domingo, 23 de setembro de 2012

DeLorean

Durante muito tempo me pegava imaginando o que ele estaria fazendo naquele minuto. Antes de pegar no sono, sussurrava baixinho o seu nome, dando boa noite para a escuridão. A sensação de apego foi diminuindo com os dias, meses, anos que se passaram sem notícias, e logo a ideia dele abandonou a minha cabeça, como se a vida sempre tivesse sido assim.

Então aconteceu aquela quarta-feira. Não era um dia especial nem nada, eu fui ao shopping comprar um presente para um amigo do meu filho que faria aniversário em uma semana e pensei em aproveitar a tarde livre para escapulir e pegar um cineminha. Eu gostava tanto de fazer isso quando era uma garota...

Daí eu o vi. Através de uma fresta entre as estantes da loja de brinquedos, lá estava ele. Com o canto do olho eu registrei a imagem de um homem grisalho, alto, e aí ele sorriu, e eu soube antes mesmo de olhar que era ele. Não consegui ir até ele e cumprimentá-lo naturalmente, como se faz quando se encontra um conhecido num lugar público. Simplesmente me virei e saí da loja.

Sabe o que me doeu? Ele ainda é lindo. Não que o tempo tenha parado para ele. Mas aquele sorriso, o brilho em seus olhos, o tom caloroso na sua voz exalando jovialidade...Tudo nele era como antes, e aquilo estava me matando. Não sei se ele me viu enquanto saía de fininho, ou se em outro momento, vagando pelo shopping atrás do presente do tal menino. Resolvi comprar um livro e fugi do shopping rapidinho. O tempo passou arrastado até a hora em que meu filho chegou da escola, e a algazarra que ele trouxe para casa me ocupou plenamente. Mas no instante em que eu pus a cabeça no travesseiro, horas depois, fechei os olhos e chamei seu nome baixinho, sussurrando  para a escuridão.

No dia seguinte, quando cheguei ao trabalho, encontrei sobre a minha mesa um arranjo de flores do campo, e nele um bilhetinho que dizia somente: "O tempo não passou para você". (Será que ele também chama meu nome antes de dormir?)




terça-feira, 14 de agosto de 2012

Incompatibilidade de casas

A questão sempre foi essa, e foi o que me escapou até agora.

Sabe o que é, gatinho? Eu sou Grifinória desde pequenininha, você é Sonserina até o fim.


domingo, 12 de agosto de 2012

Grilo falante


Bem lá no fundo, no fundo da mente, lá está você. Pequena e doce lembrança, roçando a tampa pesada do sumidouro da memória. Eu fujo o quanto posso, e tenho os melhores motivos: autopreservação, amor próprio, auto estima. Todos os melhores e mais elevados propósitos: a felicidade de todos e o bem geral da nação. E ainda assim, mesmo com tudo contra, lá está você, meu antagonista, minha incógnita. Nem amigo, nem inimigo de estimação.

Você, que foi meu amor e meu amante, meu algoz e meu deus pessoal. Você, com quem tive conversas tão estimulantes, com quem troquei carícias tão intensas, com quem conheci a face escura de mim. Houve a época em que deixava a porta aberta para que você chegasse quanto te aprouvesse, panelas cheias e alimento para a alma. Fui tão sua, ainda ontem, que nem percebi quando abriu a porta definitivamente. Foi embora no meio da madrugada e levou consigo meus sonhos como espólio. O que deixou foi um desassossego, uma incerteza, uma vontade de não sei bem quê.

Agora é essa falta, essa ausência que insiste em se anunciar. Grilo falante, minha consciência amoral, sentada no fundo da cuca, pedindo espaço para se aboletar.


sexta-feira, 20 de julho de 2012

Dejà vu

Ele procura um rosto. Diariamente, automaticamente, ele busca. Tornou-se um ato reflexo: entra num ônibus olhando a todos, dentro da cara, procurando. Por vezes é até questionado pelas pessoas, e não foram poucas as vezes em que foi convidado a retirar-se de lugares públicos, como exposições e bibliotecas - tudo por causa dessa mania.

