segunda-feira, 31 de março de 2014

Tum-tum estereofônico

E nem é da tua carne que eu sinto falta. A carne é importante, mas é de menos. Todo homem tem piroca, é um fato biológico, e nem importa essa falácia de "mas não sabe usar", que qualquer mulherzinha bem mequetrefe consegue arrancar uma boa gozada de uma boa piroca. O caso é que a tua é pequena e nem é grossa o suficiente para uma fricção razoável. Eu gozava contigo porque eu te amo, e o amor brilha olhos que passam a ver belezas e habilidades especiais onde nem há. Eu penso que se hoje eu deixasse você me comer ia ser uma foda bem ruinzinha, mas o pós-foda... Ah, é disso que eu sofro mais: carência pós-foda.

Sinto falta de deitar a cabeça no teu peito, encostar minha orelha naquela depressão escrota que você tem lá... era onde eu ouvia melhor o teu coração, batendo num compasso sincopado e preguiçoso, e achava que aquilo era, só podia ser, amor. Hoje sei que o teu peito é oco, e que eu ouvia meus próprios batimentos. Tua caixa torácica reverberava a paixão que o meu coração executava em som estereofônico.

E ainda assim eu sinto falta, não nego. Negar para quem? E para quê? Sei o que carrego de você em mim, e não preciso que me lembrem, nem dou caso de esquecer. Elefantes... elefantes não esquecem jamais. Também não sigo por aí desfraldando bandeiras, declarando essa saudade. Calo e sigo. Só.

As noites que passo em outros braços, outros corpos em minha cama, suprem a necessidade de carne. O açougue está cheio! E depois do gozo, eu viro para o lado, encaixo a orelha onde imagino a depressão escrota no travesseiro e fico escutando o teu coração imaginário por um longo segundo. E converso com as lágrimas que ecoam a tua ausência estereofônica.

Narciso

Construí uma casinha na curva do teu pescoço, para que eu possa guardar meus sonhos e encantamentos perto do teu coração, da pulsação vibrante do teu sangue nas veias. Quero me deixar ficar quietinha, não pesar e poder contemplar em silêncio a maravilha que é você.

Quando eu julgava que nada mais poderia florescer nas terras salgadas do meu sonho, veio esse botão absurdo, esse Narciso bravo e desafiador, e rasgou com vontade resoluta o véu do chão seco e rachado, o barro vermelho e pisado e desolado que restou da última aventura. O meu mundo tão desvalido estremeceu inteirinho, e a poeira assentada espalhou-se no ar. Desde que o Narciso se elevou do chão, outras coisas brotam, como para acompanhá-lo, para que não fique sozinho.

E ainda que ele se vá, eu sei que vai deixar esse lugar bem mais bonito do que o encontrou. Toda a sua potência, sua beleza e seus gestos impensados, tudo na minha memória, como se fosse Ano Novo todo dia, ainda que meus olhos não possam pousar sobre ele nem roçar de leve a sua fronte, nem respirar o ar à sua volta. Quero é mudar logo para a casinha no teu pescoço. Lá, onde floresceu o meu Narciso, e inúmeras borboletas anunciam a mudança das estações: é lá que vou me abrigar, esperar a chuva passar. E amar.

Abre os olhos, amor meu. Era o fim dos tempos, agora é o dia de Ano.

E tudo é possível outra vez...

segunda-feira, 10 de março de 2014

Baile de máscaras


Ele levantou devagar. Tateou em volta, buscando a máscara que estava usando antes de pegar no sono, aqui do meu lado, na minha cama.

Pôs uma bem bonita - a máscara do amante apaixonado e embriagado - esta tarde. Acho que porque nós brigamos ontem à noite, e ele imaginou que fosse necessário fazer esse tipo para me reconquistar. Ele coloca muita energia nisso. Mas já devia saber que para mim, nem precisa. Eu já assisti ao espetáculo da troca de máscaras tantas vezes, e tão de perto, que sei de cor o truque, a ilusão que provoca a sua volta. Mas não me pode causar impressão.

Levantei também, e deixei que se exasperasse um pouco enquanto procurava seu adereço, e tomei um banho. Ele entrou no banheiro de máscara trocada - agora era o cafajeste tarado que vinha atrás de mim no chuveiro. Gosto do modo como esse faz sexo, mas não estava disposta. Tínhamos acabado de fazer amor - e sexo depois de fazer amor me parece tão misplaced... Ele saiu irritado, foi para a varanda fumar um cigarro e esperar que eu saísse dali.

Vesti o roupão macio e resolvi preparar um jantar. Ele ia namorar naquela noite, e só quando estivesse no elevador colocaria o disfarce usual nessas ocasiões: bom rapaz. Eu sabia que voltaria depois para provar a comida pelo jeito como farejou o ar quando saiu do banheiro, perfumado e penteado, vestindo uma bela camisa de seda. Pegou a calça e os sapatos que eu tinha engraxado, terminou de vestir-se e veio me beijar o pescoço e apalpar meus peitos e bunda, o cafajeste ainda sorrindo com o canto da boca, um sorriso safado e o ar mais descarado possível. Ele é a perfeita ilusão.

