segunda-feira, 21 de junho de 2010

Paixão

Há que amar as palavras. Conhecer suas famílias, classes gramaticais, derivações. Cuidar de cada prefixação e sufixação com carinho, usar com delicadeza cada radical, vogal temática, desinência. Há que respeitar as regras de concordância, seja verbal ou nominal.

Há que amar as palavras.

Açoite

Ainda guardo o chão da varanda para os piores momentos. Para os momentos em que eu preciso sentir alguma coisa diferente, algo que me desconcentre, qualquer coisa – mas não essa dor.

É deitada lá, no frio, duro, liso e branco chão da varanda que choro as lágrimas amargas do fim de tudo isso que nós quase vivemos. É quando calço os sapatinhos vermelhos de lacinho, quando eles me apertam todos os dedos dos pés, uns contra os outros, me trazendo cada um deles à consciência – é nesses dias que a dor está tão forte que é quase insuportável. Então prefiro sentir meus dedos dos pés. Prefiro senti-los bem juntos, e o plástico do sapatinho encerrando-os no espaço exíguo em seu interior, como se fossem bebês porquinhos confinados numa pocilga asseada e cheirosa.

Enquanto penso neles, ou no frio intenso do chão branco, duro e liso da varanda, esqueço por um mini momento dos teus olhos azuis emoldurados por tuas pestanas cinzentas e fartas, das sardas suaves que se espalham por sobre a linha de seu malar, dos teus lábios rosados e teus dentes perfeitos de madrepérola, da tua língua que se insinua entre eles e alcança o lábio superior, umedecendo-o levemente.

Essa e outras tantas imagens tuas me vêem a mente com uma freqüência assustadora, e diariamente é teu o meu primeiro pensamento da manhã – e meu último pensamento, antes de dormir. Quero gritar, sorver o sofrimento como um veneno e morrer nos braços desse delírio! Quero dormir, dormir por cem anos, até que o príncipe venha me despertar – e ele chegará montado em seu corcel negro, e ele será a figura emaciada e encapuzada da Morte.

Não tenho ilusões, só esperanças – e mesmo elas estão penduradas por um fio tênue e frágil – que eu sei nunca se realizarão. Não nessa vida, não nessa história – não enquanto eu estiver atada, de pé, no cadafalso.

Quero ver o rosto do carrasco. Quero que ele veja o meu. Quero assombrar alguém como sou assombrada, quero ficar enquanto fantasma! Então o capuz é removido, e te vejo por trás do tecido negro e diáfano...

Sempre serás o meu carrasco, olhos azuis de céus primaveris, pestanas e cabelos cinzentos como os céus nublados de antes das tempestades de verão. Sempre é em teus braços imaginários que morro as minhas mil mortes. Sempre no chão liso, frio, duro e branco da varanda as lágrimas. Sempre os dedos porquinhos dentro do sapatinho vermelho. Sempre na cama de outros amantes o grito mudo chamando teu nome. Sempre a dor.

Sempre a dor.


Meteorologia

Os eventos atmosféricos não lhe interessavam. Para ele, a verdade residia no que está para além da última fronteira terrestre: no espaço sideral, entre os planetas e estrelas distantes. Nunca se importava com a previsão meteorológica. Por vezes era surpreendido por um temporal, ventos, frentes frias. Mas não se abalava: isso era tudo bobagem da troposfera! E de que adiantava ela dar-se ao trabalho de cobrir-se de nuvens, movimentar o ar que a compunha, descarregar suas diferenças de potencial eletrostático sobre os oceanos e continentes? Ele sabia – ela também – que acima das nuvens os céus são azuis, e o espalhamento da luz Solar por dentro dela era o verdadeiro responsável pelo espetáculo colorido de todo dia. Sim, nem o próprio azul que lhe é característico não lhe pertence – e a atmosfera o sabe. As cores do poente, o desfile de violetas e alaranjados, o arco-íris, até mesmo a aurora boreal: tudo isso é um artifício físico, a fragmentação prismática da luz.

A luz do Sol – essa constante – ilumina a Terra todo o tempo. Mesmo enquanto é noite em um continente, sempre é dia em outro ponto diametralmente oposto do Globo. Mesmo quando as nuvens teimam em encobrir sua luz em pleno dia, ainda assim é dia – mesmo quando o dia anoitece na hora do Sol a pino.

Mesmo naquela quarta-feira de janeiro, quando a tempestade desabou sobre a cidade de uma vez, e alagou as ruas entre seu trabalho e sua casa, e ele precisou ligar para avisar a mãe que dormiria no observatório. Mesmo que a companhia dela tivesse sido perfeita naquela noite de verão. Mesmo que tivessem passado metade da noite em claro – sussurrando confidências e inconfidências, rindo alto, fazendo amor por longas horas. Mesmo assim, acima das nuvens – ele sabia, ela nem desconfiava – o Sol ainda lançava sobre a Terra sua luz radioativa. Mesmo que depois daquela noite em claro nunca mais tivessem dormido juntos – ou virado outra noite acordados, nos braços um do outro.

Dito isso, que poderia importar a meteorologia?

Esse segredo da astrofísica ficaria bem guardado, enquanto ele vivesse: que ela é uma estrela, que hoje ela brilha forte nos braços de um homem que soube tomá-la para si, e que em noites de inundação é melhor ficar onde se está, e olhar além do corriqueiro, do cotidiano. Olhar além das nuvens – dentro do coração das galáxias. E lembrar que nada disso importa.


Concurso cultural

Eu me lembro do perfume do café enchendo a casa no fim da tarde, a minha mãe passando o café enquanto minha avó se sentava à mesa da cozinha - os olhos fechados, sentindo o cheiro da bebida. Naqueles momentos íntimos de fim de tarde ela sempre contava alguma reminiscência do seu passado, como o dia em que conheceu meu avô, ou o gosto de um doce de leite que só a mãe dela sabia fazer.
Embora ela já tenha partido há 23 anos, essas lembranças às vezes parecem mais reais que a própria vida...


quinta-feira, 17 de junho de 2010

Aconteceu no consultório (epílogo)

