, os olhos cerrados.

Ele nunca mais olhou para ela do mesmo jeito depois daquilo. A única coisa em que podia pensar era que precisava encostar seus lábios nos dela, descobrir que gosto tinha sua melhor amiga, tocá-la de alguma forma que não fosse fraternal. Nem sabia dizer de onde viera o impulso, mas jamais se arrependera - fora o melhor, mais intenso e apaixonado beijo que ele já havia experimentado na vida.

Ela nunca soubera de onde aquele beijo tinha vindo, mas também não sabia dizer por que diabos ele tinha demorado tanto para tomar aquela atitude. Ela não tinha olhado para ele daquela maneira antes. Só que, naquele momento, seus lábios nos dela, parecera a única coisa certa nesse mundo. Ela jamais havia sido beijada daquele jeito. Nem jamais seria. Tudo nele era perfeito para ela, e só ali, em seus braços, ela tinha finalmente percebido isso.

Mesmo agora eles viviam à sombra daquele beijo. E ainda persistia aquela cumplicidade antiga, derretendo o gelo de anos de distância e ressentimento. Eles não se atreveram, entretanto, a verbalizar o que estava claro. O equilíbrio retituído durante as breves horas do trajeto, desde que o gelo fora quebrado, era delicado, e nenhum dos dois estava disposto a brigar. Curiosa e surpreendente, a trégua se estabeleceu sem que fosse necessário discutir seus termos - e ambos sabiam que era melhor assim, para o bem do fim de semana.

Chegaram ao hotel em pouco mais de duas horas, e ainda estavam rindo quando saíram do carro. Deram de cara com uma Helena tensa e uma Renata temerosa. Rachel apenar sorriu e cumprimentou as amigas:

- Olá, comissão organizadora! Parece que foi ontem a formatura, hein? Esse lugar não mudou nada...

As duas se entreolharam, desconfiadas:

- Fizeram boa viagem? - Foi a vez de Luís responder:
- Claro! Ou vocês pensaram que a Chel ia chegar aqui com o meu fígado meio comido?

Todos riram, e foi o suficiente para descontraí-las, e ele se afastou para pegar as malas no carro. Quando se viram sós com ela, as duas começaram a inquisição:

- O que aconteceu, Chel? Ele se comportou durante a viagem, ficou tudo bem?
- Nossa, meninas... Eu pensei que tivesse dado para perceber que a gente veio bem. Começou meio mal, mas a viagem acabou sendo tranquila. Eu vim dirigindo desde o posto de gasolina. Foi legal.
- E... você está bem, amiga?
- Por que não estaria?

A ausência de réplica fez cair entre elas o véu da trégua, e quando o Luís voltou com as malas, ela pode ainda sorrir e agradecer - e receber seu sorriso de volta. Um sorriso aberto, largo, cheio do charme que ele sempre transbordara. E com aquele ingrediente secreto, capaz de tirá-la do sério. Ela pegou sua bagagem e virou-se em direção à recepção, para evitar seu olhar penetrante. E vestiu a armadura, apesar da trégua. Era preciso se preparar para o ataque surpresa...

(To be continued...)

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Permanência (parte 1)

Encontrá-lo não foi fácil.

Depois de tantos anos, todo o trabalho que teve para evitá-lo foi por água a baixo naquela tarde. Era o encontro do aniversário de vinte anos de sua antiga turma do curso técnico e ela, que tinha sido muito ativa durante aquele período, sentia que não podia recusar o convite da comissão organizadora: duas de suas melhores amigas tinham tido essa idéia brilhante - e no início ela nem se opusera. Tinha achado uma idéia excelente, de fato. E então, a idéia brilhante: "e os meninos do quarto ano? A gente não deveria chamá-los também?"

Ela fora muito resistente, e as duas sabiam muito bem por quê. Então elas consideraram que talvez nem devessem chamar a todos - e ela percebeu que concordar naquele ponto seria uma confissão de pânico. E de imaturidade também. Depois de algumas conversas mais, dividiram a lista de telefones, e obviamente o número dele não constava da lista que veio parar em suas mãos.