Tudo começou a quatro anos, quando foi trabalhar na redação do folhetim sensacionalista da cidade onde vivia desde a época do curso de jornalismo. A correria diária, o cuidado necessário ao equipamento de trabalho - era fotojornalista - as repetidas noites insones por conta de algum crime ou acidente que precisava constar na pauta de amanhã - ele ficava confinado no quarto escuro, e lá passava dias, semanas, já havia passado uma quinzena sem dar as caras na pensão da Valenciana - e a velha senhora acabava batendo à porta da redação - o que, por sua vez, arrancava gargalhadas dos colegas e o tornava alvo fácil das brincadeiras da equipe do Vidal - que era seu repórter-chefe. Era um tal de "olha que assim a velha não consegue dormir!" e "vai acabar te trocando... Mulher não tá fácil não, Reginaldo, pega leve com a velha, vai lá, dá uma fungada no cangote dela..." Hahaha... Eles nunca desistiam, mas ele nem se importava. No fundo, aquela lenga ajudava, parecia fazer o tempo passar mais depressa, e nun piscar de olhos, completava seu primeiro ano de formado e empregado do jornal.

Um dia como outro, o telefone toca mais uma vez antes do despertador - bem antes, já estava tornando-se algo habitual - e a voz arrastada do Vidal dita um endereço:

- Rua das Flores, 35. Conhece?
- Não. Devia?
- É o puteiro, Reginaldo. Claro que devia. Tu é viado?
- Porra, Vidal, num fode, cara! Vê se eu sou homem de freqüentar puteiro?!
- Ah, é. Me desculpa, sua excelência... A velha Valenciana te esquentou a costelinha essa noite, filhão? Pára de resmungar e toca prá lá. A coisa foi feia, Naldo. Te arranca!
- Tô indo...

Na hora em que desligava a merda do telefone, logo lhe ocorriam duas ou três respostas malcriadas e perfeitas para o infeliz - geralmente algo que pusesse a mãe do Vidal no meio - mas ele sempre achava melhor que não lhe tivessem ocorrido na hora. Do jeito que o chefe era, na certa iria gozá-lo ainda mais, ao invés de se ofender. Além disso, daquela vez havia alguma coisa no tom de voz do Vidal que inspirava apreensão - no mínimo. O que poderia ser? "Mataram alguma puta, isso é certo!" e, pensando nisso - para espantar dali o tal nó na garganta - tocou para a Rua das Flores...

Chegou de cara para o crime - e era mesmo assassinato. Já vinha no táxi montando a câmera, tinha o hábito de descer da condução já clicando, dizia querer um número bem grande de opções - acalentava no íntimo o desejo de montar um livro que documentasse sua trajetória, embora soubesse que se continuasse muito tempo naquele tablóide poderia dar adeus às suas aspirações superiores - e o redator-chefe era um sanguinário filho da puta que adorava primeira página à cabidela, pingando sangue vivo - que coagulado nem vende tanto jornal assim.

Só quando a objetiva pousou sobre o defunto ele entendeu o tom de voz do Vidal ao telefone, vinte minutos antes: o morto era seu Arlindo do cafezinho, o ambulante mais antigo e querido da cidade. Não havia em Taquarais quem não conhecesse o Arlindo. Aquilo embrulhou seu estômago de tal maneira que ele precisou de muita coragem para não vomitar ali, na cena do crime. Correu para a sarjeta e verteu fora a ceia que dona Valenciana tinha lhe preparado na véspera. E dali foi ao encontro do Vidal. Sem ter na câmera uma foto para contar a história - ainda.

- Porra, Naldo, logo você, que não perde um clique! Volta lá e bate a foto, depois a gente conversa...

