quarta-feira, 31 de março de 2010

Miller

E ele disse a ela, os olhos em uma fotografia antiga, colorida em sépia e tons de cinza: "Eu amo você com onze anos. Amo você agora. E irei amá-la quando tiver cem anos."

Talvez o amor seja isso - uma foto amarelada dizendo de alguém que você não conheceu, e sempre, sempre amou. Talvez o amor seja como um viajante do tempo, o DeLorean DMC-12 indo e voltando, e a gente lá dentro, sem poder sair. Talvez a gente sempre saiba quem vai amar, mesmo que nunca tenha visto nem jamais volte a encontrar esse amor.

Eu sempre soube que ia amar você. Eu disse isso a alguém bem próximo antes mesmo de a nossa história começar. Eu pus meus olhos em você e soube - e é uma pena mesmo, esse saber sem solução, essa promessa sem jeito. Eu vi a sua natureza verdadeira como se você fosse transparente, e o teu coração de carne estivesse visível para mim como os fios negros da tua barba espessa. Tinha tudo para dar certo, tem ainda, sempre terá - mas há questões outras, e aquilo que foi ainda é, mas é também outra coisa agora, outra coisa daqui para frente. E deu certo - de verdade. Está funcionando de outro jeito. Tenho um momento ou outro, como antes, mas não tenho a ansiedade da espera, aquela incerteza excruciante, a dor que mora no ventrículo esquerdo, essa lança transpassando o peito e o pensamento. Esse "what if", no more. Daqui para frente é não, e nesse não mora o eterno sim recitado no altar da cama, seu perfume como incenso, holocausto, presente - e em cada lugar onde eu te vi pela primeira vez.

O que ele disse a ela eu te digo: "Amo você aos três anos, e amo você aos oito. Amo você agora. E irei amá-lo quando tiver cem anos."

E nos meus sonhos perdidos... Bem, isso já é outra história.


Anaïs

Foi alguma coisa que ela disse: "E chorei pela minha dor, por não estar acostumada a ausência dela". Aquilo calou a sua alma. Queria sentir aquilo, cada uma de suas células, as entranhas de cada órgão esperando, ansiando pelo momento em que a dor finalmente se mudaria.

Então, passou a se expor a tudo que já lhe provocara dor. Não. Ela não pisou em pregos, ou prendeu dedos em portas deliberadamente. Era a dor essencial, íntima, espiritual a que ela vinha se expondo, de maneira quase exibicionista. Procurou colegas de escola dos tempos de infância, seus primeiros amores, o namorado com quem teve seu primeiro momento de intimidade. A professora que uma vez caçoara de sua escrita rebuscada, o inspetor que a flagrara em seu único instante de rebeldia e a humilhara diante de toda a classe. Engraçado como nada disso fez a dor voltar.

Ela ficou se perguntando, por muito tempo, diante do espelho, onde diabos aquela dor foi se esconder. Porque sentia falta dela! E de seus olhos, as lágrimas escorreram espessas, sentidas. Sabia agora exatamente com a outra se sentira. E sabia também da verdade: o adeus à dor era impossível.

Ela espreita constante, e é decidida. A dor estará a espera - e nunca se sabe no que se vai topar...

quarta-feira, 17 de março de 2010

Culinária fusion

Era uma redução perfeita de aceto balsâmico a base fundamental daquele molho.

E ele se esmerava. Jamais perdia o ponto, jamais descuidava do relógio, jamais aumentava a chama para que andasse mais depressa. Era paciente e dedicado quando na cozinha, e isso lhe rendera a reputação de chef - na verdade, era conhecido como um dos melhores chefs da cidade.

Acreditava num comprometimento total com o trabalho, e era quase uma devoção pessoal aquele restaurante. Seu primeiro êxito, sua história de sucesso. E, por que não dizer - sua história de amor. Em especial os molhos - tinha convicção de que era nos molhos que residia o segredo de seu sucesso, e nenhum sous chef tivera acesso às suas receitas elaboradas. Nem os mais fiéis. Nem aqueles a quem ele confiava a finalização dos pratos - e isso era raríssimo. Talvez tivesse razão. Cada um de seus molhos tinha uma personalidade própria, um perfume e uma textura únicos, uma aparência superior. E, quando tocava o palato, explodia em nuances delicadas e vigorosas. Surpreendentes. Vertiginosas. Individuais. E cada um tinha um nome.

Um nome de mulher.