A cada telefonema dado ela ficava mais animada. Seria tão bom reencontrar os antigos colegas, tão queridos e importantes em sua vida, estar com eles por todo um final de semana! Era a idéia perfeita: repetir a viagem de formatura, para um hotel fazenda em Mendes, no estado do Rio. "É tão pertinho, Rachel! E podemos levar as crianças, né? Tem recreadores!!!" Ela entendia as preocupações das amigas, embora não compartilhasse delas. Tinha sido casada por cinco anos, mas não tiveram filhos, e depois do divórcio ela nunca mais pensou em casamento. Gostava de dizer aos amigos que aquilo era coisa que só se faz uma vez na vida - como ir à Austrália ou pular de bungee jump. Ela já tivera a sua cota de cuecas para lavar, jantares para preparar e lugares para ir acompanhando o marido. Prezava demais sua liberdade, e dizia que flertada com a solidão a tantos anos que quando encontrou a chance de ficar com ela não pensou duas vezes!

No dia da reunião para os últimos preparativos da viagem, Helena quis conversar com ela em particular, antes de Renata chegar com sua listagem final.

- Chel, preciso falar sobre o Luís.
- Por que, Lena?
- É que ele confirmou presença...
- E?
- Ah, Chel, você sabe por que essa conversa, né?
- Lena, sério: e?
- Ele disse que só iria se você fosse também. disse que você era a única pessoa da turma que ele queria ver novamente.

Ela nem sabia o que fazer com essa informação. Afinal, por que ele resolveria torturá-la mais um pouco, quase dez anos que não se encontravam, quase dois anos desde seu divórcio? Ele era casado, ela estava presente à cerimônia - como madrinha. Era esse o tipo de requinte de crueldade de que ele usara à época. Ele queria que ela estivesse ali, no altar, assistindo seu enlace... Que cretino! E agora é que a Helena dizia isso a ela!

- Acho que quem não vai a esse final de semana no campo sou eu.
- Pára, Rachel. Pára agora, por favor! Você não está pensando direito. Vai ver ele quer te pedir desculpas, talvez acredite que vocês precisam conversar, talvez... - ela nem deixou a amiga completar a frase:
- Pára você, Lena! Pára de inventar desculpas para o Luís, tá? Ele é adulto e sabe bem se defender, não precisa de advogado de defesa.
- Tá, tá bem... Cruzes, que ódio hein, menina? Você precisa se libertar disso.

Então Renata chegou e elas encerraram o assunto. As semanas passaram rapidamente, ela ocupadíssima fechando um novo contrato para sua produtora, as meninas resolvendo os últimos detalhes da viagem. Quando deu por si, já era quarta-feira. Elas tinham reservado um fim de semana prolongado, com feriado na sexta, e iriam viajar na quinta pela manhã. Tinham também montado um esquema de transporte solidário, onde quem tivesse lugar sobrando no carro levaria alguém que estivesse a pé. Era seu caso: o carro precisava de manutenção, e como era só ela mesma, pediu carona. Ela nem sabia com quem iria, e ligou para a Renata para descobrir quem seria seu motorista. Ela desconversou. Disse que a lista estava com a Helena, e que ela não sabia de cor. Então, ela ligou para a Helena. A amiga disse que ela iria com o Olavo, e que ele tinha combinado de ligar para ela combinando o horário da saída ainda naquela tarde. Mas ela tinha o número do telefone do Olavo, e não quis perder tempo. Ligou:

- Oi, Olavo?
- Ele!
- É Rachel, tudo bem?
- ...
- Olavo, você está me ouvindo?
- Ah, claro, Chel... Só estou meio distraído. Tudo bem?
- Sim, malas prontas e tal. Estou ligando para saber como vai ser amanhã. Você quer que eu vá até a sua casa ou prefere marcar um ponto de encontro?
- Ah, eu peguei seu endereço, querida. Não esquenta de vir até aqui! Afinal, passar por aí é meio que caminho, né? Pode ser tipo umas 8h, 8:30h?
- Olavo, você que manda! Eu fico esperando na portaria, que é para a gente não se atrasar, ok?
- Combinado! Eu tenho um Punto preto - fica de olho.
- Obrigada, querido.
- Disponha!
- Um beijo, tchau.
- Tchau.