Ele voltou, as lágrimas ali, rolando e embaçando o visor, e ele tentando ser profissional. Lembrou da primeira vez que viu o seu Arlindo. Ele estava com o carrinho de café na rodoviária naquele dia, quando ele chegou a Taquarais. E lhe deu uma bala junto com o café. "É de brinde, para te adoçar a boca! Seja bem-vindo, meu filho! Essa cidade tem visgo - tome cuidado, hein? Não vá se agarrar aqui..." Sempre sorridente, sempre com uma piada na ponta da língua - e um gracejo para cada menina que chegava para estudar na Estadual... Naquele momento, ele pensou que já fazia algum tempo o sorriso deixara os lábios do Arlindo. E agora era definitivo. Ficou terrivelmente triste, e curioso. E voltou para junto do Vidal, dessa vez com a câmera cheia de fotos batidas de vários ângulos, e a cara de interrogação.

- Tá na cara, né, Naldo! Isso tem a ver com a filha do Lindo, meu filho... Tô vendo pela tua cara que você nem sabe do que eu tô falando, né não, excelência? Ô Naldo, a filha do Lindo virou puta... Era por isso que o pobre diabo andava todo cabisbaixo, não reparou não?
- É, eu reparei sim... - e como ele não fosse um cara passivo ou lacônico, Vidal percebeu que estava abalado, e até mudou o tom da conversa.
- Ele vinha a algum tempo assuntando o paradeiro da caçula pela cidade, mas ninguém ia contar uma coisa dessas ao homem, né? Todo mundo adorava ele, meu filho! Só que pelo jeito ele acabou pegando a safadinha no ato... E sabe lá com quem ela estava deitando... O resultado taí, agora é melhor a polícia investigar direitinho, que nessa cidade esse assassinato não vai ficar impune, ah, isso não vai mesmo! - e então, como um raio, a pergunta ocorreu a ele. Talvez por ter percebido que não tinha nenhum outro fotógrafo ali ainda, só ele e o Francês, da polícia:
- Como foi que tu chegou aqui tão rápido, Vidal? Não tem mais ninguém, só a gente...
- Aí é que está, meu filho. Eu tava comendo a cafetina...

Voltou para casa antes de ir para a redação. Nunca tinha feito isso antes. Os rapazes diziam - e ele se orgulhava - que ele tinha estômago forte, que nunca nunquinha se abalava com nada do que via. E já tinha visto coisas do arco da velha: gente enganchada que nem cachorro no cio, gente morta em acidentes terríveis, sangue por todo lado - "nada abala o Naldo", eles diziam. "Isso nasceu para tirar foto de desgraça!" Mas aquele crime tinha conteúdo emocional, o defunto não era qualquer um que ele nunca tinha visto. Era o Arlindo. E tinha sido coisa limpa, o assassino deu dois tiros: o primeiro, no quarto, pegou só de raspão. O segundo, já na soleira na porta da rua. E Arlindo caíra ali, na porta de um estabelecimento de má fama - logo ele, um homem de excelente reputação.

Mais tarde, já refeito do susto, porém não da tristeza, pôs-se a revelar as fotos. Tentou fazê-lo com grande distanciamento, tarefa dificílima, e percebeu que valorizava mais aquele homem do jamais imaginara. Para manter o profissionalismo fez tudo mecanicamente, a cabeça vazia. Na mesa do Vidal, antes da reunião com o redator-chefe, espalhou as fotos com displiscência, e nem sequer olhou-as uma segunda vez.

- Onde é que você vai, Naldo?
- Ao banheiro, preciso pedir agora?
- Arre, segura tua onda, meu filho! Tá todo mundo aqui na mesma merda que você, todo mundo meio órfão de pai e de amigo, então pode segurar a peruca e ficar aí mesmo.
Engoliu em seco e voltou para junto da mesa, sem dizer palavra.
- Melhor assim... Vamos fazer uma pré-seleção, ok?