-Covarde.
-Marion, você não entende...
-Entendo sim, Ronaldo. Até bem demais.
-É que você acabou de sair de casa, eu não acho certo a gente assumir o nosso romance publicamente assim, de cara. Dá um tempo para o cara respirar, Marion.
-Ontem - ontem, Ronaldo - você estava quase histérico com a perspectiva de eu trepar com ele. Agora me vem com essa...
-Você não tem respeito por ele, não?
-Ah, eu tenho sim, meu caro! Eu abri o jogo com ele, derramei meu coração aos pés dele - e ele me perdoou. Ele sofreu, eu sofri, a gente se ofendeu e se desculpou. Mas no final, a gente se entendeu. E ele me ama, Ronaldo, muito além do sexo, muito além da carne!
-E agora eu não te amo? Só porque eu ainda quero deixar a coisa quieta?
-Eu não disse que você não me ama. Eu sei que você me ama, Ronaldo. Eu sei reconhecer o amor - e você me ama, eu apostaria a minha vida nisso. Mas esse amor não muda a tua covardia.
-Por que você quer me magoar assim?
-Querido, eu não estou me mudando para o teu apê. Eu quero uma vida só minha! Eu não quero ser tua dona, nem te pôr cabresto ou estribo. Eu quero que você seja tão livre quanto eu!
-Então?...
-Então que eu quero viver a minha vida! E é você que não me entende, Ronaldo! Sobre o que nós conversamos tanto, todo esse tempo?
-...
-Nós falamos sobre a minha mudança de perspectiva, de como a nossa relação descortinou um universo novo, cheio de possibilidades para mim. De como eu sempre vivi a vida que se esperava que eu vivesse, que eu aprendi que era a certa - e de como de repente tudo deixou de fazer sentido, como tudo o que eu imaginei que era a vida se modificou inteiramente. E eu percebi que precisava viver essa vida nova! Isso foi o teu presente para mim, meu amor! E eu te sou muito, muitíssimo grata por tudo isso.

Ela se levantou do sofá, sentindo o peso de seu novo mundo em suas costas. Ele tinha transformado tudo - mas não estava disposto a seguir com ela. E ela não podia esperar.

-Eu te amo, acho que vou amá-lo sempre, para sempre. E não preciso que você me ame, ou que esteja ao meu lado, para seguir te amando. Mas tenho um caminho pela frente, uma vida nova para construir - e é uma vida solitária. É só minha. Eu estou te convidando a seguir ao meu lado por mais alguns quilômetros. It's up to you.
-Marion, me escute: eu quero ficar com você. Por que eu preciso colocar isso no jornal assim, de uma hora para a outra? Não dá para as coisas continuarem como estão, por mais algum tempo? As cabeças esfriam, as opiniões se atenuam... Sei lá, as coisas correm mais suaves quando o tempo se coloca entre os acontecimentos. Por favor - seja razoável.
-Ok, Ronaldo. As coisas ficam como estão - a gente está junto, mas ninguém sabe. Logo, não é oficial. Aí eu sigo minha vida, saio com meus amigos, vou ao cinema, ao teatro, sento para tomar um chopp com o pessoal do tribunal depois do expediente. E um dia fico com alguém. Mas eu não estou com ninguém mesmo - pelo menos não oficialmente - e ninguém vai pensar nada de mim. Só você. Só você vai sentir isso como uma traição terrível! E vai dar um escândalo - só por isso, né? E nem é nada - afinal, quem escolheu essa situação foi você. E para que eu vou querer fazer segredo? Por causa da opinião dos outros sobre mim? NUNCA MAIS, Ronaldo! Nunca mais a opinião dos outros vai reger a minha vida. Agora a batuta está nas minhas mãos, e a maestrina sou eu. E eu não preciso que pensem que eu sou perfeita - eu só preciso viver de verdade.
-E o meu amor por você não é verdade só porque eu não quero assumir o nosso caso publicamente, ainda? O meu momento vai chegar, Marion. Tenha paciência.
-Ronaldo, o teu momento não vai chegar - pelo menos não comigo. Se tivesse chegado, essa conversa não estaria acontecendo. Quando a coisa é prá valer, a gente simplesmente sabe.
-Acho que chegamos a uma encruzilhada aqui.
-E eu prefiro ir por um caminho que você não pode seguir, meu amor.

Ele ainda tentou conciliar, tentou tocá-la - mas ela rechaçou o contato. O que ela queria era que ele a tomasse nos braços, perdesse o controle, reagisse emocionalmente ao que sentia por ela. Que cometesse uma loucura. Ela precisava sentir-se importante, desejada, amada. Precisava sentir que nele havia disposição para entregar-se. Ela acreditava no poder do desejo do outro. Aquela conversa tinha sido muito cansativa. Ela sentia-se drenada, esgotada. Derrotada. Sentia que era provável que o próprio Ivan a recebesse de volta, que ignorasse tudo sobre o que conversaram na véspera, apenas algumas horas antes - somente pela força do seu desejo por ela. Mas aquele homem para quem ela era novidade, aquele homem que tinha desejado dormir e acordar ao seu lado quando isso era proibido - aquele homem temia. E não enfrentaria o seu medo, nem por ela, nem em nome de seu próprio desejo. Ele era um covarde - e ela lamentava. No fim das contas, tudo o que ele lhe deixou de presente, a herança daquele amor era um bem precioso, muito maior que o relacionamento em si. E por mais que ela o amasse, por mais que sentisse o impulso de humilhar-se para beijá-lo, nem que fosse só mais uma vez - ela amava mais a si mesma, e tudo o que conquistara naquelas breves semanas era importante demais para negligenciar.

Ele queria fugir, queria ter forças para confrontá-la, para defender-se da sua acusação. Por mais que eles tivessem argumentado, ela só fizera uma acusação: ela o chamara de covarde. Ele quis se defender, quis gritar para o mundo que aquilo era uma mentira - mas ela estava certa, e ele sabia. Era covardia recuar ali, na marca do pênalti, e oferecer a outro jogador a glória de marcar o gol da vitória. Ele estava apavorado, e não tinha forças para assumir aquela mulher incrível, poderosa, forte, aquela mulher que se permitiu dar as costas para toda uma vida e trilhar um caminho diferente. E ele sabia que ela não estava mentindo: ela seguiria sem ele. Ela não tinha deixado a vida que conhecia por ele. Ela estava se lançando no desconhecido, em busca de uma felicidade que só agora ela vislumbrava. Estava encantado: ele tinha descortinado essas possibilidades diante dela, e aquela mulher que já era especial ganhou um brilho, uma cor, uma luminosidade indefinível - e ele a amava ainda mais. Não queria perder sua liberdade - mas lá no fundo sabia que não havia liberdade para ele longe dela. Ela era igual a ele - mas andava na luz. Ele tinha escolhido, há muitos anos, se encolher na sombra. Ele queria tudo o que ela tinha para oferecer - mas não queria pagar o preço. Não daria a ela a única coisa que não podia dar a mais ninguém. E não era a sua liberdade. Era o seu eu - e era dela.