No dia seguinte, cinco minutos antes da hora combinada, Rachel resolveu descer para a portaria do edifício onde morava, para evitar qualquer inconveniente ao amigo. Estranhou quando o Corola prata estacionou bem na frente do prédio. "Que saco! Agora, quando o Olavo chegar vai ser difícil ele arrumar um lugar para parar... " Estranhou ainda mais quando o motorista do carro abriu a porta, e olhou para ela, sorrindo. "Só pode ser sacanagem!" Era o Luís, andando ma direção da portaria, sorrindo o tempo todo.

- Bom dia! Vejo que continua paranóica com relação aos horários...
- O que você está fazendo aqui?
- Nossa! Nem bom dia? Foi a recepção mais fria da minha vida!
- Nem começa, Luís! Cadê o Olavinho? Ele combinou que vinha me buscar.
- E eu combinei com ele que era melhor você ir comigo.
- Com que direito? E cadê a Maria?
- Ai, que grosseria, hein, Rachel? Eu não tenho idéia da programação da Maria para hoje. Depois de tantos anos, parece que você continua a mesma.
- E você também, manipulador egoísta!
- Bem, agora que já fizemos nosso catching up, deixa eu pegar a sua bagagem.
- Pode deixar, eu vou de outro jeito.
- Ah, vai arrumar um taxi prá te levar até Mendes agora...
- E se eu não quiser passar duas horas e meia de viagem sentada do teu lado?
- Tem sempre o banco de trás... Mas eu acho que a gente conversa melhor se você for sentada no banco da frente.

Ela não respondeu. De alguma maneira, ele sempre terminava as discussões. Para o bem ou para o mal. Incapaz de tomar uma atitude, ela assistiu enquanto ele entrou no jardim da entrada do prédio, pegou suas malas com desenvoltura e se dirigiu até o carro, abriu o porta-malas e guardou sua bagagem. Abriu então a porta do carona para ela e esperou que entrasse para fechá-la.

- O filho do Olavo está internado na emergência do Copa D'or. Crise aguda de bronquite. Eles não vão mais viajar. Ele achou que você ia entender.
- Meu Deus! Será que eu não devia ir até lá, prestar solidariedade?
- Faça isso por telefone, querida. O dia está lindo e provavelmente vai esquentar - e eu não quero pegar a estrada mais tarde.

Viajaram por quase uma hora em silêncio - um silêncio pesado, denso, que se poderia cortar com uma faca - quebrado somente no início, pelo som da voz de Rachel ao telefone com Olavo, perguntando pelo menino. A conversa foi rápida, ela ficou mais tranquila, mas ainda estava irritadíssima com o amigo. "Custava ele me avisar que não poderia me buscar?" Mas ela sabia que talvez não tivesse cabeça para avisar nada a ninguém se seu filho ficasse doente. Era estar tão perto dele que a deixava tensa. Sempre houvera essa tensão entre eles.

Ele resolveu parar num posto de gasolina. Virou-se para ela e disse:

- Eu preciso completar o tanque, e estou com fome. Se você puder ficar aqui enquanto abastecem o carro, eu vou lá na conveniência. Quer alguma coisa?
- Não, obrigada. Pode deixar esse abastecimento comigo - eu proporia o mesmo ao Olavo.
- Não precisa, boba. Eu iria fazer a viagem sozinho, ia gastar o mesmo combustível. Só me faz um favor?
- Sim?
- Tenta ser menos chata durante o próximo trecho, ok? E, se você quiser, pode dirigir o carro.

Ela ficou ali, imóvel, enquanto ele se afastava em direção a loja de conveniência, olhando para ele enquanto caminhava. Não sabia por que, mesmo depois de todos esses anos, ele ainda provocava todos aqueles sentimentos nela. Quando o frentista terminou o abastecimento, ela pediu que verificasse água e óleo, completasse o compartimento do limpador de párabrisas e lavasse os vidros - mais para fazer hora do que porque fosse necessário. Quando ele voltou, o carro estava pronto para prosseguir, mas ela não.

- Tenho que ir ao banheiro.
- Banheiro de posto, Rachel? Tem certeza? A gente pode parar mais adiante, num lugar mais limpinho...
- Não, Luís, a gente já perdeu um tempão aqui, vamos chegar tarde demais no hotel fazenda se formos parando como um trem da Central!

Eles riram. riram muito. Tinham usado o Parador por tantos anos... Quantas vezes pegaram aquele mesmo trem juntos, indo ou voltando da escola, rindo como agora?