A equipe reunida em volta do seu trabalho e ele querendo fugir dali, todos dando palpite sobre os melhores ângulos... E ele se pegou fazendo o oposto do que fizera até então - com a lupa na mão direita, analisava em detalhe cada foto, procurando entre as pessoas clicadas junto ao corpo alguma que pudesse ter qualquer relação com aquilo. E ali, durante o trabalho, começou sua obsessão: na pequena aglomeração à porta no prostíbulo, um rosto familiar. Ele não sabia quem era a menina de cabelos escuros caíndo sobre os olhos, sobre o rosto - longos cabelos negros, como a Iracema de Alencar. Nem virgem, nem Iracema: era a filha de Arlindo. Uma menina quando a conhecera - devia ter então uns 12 anos - agora era aos seus olhos uma mulher. Mulher da vida. Aquilo perturbou Reginaldo profundamente, e deixou nele aquela marca - procurar o rosto, um rosto na multidão.

Passou a pensar em como se sentia aquela moça, sabendo-se culpada da morte do pai. Pois assim fora apurado pela polícia local: o Arlindo descobriu o paradeiro da filha, foi até o puteiro armado com uma .38 não registrada, entrou pela porta gritando pela moça e pegou a pobre no horário de expediente - e em posição de sentido. Aquilo transtornou o velho, ele partiu para cima do cliente, o homem lutou com ele, tomou-lhe a arma e atirou contra o velho. Tudo bem explicadinho, tintim por tintim, pela Madalena - observe bem a ironia do nome da moça. É, era esse o nome da filha do Arlindo: Madalena.

Tudo ficou resolvido, o homem se apresentou na delegacia no mesmo dia, a justiça considerou aquele um crime de legítima defesa, e Madalena sumiu na poeira da estrada. Reginaldo ainda tentou falar com ela no dia do julgamento, mas foi vã a tentativa - ela levantou-se e saiu do tribunal como um relâmpago, mal pronunciada a sentença.

Desde aquele dia, ele a está procurando. Sabe que não vai encontrá-la. Ela jamais voltará a Taquarais. Para o que voltaria? Os irmãos e irmãs nunca a perdoariam. As pessoas da cidade olhariam para ela sempre de soslaio, sempre lembrando, sempre acusando. Fizera bem ela, de seguir o caminho que resolvessem seus passos. Começar nova vida, inventar uma história, um passado bem triste, que ocultasse o real motivo daquela infelicidade sem fim dentro dela, transbordando por seus olhos - para, quem sabe, poder ser feliz de novo. No fundo, talvez soubesse que era isso que o pai queria para ela - felicidade. Talvez, ficasse ela ali em Taquarais, a morte do seu Arlindo tivesse sido vã, e ela jamais teria chance de encontrar a tal felicidade que julgava ser o que o pai desejava para ela. Ou talvez tivesse aceitado algum convite de algum cliente, e estivesse agora num apê bonitinho de algum bairro suburbano da capital, teúda e manteúda de algum figurão da TV...

Ele nunca saberia. Nunca mais seus olhos redondos e assustados no meio da multidão. Nunca mais a oportunidade de consolá-la por sua perda - perda de que todos se apoderaram, ele inclusive. Nunca os cabelos negros descendo por seus ombros, suas costas nuas, registrados por sua objetiva. Nunca mais.

Mas não! Não desistiria de buscar. Talvez nessa busca ele encontrasse o que perdeu quando viu o corpo do seu Arlindo ali, estirado no calçamento. Talvez nos olhos dela estivessem as respostas às perguntas que nunca deixara de fazer. Mesmo agora, quase três anos depois do acontecido, quando as feridas cicatrizaram, quando a dor passou a dormência, e a dormência se transformou naquela pontadinha que notifica seu dono que o tempo vai mudar...

Ele procura um rosto. Constantemente. Sabe que sempre vai buscar.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Dipshit around the world

Então, pessoas... Coisas incríveis ainda acontecem por aqui. Apesar de o ritmo ainda não ter engrenado como eu gostaria, um dos contos que publiquei neste blog foi traduzido para o inglês e está sendo usado para divulgar o trabalho dos novos contistas brasileiros por aí.

Quem tiver interesse em ler/ver como ficou pode encontrá-lo aqui. O original em português está aqui e aqui.