Tudo o que sabia, tudo o que trazia para a sua cozinha, viera de uma mulher. Ou de muitas mulheres - uma de cada vez. De sua avó, que lhe ensinara os primeiros truques - como a forma correta de manusear as facas, ou o pulo do gato de uma juliene perfeita; de sua mãe, com seu modo peculiar de fazer talhar o leite para que a ambrosia saísse perfeita; de suas tias, que preparavam na cozinha da casa dos avós paternos as massas caseiras mais delicadas e primorosas.

Aos molhos, entretanto, chegara por seus próprios pés. No ano em que finalmente decidira que sua inclinação culinária era de fato uma vocação resolveu também que sua formação seria inicialmente prática. Preferiu testar seus conhecimentos em restaurantes obscuros de Paris, e seu talento despontou tão brilhante que foi rapidamente identificado e contratado para trabalhar para um grande chef, na cozinha do restaurante de um hotel cinco estrelas. Andava tão compenetrado que nem a viu entrar. A filha do chef. Estava ali de passagem, viera ver o pai e filar uma comidinha antes de ir para a aula - cursava economia em Sorbonne. O chef pediu-lhe que preparasse alguma coisa para ela, e ele caprichou no penne, cuidou para que estivesse aldente. Mas só quando seus olhos encontraram os da moça sua cabeça concentrada encontrou seu foco, finalmente. Preparou para ela um molho original. Cada olhada na moça, cada vez que inalava o ar a volta dela, surgia em sua mente uma erva, um condimento - como as notas de uma sinfonia - e ele os harmonizara à perfeição. A moça provou a comida, inicialmente contrariada - ela esperava que o próprio pai cozinhasse para ela - para logo em seguida arregalar os olhos, incrédula. Disse nunca ter provado um molho tão substancioso e sutil ao mesmo tempo, disse-lhe até que sentia que combinava com ela. Ele havia descoberto a magia da criação culinária nos olhos de uma mulher que jamais vira antes - e jamais seria sua.

Não porque não se quisessem. Ela quis. Ele quis demais. E por querer demais teve que trabalhar demais, para dar a ela tudo o que sempre teve, a vida a que estava acostumada. E ela, por ter vivido com o pai aquela vida desde sempre, não quis mais do mesmo. Ela chorou. Ele sofreu. O molho ficou. Chamou-o Charlotte. Até hoje, se fecha os olhos e prova o molho, é o gosto dela que sente. Sua saliva doce. Acridoce. Seu perfume de jasmim e anis estrelado. Cardamomo. Coração.

Depois foi Tereza. Pimenta. Canela. Cúrcuma. Com ela ele trabalhava o dia inteiro e fazia amor por toda noite. Quente. Úmida. Pulsante em sua língua como contra seu corpo. A textura macia de sua pele contrastando com a dureza de sua carne, firme, ácida. Seu nome estalando no palato enquanto a língua dele provava seu sexo. Vigorosamente. Loucamente. Seu gosto nos lábios durante todo o dia. Sentia a densidade dos seios dela entre os dedos, na palma de suas mãos. Semicerrava os olhos e encontrava aqueles olhos que o assombravam, grandes olhos negros de mangá. Tereza era fogo, e ardia como cominho, açafrão, alho. E até o fim foi ardente. Entre lençóis, mesmo com outras mulheres ocasionais, era comum que suspirasse por ela - e até hoje sente o corpo todo vivo, o pau duro explodindo de tesão dentro da calça enquanto renova sua devoção àquela mulher. Preparando aquele molho.

Júlia, Mariana, Denise. Em cada molho a sentença final de seus amores impossíveis, cada mulher deixando para ele mais um sucesso na cozinha - e mais um fracasso no amor. Ele tinha pensado daquela maneira até aquela tarde. Victoire entrou no salão - e seu perfume de alcaçuz e gengibre encheu o espaço. Sentiu seu gosto no ato - e as lágrimas adivinharam que dali sairia o molho definitivo. Não porque seria uma paixão passageira. Ela era mais do que isso. Ela tinha o gosto dele mesmo. Misturado ao de sua mãe. A jovem mulher que olhava para ele através do balcão era dele - e de Charlotte. Sua filha.

Adivinhou mesmo antes que ela o revelasse. Por ter-lhe sentido o gosto, antes de ver seu rosto, já sabia exatamente como ela se pareceria. Tinha os mesmos olhos amarelos de gata, seu hálito fresco e mentolado como o de sua mãe. E as mãos de um cozinheiro. Ela era tão dele quanto dela.