Enquanto ela se afastava em direção a porta do consultório, enquanto eles ainda estivessem ali, sob aquele teto, dentro dos limites daquela sala, ainda havia uma esperança. Ela segurou firmemente a maçaneta. Respirou fundo, tentando controlar o tremor que agora dominava seu corpo. Girar aquela maçaneta era dar adeus definitivamente - ela sabia. Queria muito abraçá-lo, colocar sua cabeça no colo e acolhê-lo - se ela fizesse isso, essa nunca seria uma relação de igualdade, e ele sempre teria tudo do seu jeito. Ela queria caminhar ao seu lado, não na sua sombra. Aquilo não era orgulho. Ela não estava somente defendendo a sua posição. Ela estava resguardando toda e qualquer possibilidade de igualdade no futuro, entre eles. E ela não sabia porque estava ali, parada com a mão na maçaneta, dando a ele mais uma chance. Ela sabia do que precisava. E sabia que ele não estava disposto a dar.

Ele sabia o que ela estava fazendo. Ela estava esperando por um gesto. Aquilo era quase uma humilhação para ela - ela estava certa, ela entendia tudo, ele sabia que ela era a única mulher capaz de abraçá-lo, colocar sua cabeça no colo, afagá-lo, e dizer-lhe que tudo ia ficar bem. E ele acreditaria. Ele só precisava pedir - ela nunca o faria implorar. Ela só precisava que ele descesse do pedestal por ela. Ele sabia que era o único jeito de mantê-la ali, junto de si. Uma parte dele, confinada no fundo da consciência, queria correr para ela, tomá-la nos braços, dizer que a amava e que não se importava com nada - nem mesmo com o medo que estava sentindo - e que seria assombrado por sua ausência, se a deixasse cruzar aquela porta. E seria tudo verdade. Ele sabia que ela sabia.

-Se você quisesse, essa experiência podia mudar toda a sua vida, como mudou a minha. - Ela disse para ele, ainda fitando a porta, temendo por sua força se olhasse para ele.
-Eu sei, Marion. E me sinto pequeno e indigno por não ter coragem de fazê-lo. - Ela podia ouvir o cansaço na voz dele, reverberando nas paredes, tremendo tanto quanto ela. Ele estava admitindo, mas isso não significava que ele fosse dar o passo.
-Não há mérito no amor. Ele é gratuito, e é teu. Você não precisa ser digno. Só precisa se deixar amar.

Deixou rolar uma lágrima - que já estava a muito pendurada em seus olhos. Ele ia deixá-la partir. Girou a maçaneta, e o gesto em si deu-lhe a força que faltava para pôr o pé para fora daquela sala e ganhar sua vida nova.

-Você tem meu novo endereço.
-Tenho; tenho sim.
-Adeus, Ronaldo.
-Até breve, Marion.

(Ela não sabia, mas outro bloco dela, antigo, já estava infiltrado. Ela teria que voltar. Afinal, aquilo era um consultório odontológico...)

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(Agora sim: fim!)


quarta-feira, 16 de junho de 2010

Aconteceu no consultório (parte 5)

Naquela manhã, Marion chegou em casa com um sorriso inexplicável. E não fez questão de explicar a ninguém o motivo de ter chegado tão cedo – literalmente – em casa. Já passava de sete horas quando Ronaldo parou o carro na frente do prédio dela. Despediram-se com um beijo longo, e era claro o desejo de permanência dos dois.

-Fica mais um pouco, Marion... A gente pode ir tomar café num bistrô gostosinho lá perto de casa, e eu te trago depois.

-Ronaldo, eu já te dei todo o tempo que eu podia. Na verdade, eu já extrapolei esse tempo. Eu preciso pôr meus pés na realidade, querido.

-Ah, Marion, por favor...

-Amanhã a gente se vê. Prometo. Mas hoje eu preciso resolver a vida.

Beijaram-se novamente, e despediram-se.

O filho estava amuado, sentado à mesa do café da manhã com a avó. A mãe olhava para ela, escandalizada. “Ok, mãe, bring it! Você tem o poder de me fazer sentir a escória, mesmo quando eu estou no topo do mundo...”

-Bom dia.

-Mãe, você está bem?

-Sim, meu filho, obrigada.

-O que aconteceu, Marion? Você está chegando em casa agora, percebeu?

-Mãe, está tudo bem comigo, obrigada por ter ficado com o Nuno essa noite. A sua disponibilidade foi muito importante para mim essa noite, muito mais do que você imagina. E você, Nuno, é um garoto maravilhoso. Muito obrigada por ter me ouvido e respeitado a minha necessidade de me ausentar essa noite. Mais tarde, se você sentir necessidade, a gente conversa, ok?

-Tudo bem, mãe! Você tem o direito de sair com as suas amigas. - “Tadinho, ele já imaginou o melhor de mim... Ah, meu filho, eu não quero de você me odeie, mas eu preciso ser feliz.”

-Obrigada, meu filho. Eu amo você. De verdade.

-Eu sei, mãe. Eu também.

A mãe dela calou, depois daquilo. Ela sentia o peso das palavras não proferidas por ela, ainda assim. Ela a estava julgando, e não haveria chance de apelação. Ela já a havia condenado... E Marion não podia deixar de sentir-se suja, mesmo tendo vivido uma experiência que ia mudar sua vida. Que já havia mudado tudo dentro dela. E ela sabia que não havia mais volta. Ela estava apaixonada, e mais que isso, completamente desperta.

Era como se sentia: como se houvesse passado os últimos anos de sua vida em estado de latência, dormente, e finalmente estivesse desperta. Ela nunca havia sentido aquilo antes – era como se naquela manhã o Sool houvesse pintado com cores reais um mundo que antes tinha tons pastéis.

Era uma vida apagada. E agora, o Sol invadia cada instância da sua vida. Tudo o que ela prezava estava em jogo. Qualquer movimento seu podia significar um xeque-mate em suas verdades estabelecidas e um pontapé inicial para um novo começo. E Ronaldo não precisava necessariamente fazer parte dela. Ela simplesmente sabia que alguma coisa estava diferente, ela podia sentir em seu corpo. Estava escuro onde ela vivia antes, e seus olhos se fechavam diante do Sol.

O dia passou muito rápido. Deixou Nuno na escola, a mãe em casa:

-Você não vai me explicar nada?

-Não mãe. Eu não te devo mais explicações. Eu sou sua filha, mas sou dona do meu nariz, muito obrigada.