- Numa boa, Lu. Eu não sou assim tão fresca - sou suburbana por dentro.
- É a primeira vez hoje que você relaxa de verdade.
- Ah, é, espertalhão? E por que?
- Você não me chama de Lu há uma década.

Ela sorriu sem graça e virou-se na direção dos banheiros. Estava trêmula, e não conseguia pensar direito. Ela realmente o tinha chamado de Lu - "um diminutivo para um nome diminuto", como ela costumava dizer, brincalhona, naquela época. Era um deslize que não poderia se repetir.

Voltou rapidamente e perguntou se poderia mesmo dirigir seu carro. Ele assentiu e ela sentou-se atrás do volante. Sempre quis dirigir aquele carro, e aproveitou a oferta dele sem inibições - sabia que era boa motorista, e pelo jeito ele também se lembrava disso.

Detrás do volante, o tempo passava mais depressa, e ela pisava fundo no acelerador, encurtando as distâncias. Ele não reclamava. Parecia até estar curtindo o momento, e eles conseguiram entabular uma conversa sobre amenidades, como a previsão do tempo para o final de semana e o resultado da megasena. Mas a tensão estava ali, e os dois sabiam que ela não desapareceria, simplesmente. Aquela tensão sobrevivera ao tempo e a distância.

Ela não iria a lugar nenhum.


(to be continued...)


domingo, 10 de outubro de 2010

Nojo

Quando eu finalmente te matar dentro de mim eu reapareço, cretino. É, é você mesmo, seu mentiroso.

sábado, 9 de outubro de 2010

Under the influence of the moon...

Silêncio.

Tudo em mim é silêncio. Não é proposital. É um movimento para dentro, é o deslocamento da alma na direção dos processos misteriosos que se desenrolam no íntimo do meu corpo.

Os personagens que me habitam normalmente perderam a força para esse intruso, que já foi microscópico e minúsculo, hoje é mínimo, e em breve será grande - mas já é perfeito, porque é meu, e é nosso, e está presente.

A sua companhia, que ainda é indelével, a cada dia se avoluma, e logo será impossível que me passe despercebido. E, na velocidade do tempo que passa, logo estará em meus braços, e eu o alimentarei no meu seio, e a minha vida estará completa.

Então quero dizer que talvez, só talvez, eu fique um pouco distante desse lugar aqui. Não o abandonarei porque é parte de mim - e uma parte importante, que negligenciei por tanto tempo e que hoje me é carissíma. Mas tenho tanto em mim agora a que preciso dar atenção...

Amo todos vocês, meus amigos, meus leitores - tão poucos e tão fiéis - que me acompanharam nessa redescoberta. Perdoem meu distanciamento, e o decréscimo de qualidade que eventualmente sofram meus já nem tão bons escritos. Até a próxima...


segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Bad morning

Quando eu cheguei ela já estava lá: sentada, de costas para a porta, a cabeça levemente tombada para o lado esquerdo - como ela faz quando está tentando se concentrar em alguma coisa. E aquela mancha roxa ali atrás, na curva do pescoço, do lado direito!

Precisei sair e me recompor antes de entrar novamente e dar bom dia a todos. Precisei respirar fundo e sacudir a cabeça vigorosamente - mas a marca em seu pescoço era o mais perturbador dos vestígios de sua vida pessoal que ela podia trazer para o trabalho.

Ela tinha alguém. E esse cara devia ser louco por ela para marcá-la daquela maneira...

(Quem não seria louco por ela?)


domingo, 19 de setembro de 2010

Terapia de choque

"Essa é a sua vida agora."

Ele disse aquilo como um oráculo, não como um homem comum. Disse num abraço pós-coito, assim como uma banalidade. Ela lhe dizia que a vida estava entrando nos eixos, e de repente tudo ia por água abaixo novamente. E ele soltou essa frase, e ela entendeu tudo. Muito mais rápido, muito mais efetivo que trinta meses de terapia.

Sexo terapia. Custava só a conta do motel - e ela fazia questão de pagar: cash, no traces.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Out of his life

Não saberia dizer com certeza quando foi que percebeu que o havia perdido de vez.

Se fechasse os olhos, poderia lembrar de vários pequenos indícios - mas não queria fazê-lo. Era por demais doloroso sentar ali no chão da sala, abrir a gaveta de polaróides imaginárias e relacionar cada um dos mini sinais de abandono. Mas isso não era o pior.