E de repente toda a sua vida fazia sentido, naquela luz que dela emanava, naquele sorriso transcendente. E só podia pensar que ela era a prova de que sua vida realmente valera a pena. Toda ela. Até ali.

Mesmo que sua obsessão pelo trabalho o cegasse para o amor de cada uma delas, mesmo que ao final de cada relacionamento sua vida zerasse e precisasse seguir em frente. Mesmo que caísse e levantasse diariamente, e que seu amor fosse fadado a servir ao deleite alheio. Sim, ele era um sucesso, era célebre e celebrado. Mas só agora se reconhecia inteiro. Completo.

E aquela menina seria a base perfeita para o molho que resumiria o trabalho de sua vida. Ela era a fonte inesgotável de sua culinária fusion.

terça-feira, 16 de março de 2010

Metafísica

Sim, a vida terminaria. Não há vida após a morte. Pelo menos não enquanto fenômeno fisiológico que ela se acostumara a estudar insistentemente desde a mais tenra idade. Não mesmo. Ela sabia, ele sabia.

Mas desde aquele amor, ela passara a sentir o indelével perfume da eternidade. Havia nos pequenos detalhes daquele encontro um desejo incandescente de permanência, a vontade de ficar mais algum tempo, o toque intencional da pele se perpetuando na vida, tecendo o seu fio ao dela numa trama única - constituindo algo novo, inusitado.

Quis gritar para o mundo. Anunciar a descoberta intuitiva de algo maior que a fisiologia! Mas, presa como estava aquela estrutura especulativa e minuciosa de pensamento, não pode fazê-lo. Não passa da noite para o dia uma acadêmica a falar assim de intuição, como se a metafísica fosse elevada a condição de ciência exata num piscar de olhos.

Desistiu antes de tentar. Mais fácil aceitar que a existência ruma para o vazio que apostar suas poucas fichas de sanidade num amor que talvez tivesse propriedades transcendentes...

quinta-feira, 11 de março de 2010

Bloody heart

O coração
Num sachêzinho de chá, envolto em gaze
Libera, nessa infusão alcoólica
Amor, dor... Confusão

O coração
Sangrando a amputação
Palpita baixinho:
Senão, se não...

O coração
Cortado em pedaços
No fundo do copo
Dispara - e então

Transita entre os astros
Sem dono e sem mastros
Em que desfraldar
A bandeira do não


terça-feira, 9 de março de 2010

You - in the back of my head

(...)


É sobretudo dessas nossas conversas que eu sinto falta, dessas conversam que nunca tivemos, e que agora acontecem dentro da minha cabeça – sou eu ouvindo você em mim. São os diálogos de um louco – sou eu conversando com a parte de mim que é você, com esses fragmentos de DNA contidos em cada núcleo celular que constitui meu corpo, com os ecos de você que ficaram para mim na partilha – e há por vezes mais sanidade em toda essa loucura que na razão cartesiana sobre a qual construí a minha vida.


(Lights will guide You home / And ignate your bones / And I will try to fix you...)



Álbum de casamento

De tempos em tempos ele se senta, aquele álbum já tão desgastado pelo manuseio insistente entre as mãos trêmulas, respira profundamente, e o abre. Sempre suspira, e surpreende-se com aquele lindo sorriso, luminoso e radiante, ali registrado desde o dia das bodas. Já tantos anos idos, já nem se faz mais isso – vestido de noiva, toda de branco, a manhã azul fulgurante como seus olhos, os cabelos entrelaçados a pequenas margaridas, a renda delicada envolvendo seu corpo – e a igreja cheia, esperando por ela. Na seqüência daquela foto estão as outras, cada momento da cerimônia ali registrado, os amigos, a família, os alunos dela que apareceram para testemunhar a união, a emoção dos dois transparecendo em cada momento capturado pelo fotógrafo experiente, até o padre comovido – por causa daquele anjo que resolvera casar-se com ele. Disso tinha certeza.