Ela saiu do carro bufando, e Marion seguiu com sua vida. Na defensoria o dia correu, ela tinha duas audiências logo no início da tarde, e tinha mais três ações pendentes. Estava envolvida com seu trabalho, e todos os colegas comentavam que ela estava diferente naquela manhã. Ela sabia o motivo, mas não iria dizer nada. “Eles que se mordam...” Rindo por dentro, nem olhou o visor do celular quando foi atendê-lo.

-Alô?

-Boa tarde, linda. – Era Ronaldo. Um arrepio subiu-lhe pelas costas, e ela sentiu um rubor selvagem subindo por suas faces.

-Olá... Tudo bem?

-Comigo sim. Tudo ótimo. Tudo perfeito... E você?

-Ainda me sinto sugada por um turbilhão... Mas acho que assim é a vida. No big deal. Estou com saudade. – E era verdade. Ela só se deu conta no momento em que disse aquilo. Estava mesmo com saudades dele.

-E eu de você. Marion, que tal sairmos para jantar hoje?

-Ronaldo, não posso pedir a minha mãe que durma na minha casa hoje novamente. Esse nosso jantar vai ter que esperar até amanhã.

-Então vem até ao consultório.

-Hoje?

-Agora, Marion. Eu não agüento ficar nem mais um minuto longe de você.

-Mas e os teus pacientes, Ronaldo?

-A paciente das 14h cancelou. Vem prá cá, amor.

-Tá. Chego aí em vinte minutos.

O coração disparado, Marion balbuciou uma desculpa qualquer ao seu superior direto e saiu para a rua, sinalizou para o primeiro taxi que passou e deu a direção do consultório. Chegou ao endereço, pagou ao taxista e deixou-se ficar ali, parada em frente ao edifício. Pensou por um instante na insanidade que estava cometendo, respirou fundo e entrou no elevador. “Já que vim até aqui, vou até o final. Mas isso não vai continuar assim. Eu preciso resolver isso.”

Tocou a campanhia e esperou. Ronaldo abriu a porta com um sorriso largo, os olhos nos dela – e suas dúvidas se dissiparam completamente. Ela entrou na ante-sala e lançou-se em seus braços. E ele a beijou mais uma vez, e foi como a primeira vez.

-Ronaldo, a gente precisa conversar.

-Ah, Marion... Você veio prá me dizer que o que aconteceu entre nós foi um erro. Eu sabia...

-Não, Ronaldo! Não é isso... Eu só quero conversar com você. Isso tudo é muito novo prá mim. Eu nunca tinha transado com outro homem! Eu só sabia o que era o Ivan, e agora eu me sinto intoxicada com a tua presença, você ocupa um espaço enorme na minha imaginação, e de repente acontece tudo isso... Eu nem sei o que dizer, ou como me senti, porque eu permiti que isso acontecesse – ah, Ronaldo, sei lá o quê, mas a gente precisa falar sobre isso.

-O que você quer que eu diga?

-Eu não quero nada, meu bem. Eu não sei o que eu quero. Eu sei que quero estar com você, que eu não conhecia isso que estamos vivendo, que a minha vida nunca mais vai ser a mesma! E que eu preciso decidir o que fazer.

-Eu entendo isso. Mas daqui de onde eu vejo, as coisas não são assim tão complicadas. Vem aqui, vem. Deixa eu beijar você.

Novamente ele a beijou, e por um momento as questões dela silenciaram, em respeito ao desejo, soberano. Ela sentou-se em seu colo, e ele desabotoou seu vestido com uma das mãos, enquanto tocava sua pele com a outra. Ela sentia sua vontade curvada sob o desejo dele, prisioneira de uma vontade mais forte que a sua, mais poderosa, viril. Sentiu-se desnudar em segundos – “como ele fez isso assim, tão rápido?” – e ficou de frente para ele, montada sobre seu corpo, cavalgando por sobre o tecido duro da calça jeans, beijando seu pescoço, mordendo a nuca dele com força.

-Você está me machucando, meu amor.

-Ai, desculpa...

-Sem problemas, querida. Deixa eu me livrar dessa roupa incomoda. - Sem se levantar, ele abriu o zíper da calça e tirou-a, enquanto ela tirava a camisa dele.

-Agora: onde nós estávamos?

Ela voltou a envolver os quadris dele com suas pernas, dessa vez permitindo o encaixe. Ele fechou os olhos enquanto seu pau deslizava para dentro do sexo dela, e ela prolongou esse movimento para observá-lo. Até aquilo era erótico em si, observar o homem entregue às sensações que seu corpo proporcionava a ele, deixar-se sentir também. Ela ficou ali sentava em cima dele, só olhando, admirada.

-Tudo bem? Cansou?

-Não...

Ele a puxou para perto, seus lábios pousando na curva do pescoço dela levemente, as mãos delas em suas costas tocando suavemente seus ombros, os dois num esforço conjunto de manter-se juntos, colados. Lentamente ela recomeçou os movimentos da cavalgada, e ele quis manter os olhos muito abertos, pousados nela. Não perderia por nada aquele momento, assistir à maneira como ela despertava para o sexo, para o conhecimento do corpo dele era fascinante, era como observar ao rompimento de uma crisálida muito delicada, de onde sai uma borboleta azul.

Eles não quiseram prolongar o momento indefinidamente. Nela havia uma urgência que pedia satisfação, ela não se negaria aquele êxtase, não mais – e encontrou o ritmo perfeito para que ambos gozassem rápido. Aquele sofá do Emerson era mesmo muito lindo... E também se prestava para sexo.

-Ah, meu amor, eu nem consegui me segurar.

-Eu também gozei, Ronaldo. Ainda me surpreende, essa facilidade. Nunca me pareceu tão fácil gozar.

-Não pense que para mim é difícil. Difícil é segurar o gozo quando estou com você...

-Ronaldo, eu preciso ir. Nem sei direito o que disse ao Alvarenga, pelo amor de Deus...

-Mas assim, que nem cachorro magro? Comeu e vai embora?

-Deixa disso, vai. A gente se vê amanhã.

-Dorme comigo amanhã.

-Não posso prometer nada.

-Eu preciso acordar do teu lado.

-Eu preciso ir.

Beijaram-se e ele a acompanhou até a porta. Talvez ele estivesse pegando pesado, mas era verdade. Ele queria mesmo saber como seria dormir ao lado dela. E, só prá variar, acordar do lado dela. Ele nunca tinha se apaixonado daquela maneira – nem pela primeira mulher, nem pela segunda – e achara até ali que a boa vida de cachorro vadio era ideal para ele. E agora se pegava fantasiando dormir e acordar ao lado de uma mulher novamente. E nem sentia que ela era do outro. Dentro do seu coração, Ronaldo sentia que ela era sua mulher. Ele tinha esperado por aquilo toda uma vida.