O pior era colecionar as impressões erradas a respeito de suas intenções, algo que ela temia ainda mais que aquele momento de escrutínio da memória. Fez o esforço supremo de espalhar as imagens pelo chão, no tapete a sua frente, e elas compuseram um mosaico ajeitadinho, colorido na medida do preto e branco, ocasionais cores aleatórias e desconexas - e em cada uma, um retrato do caminho que ele escolheu trilhar. O que em suas lembranças parecia algo esparso e eventual estava ali registrado, cada instantâneo como mais um tijolo naquela yellow brick road: Dorothy is fleeting back to (argh)Kansas.

Desde o início, ele se decidiu sobre os dois. Ele a amara, ela não tinha dúvidas, mas não permitiria que ela se aproximasse demais. Ela, de seu cantinho, queria só proximidade. E então, ele fez o improvável, dadas as circunstâncias: construiu com as próprias mãos a estrada do distanciamento. Entre um passo e outro, ela costurava as evidências daquele amor com pontos pequenos e invisíveis, como uma costureira prendada e talentosa, mantendo a trama daquele amor densa e fechada. Quem olhasse de fora jamais imaginaria. Mas aquele era um amor fadado ao fim. Ao pior fim possível.

Ela sentia dentro do peito uma ferida que nunca fecharia. Ele sentia que faltava pouco para que ela desistisse, e continuou trabalhando incansável em seu projeto, a estrada que o levaria para fora da armadilha daquele amor tão perfeito que o estava sufocando. E foi ela que precisou dar cabo daquela costura. Puxou a última laçada, arrematou a trama com um pequeno nó, quase imperceptível, e, com a tesourinha de bordado, cortou o fio que os mantinha atados. A dor do corte, ela sabia, acompanharia seus passos por toda a vida. Ele, mantendo a postura de fortaleza altiva, pouco sinal deu do próprio coração ferido. Ela nunca saberia, ele jamais enunciaria em voz alta - doera nele também.

Suas lágrimas foram o óbolo e o epitáfio da paixão. Aos dias seguiram-se as noites, as semanas viraram meses. A progressão ritmada do tempo afastava o momento presente do fim com absoluto rigor. Logo pareceu-lhe que nunca houvera dois naquela brincadeira. E, no entanto, ele ainda ali por perto, os dedos que lhe roçavam a pele do rosto tocando agora seu antebraço; as conversas - antes sussurradas e íntimas - agora corriqueiras, tomando os contornos do cotidiano. E, de repente, caiu-lhe a ficha: ela não mais fazia parte da vida dele. Estava alijada dos acontecimentos mais relevantes, já não saberia dizer onde ele estaria ou o que estaria fazendo a qualquer hora do dia ou da noite, nem receberia mais updates precisos (e tão preciosos) por torpedo em seu celular.

Ela estava definitivamente fora de sua vida.



domingo, 12 de setembro de 2010

Anjo da Morte

O dia transcorria letárgico e frio, a melancolia transbordando por seus poros como as bolhas que se elevavam no flûte de champagne ao seu lado, sobre a mesa da varanda.

Ela olhava o horizonte encoberto procurando por trás das nuvens os contornos do maciço conhecido a sua frente. E suspirou. A tempestade que se formava não combinava com o champagne, e no entanto refletia como num espelho cristalino a escuridão em seu coração. Era o fim - como no princípio. E ela não deveria mais se surpreender. Quantas vezes já tivera que recomeçar?

Os olhos pousados no horizonte sustentavam o peso de seu corpo, um cabo de aço estendido no espaço entre ela e a amplidão. Havia um mundo a conquistar. Havia tempo - mas era sempre menos tempo, cada vez menos tempo... Ela imaginava, no passado, que eventualmente encontraria o caminho certo a seguir, e tudo entraria nos eixos, como mágica. A cada movimento no tabuleiro de xadrez da vida essa teoria parecia menos provável, e dessa vez estava claro que não havia um caminho certo para ela, que sua vida sempre a levaria para longe, cada vez mais longe - e inacreditavelmente, cada vez mais perto da origem.