No entanto, nunca vira as páginas. Deixa-se ficar ali, diante da primeira foto da coletânea. Ela. Sozinha, brilhando, a sua luz como uma estrela, sua beleza ofuscando seus olhos hoje como sempre, como a cada vez que os pousara sobre ela durante toda a vida que partilharam. Jamais passou incólume pela experiência de fitá-la. Tinha sido um choque constante, era um viver alarmado. Com sua beleza. Era a mulher dele, dormira e acordara a seu lado mais vezes do que o fizera sozinho. Nunca pudera se acostumar com aquele rosto de beleza invulgar. Ao olhar ali, aquela foto, aquele registro de uma felicidade ímpar, tem a impressão de que poderia ter sido tirada ontem, o frescor da expressão de seu rosto, a harmonia dos traços, algo de indefinível - indecifrável – em seu sorriso de Gioconda. Ao mesmo tempo, toda a ambientação rescindindo o perfume de tempo pretérito. Pretérito mais que perfeito. Não desiste de desvendar o enigma, e acredita que será para sempre prisioneiro dessa tortura suave, aquela beleza tão datada quanto atemporal. Tão datada quanto o jornal de hoje, tão atemporal quanto a translação dos planetas – randômica e ordenada – em torno do Sol, uma dança constante como o próprio tempo – como o seu amor por ela: datado e atemporal.


quinta-feira, 4 de março de 2010

Via láctea

Ele olhou para ela e sorriu. Fixou então seus olhos no firmamento do teto do quarto dela - firmamento de starfix fluorescente - e começou a traçar com a ponta do dedo indicador direito as constelações que ali encontrava: “essa é a constelação do amor perfeito, essa é a constelação da concha do teu ventre, e essa aqui é a constelação do beijo...” ele diz, beijando sua boca – de início meio assim de lado, sem desviar os olhos do teto, para em seguida fechá-los e concentrar-se no beijo – entregando nesse exercício anos de distanciamento frio e calculado, totalmente calculado. O que pareceria na verdade um autodomínio fantástico foi aos poucos se tornando algo desprezível para ela. Saber que ele tinha sempre desejado aquele momento, tanto quanto ela, e tinha deliberadamente adiado aquela felicidade simples e concreta do seu corpo junto ao dela – por acreditar de ainda não era chegada a hora, ou fosse qual fosse o motivo – coloria com uma paleta mais sinistra a imagem desse homem ao seu lado.

Lá no fundo da sua mente, guardados como tesouros preciosos, havia outros momentos com ele, sob aquele mesmo céu de starfix. Muitos beijos roubados sobre o edredom florido em tantas tardes como aquela, tantas conversas – longas e profundas conversas – fitando o teto fixamente, como que buscando nas estrelas o motivo para estar ali, nos braços dele, como uma simples amiga, até menos, como um ouvido. Tantas reflexões filosóficas a respeito da impermanência, e tantas justificativas injustas para seus porquês complexos. Ele chegava como ia embora – de repente. E ocupava o seu amor irrestritamente. Era um amor antigo e arraigado, era uma erva daninha e um narciso também – mas tinha um propósito, ou assim ela pensava.

Lembrou-se de tardes solitárias, entre outubro e janeiro, deitada de costas sobre aquela mesma cama. Das lágrimas que derramou por ele, inúteis lágrimas por alguém inatingível. Ela tinha imaginado todo esse tempo que era para ele mera diversão ocasional. Ele se deleitava com seus afagos constantes, sua presença adoradora, seus olhares encantados, os pequenos mimos que lhe dirigia – como oferendas no altar de um deus pagão. Tudo aquilo parecia tão inútil agora. Todos aqueles momentos partilhados com ele, ou com seus pensamentos nele, tudo inútil. Não havia amor para cativar ali. Era outro tipo de sentimento. Era mais amargo – e, embora ela não soubesse exatamente que nome dar àquilo, sabia que não era amor.

De sua parte, o amor era uma constante, tão invariável quanto qualquer constante da física. Ela sabia, desde a primeira vez que seus olhos encontraram os dele. Sabia como quem sabe seu nome desde que se entende por gente. Era um amor tão concreto que se podia sentir, material. Amor traduzido em atos e palavras. Amor que continuaria sendo amor – mesmo na ausência de recíproca. Mesmo na solidão do quarto, mesmo em cada rejeição reiterada, mesmo com a diminuição de si mesma. E sim, ainda seria amor. Mas ela não queria mais.

Cada fibra de seu corpo – que antes ansiara pelo toque delicado e viril daqueles lábios nos seus – parecia agora se retesar com a perspectiva da continuidade daquela troca de fluidos. Ela não queria mais aquilo. Ela quisera, era verdade. Fora verdade até aquele momento. Não era mais – e ela sabia que, dessa vez, não conseguiria – nem queria - fingir...


As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...