E sentiu medo.

Marion voltou para o escritório, e de lá correu para casa, só para encontrar um bilhete do filho. “Mãe: papai ligou, pediu que você retornasse – acho que a vovó falou com ele de ontem... Sei lá! Ah, e eu vou prá casa do Renan para o ensaio da banda – acho que vou dormir lá. Me liga, pô! Você esquece de carregar esse celular, né... Bj, mãe. Amo você.”

Ela sentou-se no sofá e chorou. Copiosamente. Estava dando adeus àquela estabilidade. “Provavelmente o Nuno nem vai querer ir morar comigo – e o Ivan com toda a certeza nunca mais olha na minha cara! Nem no dia da formatura do nosso filho! Nem no caixão ele olha prá mim... Que merda, Marion... Que merda.” Deixou-se aquietar pelas lágrimas, respirou fundo e ligou para o marido. Ele disse rapidamente que estava no meio de uma reunião, que na Costa Oeste esses meetings tardios eram coisa comum, e que ele provavelmente ainda ficaria fora por pelo menos mais duas semanas, perguntou como estavam as coisas – era uma conversa bem corriqueira, de fato. Ela manteve a conversa assim mesmo. Não iria complicar as coisas à distância.

Ligou para Nuno em seguida. Conversou com o filho como quem conversa com alguém a quem ama e não vê há tempos. Ele percebeu que a mãe estava estranha. Ela achou estranho que o marido não tivesse percebido nada. “Talvez não tenha querido dizer nada, isso sim.” O filho tinha resolvido dormir na casa do amigo. Depois de falar com Tânia, a mãe de Renan, e certificar-se de que não seria inconveniente – e de recomendar um milhão de vezes que o filho fosse um bom hóspede, despediu-se longamente. O rapaz achou aquilo o fim:

-Ô, mãe! Cadê a objetividade? Amanhã a gente se vê!

-Tá bem, apressadinho, boa noite!

Desligaram. E ela chorou mais um pouco.

-Alô?

-Oi...

-Marion!

-Você ainda quer que eu vá até aí, dormir com você?

-Ah, é tudo o que eu quero...

-Chego aí em quinze minutos.

-Eu vou buscá-la!

-Não precisa. A gente perde mais tempo do que se eu pegar um taxi, ok?

-Estou te esperando, meu amor.

-J’arrive, mon chère.

E então eles passaram a noite nos braços um do outro. E não só naquela noite, como em algumas outras noites naquele período em que Ivan estava fora. Num fim de semana em que o filho viajou com os amigos, e durante a semana, nos dias em que ele dormia na casa da avó, e em todos os momentos que podiam ficar juntos – dormiam e acordavam juntos.

Por mais duas semanas esse idílio continuou, e Marion estava decidida. E Ronaldo sabia disso. Eles conversaram longamente sobre tudo o que ela precisava fazer, algumas vezes discordando, outras entrando em acordo. O importante era a decisão. E os preparatórios.

Finalmente, o dia do retorno de Ivan chegara. Marion teria uma longa semana pela frente – mas estava tudo encaminhado. Ela já tinha encontrado um apartamento para si, e já havia tido a conversa mais difícil de sua vida com Nuno. Ambos feridos, ambos assustados. E os dois chocados com a resolução dela.

-Porra, mãe! Você não pode simplesmente ter um amante, como todo mundo por aí? E eu, mãe? Eu tô apavorado, mãe!

-Meu filho... Eu também. E estou cansada de tanto chorar, e de tanto me culpar, e de tanto me sentir um lixo. Eu não posso fazer isso. Não com você, nem com seu pai, e muito menos comigo.

Ela resolveu dar ao marido um tempo para se ambientar. E pediu que Ronaldo tivesse paciência por uns dois dias. Ele dizia que o marido ia querer transar com ela, e que isso estava acabando com ele. E ela dizia que essa era a última coisa com que ele deveria se preocupar.

A dor que sentiu por partir o coração daquele homem matou uma parte de si. Ela sentiu-se morrer, e sabia que estava matando uma parte dele também. Choraram tanto, e sofreram juntos por todos aqueles anos deixados para trás. Mas ele ainda olhava em seus olhos quando finalmente a conversa perdeu o sentido.

-Eu sempre vou amar você, Ivan.

-Para sempre e mais um dia, Marion.

Ficaram abraçados muito tempo, e ela tirou do peito aquele peso absurdo que a acompanhara todo aquele tempo. Era a hora da mudança, do desapego, do desconforto. Era chegada a hora de se lançar...


(to be ended)

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Aconteceu no consultório (parte 4)

Três semanas se passaram desde o fim do tratamento endodôntico, e Marion já havia estado no consultório mais duas vezes - e vinha sendo atendida por Emerson, não por Ronaldo. Era ele que cuidava das restaurações, e era mesmo muito bom naquilo. Tanto que na primeira consulta ele moldou um bloco provisório que ficou idêntico ao seu dente, antes da cárie. O processo de moldagem era cansativo, mas ela não precisava de anestesia, e isso a forçava a concentrar-se num ponto no teto e fixar seu olhar. Normalmente ela nem fazia isso, ficava confortável ali, com seu amigo de escola trabalhando na sua boca. Mas agora ela sentia como se ele estivesse tentando inquirir alguma coisa... Ou talvez fosse coisa da sua cabeça. Fosse como fosse ela não conseguira encarar o Emerson desde que entrara na sala naquela tarde, e ele já estava cismado com aquilo, ela podia perceber. Ao final da moldagem, Emerson perguntou, sem muitos rodeios:

-Tem alguma coisa te incomodando, Marion?
-Incomodando? Não, por quê?
-Ah, minha amiga, eu te conheço há o que, uns vinte anos? Desembucha, vai. Você está esquisita desde que entrou por aquela porta...
-Eu não sei do que você está falando, Emerson. Eu só estou um pouco distraída hoje, muita coisa na cabeça, sabe como é...
-Ah tá... Me engana que eu gosto! Só lembra que sou eu aqui, ó, seu amigo, que está perguntando. Você pode desabafar, se precisar.
-Obrigada, querido, mas não é nada de mais, mesmo.