Naquela tarde tempestuosa, ela foi até o quarto pela última vez. Recolheu suas roupas e poucos pertences, limpou o cômodo cuidadosamente, como se para eliminar os vestígios de sua passagem pela Terra, arrastou a mala até a porta e olhou para trás, conferindo se por acaso algo de seu ficara ali. Fechou a porta atrás de si com firmeza, e afastou as lágrimas que queriam chegar sem convite. Dirigiu-se à sala de estar, onde os herdeiros já estavam reunidos, os abutres. Por três anos inteiros ela cuidou daquela mulher moribunda. Sim, ela era terrível e cruel, e não tinha palavra alguma de carinho para quem quer que fosse. Mas era um ser humano.

Durante três anos: nem telefonema, nem visita. Sequer telegramas de aniversário. Era como se a defunta fosse a criatura mais solitária do universo, e ela se compadeceu imediatamente do sofrimento da pobre mulher. Era acompanhante, cozinheira, enfermeira e ouvinte. Nos últimos meses, as dores cada vez mais excruciantes fizeram com que os médicos receitassem morfina - e a mulher passava as poucas horas de lucidez contando, sem nexo ou noção de tempo, histórias de seu passado. Só então ela soube que havia família, herdeiros.

Não se surpreendia. Não era a primeira vez que via isso acontecer. O que de fato tornava tudo aquilo intolerável para ela, o que trouxera a melancolia com as bolhas do champagne, fora a necessidade de recolher suas coisas e partir novamente. Estava cansada de ir embora. Precisava de uma vida que fosse sua, para onde voltar quando o fim chegasse novamente. Precisava de pouso. E a ironia nisso tudo era que ela tinha deixado a família para se aventurar numa vida sem pouso certo, sem raízes - porque ela acreditava que só assim seria realmente livre.

Tinha finalmente se cansado de ser livre. Sua liberdade era uma corrente a que estava presa, e que ela escolhia atrelar à vida de alguém com dias contados. Era a ilusão de liberdade que um grande viveiro dá ao pequeno canário. Seus novos cenários eram sempre dor e morte, com pequenas variações de como e por quê.

Recebeu do advogado da família o último pagamento, mais uma pequena gratificação pelos bons serviços prestados à Dona Carmela - segundo ele, um presente da falecida - e despediu-se com pêsames a todos. A filha mais velha deu-lhe também um par de brincos de pérola, e ela sentiu que eram como uma esmola - mas achou que não seria apropriado recusá-los. Agradeceu de olhos baixos e retirou-se em direção a porta da rua.

Partiria para a missão mais dolorosa de sua vida - era a sua velha mãe que definhava agora. Quando seus pés alcançaram a calçada do outro lado da rua e seu braço estendido fez parar o taxi, as lágrimas indesejadas afloraram como nascentes - e ela pensou que era melhor chorar no caminho.

Ela não sabia por quanto tempo conseguiria reter as lágrimas dessa vez.


domingo, 22 de agosto de 2010

Fogo

Dentro de mim há fogo. Um novo filho - ou filha - que chegará regido pelo fogo. Virá o fogo ao seio da minha família, um lar de terra e água, um lar sólido e fértil. O que o fogo trará até aqui?

Meu filho é fogo. Ele vem queimar meus medos e resíduos inflamáveis.

Eu sou água. Existo para aparar-lhe as arestas, para conter-lhe a fúria. Para amá-lo e saber perdê-lo.

Há um caminho de purificação para mim, através do fogo. Para ele, através da água.

Eu estou fluindo e ele flui. Ele chegou para mim sob o signo da força. Daqui a sete luas saberei o que sentir. Hoje ele cresce, tira de mim o que é para si. Amanhã, aprenderei com ele as estradas que sempre temi trilhar.

O mistério mais que decifrado da embriologia humana se desenrola em meu ventre. No coração, o mistério indecifrável do amor indefinível se reafirma em minha história. Eu já sou mãe.

E serei.



terça-feira, 17 de agosto de 2010

Súbito

Ainda é você em meus sonhos, nos lençóis onde jamais se deitou - ainda é você.

Passaram os dias. Transformaram-se em meses. Anos, até. E obviamente ainda chove nesta cidade onde vivo, onde persisto. Mas nunca mais houve uma enchente como aquela, querido. E eu sou transportada ao passado toda vez que a noite cai às três da tarde...