Para cada ocasião, uma máscara. É o perfeito cavalheiro para as velhinhas desamparadas nos mercados e padarias da vida, cafajeste comigo e outras tantas por aí - vai saber - o canalha mor para seus amigos do peito. O bom esposo e pai para a família - o olhar da mulher brilhando enquanto enumera suas qualidades - o charmoso sedutor para cada desprevenida da cidade. O profissional responsável e respeitado, o bom filho, o bom rapaz, o pobre coitado- que faz cara de pidão e consegue tudo que quer, o macho-alfa, o capitão, o filhão, o homem íntegro, irreprovável, o rebelde... Pensa tê-las colecionado, ao longo da vida. Pensa que são fruto de sua experiência. Hoje eu sei que, de fato, ele é possuído por suas máscaras, é seu prisioneiro, o item de sua coleção. De tanto usar máscaras, já nem se lembra qual a sua verdadeira cara. Perdeu-se no labirinto estreito e meandroso de suas performances diárias para a multidão de incautos que o cercam. Penetrou tão profundamente no labirinto... Cada passo adiante mais confuso, menos confiante. Mais veloz a cada passo - ele quase corre! Para quê? Isso ele não sabe, não sabe mais.

A única verdade que ele conhece é o gosto da minha boca, o perfume dos meus cabelos. Minha beleza, sua única certeza - e seu vício, só por hoje. Ele não tem um coração para me dar, não mais. Ficou perdido no labirinto, junto aos seus sonhos e esperanças. Tudo que lhe resta é a busca por sua própria face. Ele volta para mim porque sabe que eu sei quem ele é, de fato. Ele quer ver-se refletido nos meus olhos, drenar de mim a energia vital que impede seu desaparecimento, sugar a própria essência de dentro de mim. Eu o guardei em mim, não para mim. Porque o amei primeiro - incondicionalmente, perdidamente. Porque vi sua verdade e ela era linda... Talvez ainda seja, sob o desfile de mentiras que se acumulam sobre ele. Sua mentira é de fácil aquisição. O tesouro da verdade que ele esconde é de valor inestimável. Prefiro ser a guardiã desse segredo a revelá-lo, out in the open. Prefiro guardá-lo até que ele encontre o caminho para fora do labirinto - e eu possa devolvê-lo ao mundo. Mas até a remota possibilidade de fugir dali parece distante - um borrão ainda mais fora de foco, quando a observo da minha perspectiva.

E pensar que ele se protege tanto assim de mim. Que ele mesmo construiu o labirinto para colocar-se a uma distância segura de mim.

E eu o tenho nas mãos.

(Fim de papo. O delírio acabou. Posso ouví-lo fuçando as gavetas, procurando a próxima máscara...)

sábado, 1 de março de 2014

Dipshit pelo mundo

Enquanto o blog fica aqui pegando poeira, os textos que nasceram nele, nessa experiência literária, viajam pelo mundo. Através das tramas da web, as minhas palavras chegam longe, a outras pessoas, outros países, outras culturas. E chegam traduzidas. Explico: em 2012, o texto que publico a seguir foi traduzido para o inglês pelo projeto Contemporary Brazilian Short Stories e também figura na coletânea CBSS vol.2, lançada no início deste ano, e disponível aqui. E agora, para expandir os horizontes dessa história, o mesmo texto foi traduzido para o espanhol, pelo projeto Cuentos Brasileños de la Actualidade.

Em Incendiária, o bloqueio criativo é visto pelo ponto de vista do personagem. Ela estava espalhada pelo chão do meu quarto, em folhas de papel amassadas, rasgadas, nunca queimadas. Lembro que me ocorreu que ela devia estar furiosa comigo. "Se ela pudesse tomar as rédeas..." eu pensei. E ela ganhou voz.

Para comemorar o fato de mais pessoas poderem conhecer o meu mundinho, no idioma delas:


Incendiária


Quantas vezes minha história já não foi escrita? Quantas vezes, e por que caprichos o autor não me rasgou as páginas, começando novamente do zero, outras possibilidades e desfechos espalhados pelo chão de sua sala em desalinho – só para depois encontrarem seu destino final, perfeitamente misturados a uma multidão de outros dejetos e chorume – sem sequer terem a chance de ser reciclados?
Incinerá-las seria mais decente da parte dele. Enquanto ardessem, no meio das chamas, fulgurariam num clarão digno do festim de São João, o calor alimentado por elas vivificando as pessoas congeladas a sua volta, a pira sacrificial inflamada como cada palavra perdida e desperdiçada ali. A fumaça se elevando aos céus como oblação ao divino, a força motriz de cada verbo – ação e reação – provocando as mais acrobáticas revoluções no filete ascendente de resíduos daquela quase existência. Saber perder não lhe ocorria com a mesma facilidade de antes. Tinha perdido demais até ali. Não tinha mais estômago para seguir perdendo. Abriria mão de tantas coisas quantas fossem necessárias – será que era realmente necessário perder tudo, tantas vezes, e continuar tocando em frente?
Se era verdade que a sabedoria viria, já estava atrasada. Já se havia passado tempo demasiado, décadas em compasso de espera – e ela aprendera muito pouco, de verdade. Sim, sentia-se ignorante de tudo, mesmo daquelas coisas que ela mesma inventara nas horas em que se permitia o exercício da criação. Tão presunçosa, fazendo aquilo que era reservado aos deuses: de dentro de si, do cerne do ser, iluminado e aquecido pela tal fogueira, emanações de átomos e moléculas davam origem a um universo original e novo. Totalmente novo. Daqueles que cabem numa minúscula cúpula vítrea, e desfilam dependurados na coleira de um gato durante os 120 minutos de duração da película. E de cuja existência e preservação podem depender as vidas da Terra.
E mesmo assim ela preferiria que ele tivesse a decência de incendiá-las.

As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...