Como é que ela diria a ele que desde o tratamento endodôntico ela só pensava nas 1001 posições diferentes que a cadeira de atendimento possibilitava, e em como ela poderia tê-las aproveitado com o delicioso doutor Ronaldo... Na verdade, cada centímetro daquele consultório parecia contaminado pela figura dele, e ela nem conseguia olhar para o amigo sem querer perguntar pelo homem, saber mais sobre ele, se havia perguntado a seu respeito... Parecendo ler seus pensamentos, Emerson disparou, à queima-roupa:

-O Ronaldo perguntou por você.
-É? - Ela ficou sobressaltada. "Merda, olha só a pinta que eu dei agora... o Emerson não vai me dar sossego enquanto não me arrancar alguma coisa. Ele é um cretino! Que ódio!"
-Ih, Marion, para quê esse espanto? Ele só queria saber se estava tudo bem, se você estava passando bem, sabe, sem dor... Essas coisas. O que te passou pela cabeça, hein, sua diabinha?
-Nada, né, Emerson, isso aí mesmo! O que o dentista ia querer saber de mim, afinal?
-Depende do dentista... Se fosse eu, ia querer saber o que você tem hoje, que está toda estranha. Mas isso sou eu, que te conheço. E eu te conheço, Marion. Você está esquisita...
-Ah, Emerson, tá bom, eu tô esquisita e você vai ficar querendo saber por quê. E é só!
-Nossa, que violência... Tá bem, nem está mais aqui quem perguntou...
-Ah, desculpe, meu amigo... - e resolveu inventar uma desculpa convincente - é que quando o Ivan viaja assim, por muito tempo, eu fico meio nervosa, sei lá.
-Tá bom, Marion, está desculpada...

Ela podia perceber que a sua história não tinha convencido o amigo, mas foi o que de melhor ela pode inventar assim, na marca do pênalti... O marido sempre viajava por semanas, meses até, e ela ficava numa boa. E ele só estava fora há três dias. Ela sabia que Emerson iria voltar a tocar no assunto, e sabia que a bandeira que ela dera antes, sobressaltada pela menção do nome do Ronaldo, seria o assunto que ele puxaria. Quando se sentaram na ante sala, ela e Renata, para agendar a próxima consulta, ele soltou:

-Pode ser que eu peça ao Ronaldo para colocar o teu bloco... Tudo bem prá você?
-Não, né, Emerson? Você mesmo disse que essa é a sua especialidade, que você não faz canal e o Ronaldo não faz restauração, não é mesmo? Então...
-Boa menina! Já está no controle novamente... - "Filho da mãe, como ele me conhece! Já sacou tudo, mas agora vai me deixar em paz, pelo jeito." -Então vamos marcar para daqui a três semanas, porque eu vou a um congresso na semana que vem e vou dar uma esticada... Sabe como é, eu nunca fui ao Texas, e já faz uns dois anos que eu não tiro férias...
-Do as you please, darling.
-Ai, eu odeio quando você começa com essa frescura...
-Sorry! Desculpe...

Despediram-se dando risada. "Ficou tudo bem, no final" ela pensou, já no elevador. Seria muito constrangedor se ele ficasse insistindo no assunto do Ronaldo. Ela temia trair-se. E não era mulher de se dar a esses desfrutes... Não que se incomodasse com isso. Suas amigas sempre estavam envolvidas com algum prestador de serviço - parecia a doença da classe média, sabe-se lá: mulheres desejosas de aventuras para aplacar o tédio de suas vidas, depois dos filhos crescidos... E era por isso que ela trabalhava - não porque precisasse. O marido era um alto executivo da indústria do tabaco, e isso garantia uma vida confortável. Ela trabalhava para ocupar a cabeça, para preencher a vida com algo de seu interesse genuíno. Ela gostava mesmo de atender à comunidade carente. E isso a fazia sentir feliz consigo mesma. E ela achava que era por isso que nunca tinha se entregado ao mecânico da máquina de lavar, ou ao jardineiro do condomínio...

Mas aquele dentista... Ah, como ela queria aquele homem! Nunca tinha sentido tanta atração por outro homem. Para ser franca, ela nem gostava tanto assim de transar, achava uma coisa mecânica, sem graça e calorenta! E mesmo assim, mesmo com tudo contra, ela se pegava pensando nas mãos dele deslizando por suas costas, numa das poucas vezes que a tocou de forma casual... "Que absurdo! Componha-se, Marion... Isso não se faz! Você tem o quê, 16, 17 anos? Você é uma mulher de 43 anos, se liga!" Ela sentia-se enlouquecer quando pensava nele, e mais de uma vez já se permitira imaginar as situações mais eróticas com aquele homem enquanto transava com o marido. E ele andava todo contente, já que ela vinha se mostrando mais interessada em sexo ultimamente... "Coitado do Ivan... Eu pensando no Ronaldo e ele realizado... Pensando bem, ele está feliz, né? Que importa o motivo do meu desejo? Deixa ele curtir do jeito dele, que eu me viro aqui como posso! E chega!"

Mas mesmo na vidinha simples e comum de Marion, tão distante do folhetim das 21h, pode acontecer algo imprevisível - e aquela terça-feira, que começara como outra qualquer, tinha um desfecho inesperado pela frente.

Era a semana do tal congresso do Emerson, e ainda faltava dez dias até a próxima consulta - a da colocação da prótese permanente - e ela estava conversando com os colegas na sala de reuniões ao final da manhã, tomando café e comendo biscoitos... E sentiu o provisório se soltar. Assustada, quase engoliu o bloco junto com o café, mas conseguiu tirá-lo da boca. Sem saber o que fazer, resolveu ligar para o consultório:

-Renata?
-Sim.
-Aqui é Marion, tudo bem?
-Tudo, e a senhora? Algum problema?
-É, querida... O provisório descolou, e eu não sei o que fazer.
-Ah, a senhora precisa vir até aqui, para recolocá-lo.
-Mas tem problema eu ficar sem ele? É que eu não estou sentido nada, sério...
-Mas é que o dente pode desgastar sem ele, e aí a prótese definitiva não vai encaixar, e é dinheiro e tempo jogados fora, dona Marion.
-Mas o Emerson não está viajando?
-Ah, mas se for só isso o dr. Ronaldo pode fazer... - o coração de Marion quase pulou fora do peito!
-O dr. Ronaldo? Mas eu achei que ele não fazia restaurações...
-E não faz, mas isso é uma bobagem, até eu poderia fazer...
-Então! Eu posso dar um pulinho aí agora, na hora do almoço, e você faz isso prá mim?
-Só que hoje eu tenho prova no curso, e o dr. Ronaldo me deu a tarde de folga. Ele vai estar aqui a partir das 14h, dona Marion. Eu aviso a ele, e ele encaixa a senhora entre uma consulta e outra, ok? - Sem argumentos, ela teve que concordar, muito a contragosto.
-Então está certo: passo aí quando sair da escola, lá pelas 17h, ok?
-Está bem, dona Marion. Mas não se atrase, por favor. 17h é o último horário do dr. Ronaldo.
-Combinado. Até mais, e boa sorte na sua prova.