Sim, a vida seguiu e segue, eu sou feliz e não posso imaginar que estar contigo pudesse ser melhor que isso. Mas a mente vaga, e eu não sou capaz de refrear o coração. Ponto. E você sabe disso, sempre soube ler minhas entrelinhas e preencher minhas lacunas. Não que nossa história tenha sido lacunar. Foi breve e intensa, irresistível e poderosa. E sei também - foi necessária.

Nossas estradas se enlaçaram por um intervalo mínimo de tempo, suficiente para chacoalhar as nossas vidas e nos devolver ao mundo dos vivos. E eu nunca chorei tantas lágrimas inúteis num travesseiro. Tinha que terminar como começou.

Subitamente.


Balança

Eu pude senti-lo, enquanto retirava seu peso de sobre nossa cama - senti que se retirava de mim - corpo e alma.


domingo, 1 de agosto de 2010

Parafraseando Pessoa

Arre, estou farta de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?


Basta!

Estou farta da tua correção vernacular

Do teu conhecimento enciclopédico

E das definições dicionarescas dos verbetes

E expressões idiomáticas relacionadas

Ao amor!


Que sabes tu do amor, ó Deus

Sentado em teu pedestal marmóreo

Ouvindo os loás entoados, como mantras

Por tuas virgens vestais?

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sábado, 31 de julho de 2010

Compulsivos anônimos

Boa tarde. Meu nome é Elisa, e eu sou viciada em primeiros beijos.

Ela disse e não soube como continuar. Respirou fundo. Fechou os olhos, a princípio suavemente, em seguida apertou-os bem, como se aquilo pudesse transportá-la para outro lugar - um lugar onde ela não houvesse verbalizado aquela confissão àqueles perfeitos estranhos.

Era uma reunião dos compulsivos anônimos. A maior parte das pessoas ali comia para cacete, ou trepava desenfreadamente, ou gastava dinheiro que não tinha - gente que qualquer pessoa sensata consideraria sem noção mesmo. Ela conseguia ouvir a voz da mãe, no fundo da cabeça: "o que você está fazendo aí, menina, andando com essa gente esquisita? Menina de família não confessa nada a gente sem noção! No máximo, ao padre - e olha, se souber que ele quebrou o sigilo vale até matar! Saia já daí!" Ainda ficou mais alguns segundos ali, os olhos cerrados, a respiração suspensa. E então resolveu continuar:

Pode parecer um vício singelo e pouco prejudicial. Vocês podem estar pensando "pelamordedeus, o que essa garota veio fazer aqui, porra! A gente está precisando pôr prá fora um monte e ela aqui, fazendo a gente perder tempo!" Acontece que o que pode parecer uma brincadeira inofensiva e infantil é na verdade um hábito perigoso, que já destruiu a minha vida e a de outras pessoas algumas vezes.

Eu tenho 28 anos e já estive em 15 relacionamentos estáveis, já morei com 15 pessoas diferentes, cara - homens e mulheres - e desde que saí da casa da minha mãe nunca tive endereço próprio: sempre me mudei para a casa/vida do meu novo primeiro beijo.

O primeiro beijo é uma experiência inigualável. Nada é tão delicioso, tão desejado, tão antecipado - e talvez por isso mesmo - tão hipervalorizado quanto o primeiro beijo. Fui beijada pela primeira vez quando tinha 13 anos. Eu era pouco mais que uma menina. Ele era o cara mais lindo da escola, e estava no terceiro ano do ensino médio. Ele não era só um cara: ele era uma idéia de perfeição, um ídolo inatingível. E estava ali, me beijando. Depois do primeiro beijo, do sorriso meio sem graça e da conversa sem sentido que se seguem ao primeiro beijo, veio o segundo - merda, o segundo beijo nunca é igual ao primeiro! Você já sabe como vai acontecer, como o cara vai tocar em você, como vai mover a língua... Sei lá. Só sei que o coração não bate igual, você não perde a noção de tempo-espaço, não ouve somente o ritmo acelerado da própria respiração tentando desesperadamente estabilizar o pobre coração dentro do peito.

Eu nem namorei o Ricardo muito tempo. Numa festa, três semanas depois, apareceu um cara mais velho, primo de alguma menina da minha turma, de moto, jaquetão de couro e cara de bad boy. E eu quis beijar o cara. E o Ricardo viu. E só. Ele foi embora, triste-tristíssimo, e eu nem fui atrás dele! Nem tentei conversar com ele, nem pedi desculpas!