Acelerada, Marion mal conseguiu se concentrar na aula, e até os alunos mais desatentos perceberam que a professora estava meio aérea naquela tarde. Logo ela, sempre tão ligada...

Quando chegou ao consultório, Ronaldo sentou-se à mesa da secretária, para verificar sua agenda, e ficou sem ação por alguns segundos, sem entender direito, sem conseguir processar a informação anotada em vermelho, no final dos agendamentos da tarde: Marion - adesão do provisório - urgência. "Merda! Será que agora o Emerson está colando provisório com saliva? Como é que isso foi soltar assim, de repente?" No fundo isso acontecia com uma certa freqüência. O que o perturbou tanto foi esse encontro inesperado com ela. Aquela mulher que vinha assombrando os seus pensamentos há uns dois meses, desde que pusera os olhos nela. "Porque isso tinha que acontecer justamente hoje, quando o Emerson está fora do país?" Ficou ali, sentado, olhando para a página da agenda, até que o som da campainha o trouxe de volta à realidade. Ele ainda tinha três pacientes até a hora de recebê-la. Precisava se concentrar.

De repente já eram 16:30h, e a última paciente estava deixando o consultório, no que lhe parecera a tarde mais curta da sua vida. Ele não estava preparado para reencontrá-la. Não sabia o que fazer, mas sentia que não devia ficar ali, que aquele encontro talvez fosse um pouco demais para seu coração. Então resolveu fugir. "Dona Andréa, espere só um momento, que eu a acompanho..." Pegou sua jaqueta de couro e jogou de qualquer jeito sobre o corpo, e já ia saindo com a paciente quando Marion saiu do elevador.

-Está adiantada - ele disse, lacônico, como para se explicar por estar de saída.
-Eu posso esperar, não tenho pressa - ela respondeu, meio engasgada. Tinha certeza de que ele estava fugindo, que não queria atendê-la. "Poderia ter me avisado, pelo menos..."
-Não, tudo bem. Não tenho nada de especial para fazer na rua. Ia só espairecer...

De volta ao consultório, ele lhe pediu um tempo para preparar a sala. Ela só deu de ombros, tentando parecer indiferente, quando na verdade estava totalmente hipnotizada por ele, lindo naquela jaqueta surrada, a calça jeans apertada marcando suas coxas, o cabelo desalinhado e a expressão de desalento. Tentou puxar conversa, para minimizar o mal estar entre eles.

-Desculpe, Ronaldo. Eu não quero ser inconveniente... É que a Renata falou que se eu não viesse recolocar o provisório isso poderia inutilizar o molde... Nem entendi direito. Espero não estar te atrapalhando...
-Você nunca atrapalha, Marion. Eu só queria respirar lá fora um pouco, sei lá... Hoje o consultório está me oprimindo um pouco, só isso.
-Quer sair agora? Eu posso esperar, é sério...
-Não. Vamos acabar logo com isso, querida. Eu não suporto ficar tão perto de você por muito tempo.

Aquele comentário dele a emudeceu. Não havia o que dizer, e ela concordou com um meneio da cabeça. Dirigiu-se à cadeira, e sentou-se, obediente.

-É a primeira vez que você não vai precisar me anestesiar...
-Você pode abrir a boca, por favor?

Ele estava sendo duro, até meio grosseiro, porque estava apavorado com a situação. Ela mantinha os olhos abertos, fixos nos dele, enquanto ele se debruçava sobre ela, a boca aberta, o serviço simples parecendo uma cirurgia complexa de extração de siso. Era irresistível, e ele sentia-se preso ao dever, quando queria apenas fugir dali, bem rápido, antes que cometesse uma loucura.

Ela, por sua vez, não conseguia manter a pose. Por mais que tentasse, vê-lo ali, debruçado sobre ela, era desejar puxá-lo para junto de seu corpo e forçá-lo a tocá-la - da maneira menos profissional possível. Ela estava trêmula e acuada, sentia-se vítima do acaso, e queria voltar no tempo e dar um jeito de morder o maldito biscoito com outro dente! Se o bloco não tivesse se soltado, se ela não estivesse ali, boquiaberta diante dele...

-Pronto, Marion. Terminado. - Ele falava de costas para ela, tentado controlar a voz, tentando parecer calmo. Ele sentia-se dependurado por um fio de sanidade muito fino, muito frágil. Ele sabia que não poderia olhar em seus olhos...
-Você me passa o espelho, Ronaldo? Eu queria ver...
-Não confia em mim?
-Não é isso. Eu não confio é em mim...

E então ele olhou para ela, e ela estava olhando diretamente para ele. Seus olhos se encontraram, e nenhum dos dois sabia o que dizer. Cederam. Simplesmente entregaram-se a vontade que os consumia há semanas, e beijaram-se longamente. Ele finalmente descobria o gosto daquela boca que conhecia clinicamente, ela finalmente descobria como era delicioso ser beijada por alguém a quem se deseja de verdade. Ela o desejava com tudo o que era, completamente. Ele a desejava desesperadamente, e não contava com garantias ou reservas. Suas mãos exploravam o corpo dela, e ela não esboçava a menor resistência. Ele sabia que ela estava dividida, talvez até sofrendo, porque aquilo não combinava com ela. Ele sabia disso porque podia sentir o sabor salgado de suas lágrimas, enquanto elas se misturavam à saliva naquele longo beijo apaixonado. Como devia estar sendo difícil para ela, permitir que outro homem a tocasse, ceder a um desejo tão soberano, tão imperioso como aquele. Ele a amava ainda mais por isso, por saber o quanto ela estava entregando de si naquele momento, mais que o próprio corpo, mais que seu senso de pudor e dever - era ela própria que se fazia presente, inteira.

Ela queria correr, queria fugir - mas queria ficar, acima de todas as coisas. Consumar aquele desejo era muito melhor que imaginar aquilo, e ela sabia perfeitamente o que era imaginar tudo aquilo. Aquela cadeira era mesmo capaz de se articular em 1001 posições?

-Ronaldo...
-Diga, querida.
-Eu preciso respirar.