Ela fez uma pausa. Ela chorava um pouquinho, e só estava percebendo isso naquela momento. A lágrima gordinha estava escorrendo pelo canto externo do olho direito, e ela podia imaginar a risca negra borrando seu rosto. O lápis preto sempre faz cagada. Ela nunca deveria ter usado lápis preto numa ocasião como aquela.

E eu nem fiquei o resto da noite com aquele cara. O segundo beijo sempre decepciona...

É claro que as coisas não continuaram assim até hoje. Eu aprendi a esperar um pouco mais, a controlar o desinteresse e a manter os relacionamentos. Mas nunca dura, porque eu não me importo com nada que vá além do primeiro beijo. Pelo menos não de verdade.

Quando eu fiz 17 anos, saí da casa da minha mãe com o Leonardo. Ele era o caixa da livraria que eu gostava de frequentar, tinha uns 22, 23 anos e eu sonhava com a boca dele, com sua língua, todas as noites. Ele foi o cara que me deu mais primeiros beijos até hoje. Foi com ele que eu descobri que as pessoas podiam mesmo surpreender, e foi com ele que eu pensei ter superado a minha compulsão. 15 meses depois o Leo me pegou beijando a Regina, uma menina que trabalhava comigo no Mac. Ela era lésbica. Eu nunca tinha beijado uma mulher antes. Foi irresistível. Aquilo para o Leo foi o fim. E eu me mudei para o "cafofo" da Regina - ela morava num quarto, numa pensão. Meu tempo com ela foi curto, o sexo era até bom, mas eu nunca deixei de beijar outras pessoas enquanto estava com ela - meninos e até outras meninas, amigas dela. E ela, que até curtia, achava que eu era ninfomaníaca por isso, achava que a gente ia ficar dividindo parceiras sexuais, encheu o saco de mim - nunca foi pelo sexo. É só pelo beijo. Rapidinho eu arrumei um cara que me acolheu - eu nem lembro dele direito, mas o beijo era incrível, e eu achei que valia a pena repetir.

Isso só virou um problema na minha cabeça agora. É sério. Eu estou meio que vivendo com um homem dessa vez, um homem de verdade. Ele é meu professor na faculdade de administração, e eu nem sei o que ele vê em mim! Ele é uma pessoa estável, e pessoas estáveis não costumam se comprometer com os problemas dos outros. Mas ele me pegou chorando, sentada nas escadas da biblioteca, e resolveu perguntar por quê. Eu disse a verdade: tô cansada de viver de mudança! Eu nem tiro mais as minhas coisas das caixas... Ele sentou do meu lado e deu uma risada - e me escutou de verdade. E eu beijei ele. E eu senti uma coisa que eu nunca tinha sentido antes, e que eu não sei explicar, e que a minha mãe diz que é amor. Porra, o cara é casado, mas me botou num apartamento dele e disse que eu posso chamar o lugar de minha casa, e dar o endereço como meu! Ele vai lá todo dia, antes ou depois do trabalho, me ver. E todo dia beijá-lo é como a primeira vez... Eu estou apavorada como nunca estive antes - mas isso não é suficiente para me fazer parar. Eu ainda beijo uma pessoa diferente por dia. Às vezes mais. Pelo menos beijava. Até ontem.

Ontem eu descobri que estou grávida. A partir de agora eu sou responsável por outra pessoa. E é por isso mesmo que não posso mais viver essa vida doida de não ter paradeiro, de não me importar com as pessoas, de querer só a emoção acima de tudo. Essa criança precisa ter um lar, não só uma casa. E ela nem precisa de pai! Ele é casado, e eu não quero destruir a vida de ninguém. De mais ninguém, nunca mais. Eu quero encontrar equilíbrio na minha vida! E nem é por mim. É por ela - ou ele, ainda nem dá prá saber...

Quando terminou estava exausta. Não sabia o que fazer com o que tinha dito. Mas era tudo verdade. Havia muitas pessoas ali olhando para ela, e em cada olhar havia compreensão e mais alguma coisa indefinível - talvez fosse acolhimento, ela não saberia dizer. A pessoa que estava dirigindo a reunião disse somente "Obrigado, Elisa."

E ela começou a chorar.




As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...