Entreolharam-se novamente, agora mais calmos, a ansiedade dando lugar a alegria que só a reciprocidade amorosa pode proporcionar. Agora não havia mais dúvidas, só a certeza do desejo de um pelo outro. Ainda assim, havia algo de errado naquilo tudo - e para ela era isso que tornava todo o resto tão excitante! Ela estava dividida entre a vontade de entregar-se a ele e as responsabilidades de sua vida pessoal. Mas no momento em que olhou nos olhos dele mais uma vez, sentiu que suas dúvidas se dissolviam completamente, como açúcar na água. Ela sorriu para ele. Ele lhe devolveu o sorriso - e aquilo lhe deu coragem:

-Eu quero ser sua, completamente sua. Sem reservas, sem medo - e sem promessas. Eu quero transar com você, e não quero me sentir culpada por isso, ou fazê-lo sentir-se mal, ou preocupado, ou sei lá o quê! Você entende isso?
-Meu bem, eu não penso em outra coisa, desde que te vi pela primeira vez, nessa sala. Eu quero tocar a sua pele, sentir o seu cheiro e amar você. E eu entendo que seja difícil para você. A gente pode deixar para outra vez, se você preferir...
-Não, Ronaldo. O meu corpo está gritando o seu nome há meses. Ele exige satisfação!
-E eu estou aqui para isso, meu anjo.
-Então... Me mostra o que essa cadeira pode fazer? - Ele riu alto.
-Que imaginação fértil... Está certo, deixa eu te mostrar umas coisinhas que eu consigo imaginar...

Ele reclinou a cadeira completamente - e isso a deixou deitada - e então elevou seu corpo até a altura de sua cabeça, sentado. Deslizou a banqueta de rodízios até seus pés. Descalçou suas sandálias e lambeu seus dedos, um a um. Ela fechou os olhos de prazer, suspirando. Ele sentia uma urgência que não experimentava há muitos anos, e prosseguiu subindo por suas pernas, beijando e lambendo cada milímetro de pele branca e suave. Ela estava extasiada, nunca havia tido uma experiência daquelas na vida - ela nunca tinha transado com outro homem, só com o Ivan - e estava sendo melhor que o seu sonho mais insano! A língua dele, molhada e tesa, explorando a pele sensível da parte posterior dos joelhos, suas mãos acompanhando a boca agora...

Ele afastou suas pernas com um toque leve, quase que apenas uma sugestão - mas ela estava tão excitada que deixou-se levar pelos mínimos comandos da vontade dele. Ele tocou de leve a superfície da calcinha, e ela sabia que ele podia sentir a umidade da lubrificação abundante, mesmo naquele contato indireto. Ela mal podia se controlar - mas ele interrompeu-se e deslizou com a banqueta para junto de seu rosto, beijando seus lábios e enfiando sua língua na boca dela. Ela podia gritar, mas controlou-se no último instante. Segurou-lhe os cabelos e puxou sua cabeça para longe. Olhou em seus olhos, que brilhavam de desejo. Ela imaginava se seus olhos também tinham aquela luminosidade febril que via nos dele. E sorriu - e depois gargalhou. Ele implorou que ela deixasse que continuasse a exploração - e ela atendeu prontamente, revelando a pele do colo e os seios volumosos sob a blusa fina de seda. Faminto, ele debruçou-se sobre seu colo, lambendo a pele com a língua inteira, tocando os seios com as pontas dos dedos, inspirando, com o rosto enfiado entre os seios, o perfume dela, como se fosse o único cheiro que valia a pena sentir por toda na sua vida.

Aquele ato desencadeou sua luxúria! Ele sentiu um frenesi quase ritual, e suas mãos procuraram despi-la totalmente. Ela o ajudou solícita, ao mesmo tempo que arrancou-lhe a camiseta de algodão. Ele afastou-se dela por um instante, abriu a calça e deixou que caísse, tirou a cueca e ficou ali, estático, contemplando e sendo contemplado.

-Nossa, Marion... Você é ainda mais linda nua do que é vestida!

E então ela sentou-se na cadeira e estendeu os braços para ele, sorrindo - e era como um pequeno Sol brilhando ali, dentro do consultório, era como a primavera, era a coisa mais linda que ele já havia visto! Ele tomou-a em seus braços, e afastou suas pernas para tocar seu sexo. Ela gemia alto enquanto ele deslizava os dedos dentro dela, sentindo o calor intenso que emanava dela. Continuou ali algum tempo, ouvindo seus gemidos de prazer se intensificarem rapidamente, e então não pode mais resistir, e penetrou-a. Ela gritou baixinho, um misto de espanto e gozo, e ele percebeu que ela nunca tinha gozado assim, na hora da primeira penetração. Ela ria alto, feliz como uma adolescente - e aquilo era mais bonito que qualquer experiência que ele jamais tivera. Estava sendo intenso, e ele não se conteve, e deixou que o gozo viesse espontâneo. De alguma maneira ele sabia que não teria problemas para conseguir outra ereção. Ele nem sabia se perderia aquela, para ser honesto. Ela o deixara tão excitado que ele ainda estava ereto, mesmo depois do gozo. E deixaram-se ficar ali, naquele abraço extasiado, quente e suado.

-Parece que você já está pronto prá outra...
-É... Isso não é coisa comum, mas pode acontecer, numa situação assim, tão extraordinária...
-Me come de novo?
-Você nunca vai precisar me pedir duas vezes, meu amor - mas eu vou fazer você implorar por mais...

Eles olharam para o relógio. Eram 20h. Ela ficou preocupada, mas não se afastou dele. Pelo contrário, manteve seu corpo bem colado ao dele por mais alguns instantes.

-Você precisa ir, não é?
-Eu devia, mas não quero. Deixa eu ligar prá casa, e já resolvo isso.

Ela foi até a sua bolsa, pegou o celular e falou com o filho. Deu algumas instruções e disse que ainda iria demorar. Depois, ligou para a mãe, que morava perto, e pediu-lhe que dormisse lá aquela noite. Só pode ouvi-la dizendo que não sabia que horas chegaria. E não deu satisfações. "Quando eu crescer, quero ser como ela..." ele pensou, ouvindo aquela mulher resolvendo tudo à distância, sem se abalar nem comprometer a noite dos dois. Ela voltou ao consultório, sorrindo. E ele perguntou:

-Então, você quer continuar explorando as possibilidades da cadeira de atendimento odontológico? - Rindo muito, ela retrucou:
-Você ainda tem fôlego?
-Com certeza! E tenho a noite inteira... - Ela só olhou para ele. E sentou-se na cadeira...

(to be continued)

As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...