E, se você gostar desse antiguinho, que tal visitar os arquivos deste blog? Fica a dica.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Espiral


Ele me diz que eu preciso dormir mais. Aquiesço, mas é mentira. E ele sabe. Nunca é fácil dormir. Mesmo exausta não posso conciliar o sono. Há muita coisa rolando na minha cabeça, o tempo todo. Fica impossível mergulhar num relaxamento gostoso, e escorregar para o sono, e o esquecimento.

Ele me diz que isso vai me fazer adoecer, eu concordo. Ele não sabe que eu já estou doente. Há um tumor na minha alma, é maligno, está muito enraizado. Sou terminal e não há alternativa. Em breve a minha alma terá morrido, e eu vou descobrir se o corpo morre com ela, ou se serei um zumbi para sempre.

Enquanto o dia não chega, ficamos aqui eu e ele, confabulando a respeito das minhas possibilidades, e eu acho tanta graça... E fico angustiada, e então tenho vontade de chorar. Invejo profundamente as pessoas capazes de verter lágrimas. Já não posso mais.

Ele diz que eu podia ser o que eu quisesse. Digo sempre o mesmo: eu também, meu bem. Eu também (existe a mulher que vive com ele. Mas essa mulher tem uma outra vida, e ela está no fim...). Gosto de pensar que posso flutuar em segurança no oceano de suas certezas. Ele próprio é meu porto, e eu poderia viver uma existência atracada nesse cais. E ainda assim, que graça teria? Se você é barco, veleiro ou navio, o teu tamanho não importa: você precisa é navegar. Eu enfrentaria os sete mares, e me lançaria em águas revoltas sem temor algum, só com a garantia de terminar o caminho e voltar ao porto.

Eu digo que aquilo que fere também ensina, e que a dor é professora rigorosa e eficiente. Ele torce o nariz para a dor, e nem se dá ao trabalho de discordar. Ele sabe que eu estou certa, mas não sabe dar o braço a torcer. Eu sigo ao seu lado, as dores que cultivo de mãos dadas com as que a vida me prepara, e chegarão. Ele vê a dor e aperta os olhos, como uma criança que sacode a cabeça, acreditando que o pesadelo se dissolverá se ele os mantiver bem fechados. Eu sou brava e olho a dor nos olhos, por saber que ela veio para ficar, e dou-lhe boas vindas. Admiro adversários valorosos, e ela é a melhor.

Nós sabemos muito bem que as coisas ainda vão piorar um bocado antes que melhorem de vez. Só que essa verdade não se conta, nem se comenta, e seguimos mudos pelo mundo afora. Tenho um sem fim de palavras para derramar aos seus pés, óleo e alabastro e perfume de almíscar. Ele nem sabe escolher as palavras. Deixamos o amor preencher as lacunas. E o tempo se encarrega de pingar os is.


domingo, 27 de maio de 2012

Creme de sonhos

Eu olho para ele e tenho medo. Acho que nunca vou conseguir contar tudo o que se passa pela minha cabeça quando eu olho para ele. Todos os dias trocamos amabilidades monossilábicas e onomatopéias no guichê da padaria, e eu sinto aquele friozinho na barriga que só pode ser amor.

Os olhos dele fogem dos meus, e eu gosto de imaginar que ele também tem medo quando me vê. Ele gosta de comer sonhos de creme e bombas de chocolate, mas sempre leva um pão francês junto. Só um. Eu consigo vê-lo sentado na mesa da cozinha, tomando café num copo de geléia e comendo aquele pão com manteiga. E saindo com pressa, comendo o sonho com mordidas grandes, o creme escapando pelos cantinhos da sua boca. Na minha cabeça ele trabalha num banco, preenchendo formulários e registrando movimentações financeiras. Ele usa um terno azul marinho. Ele tem um sorriso discreto e sonha com uma viagem a um paraíso exótico qualquer.

Quando ele sai o movimento esquenta, é um entra e sai constante, e o vozerio dos outros clientes enche a loja. Um monte de gente conversa, conta da vida, faz fofoca e comenta novela. E eu participo de tudo, retribuindo e conversando com todos - mas a minha cabeça está longe, divagando. Eu crio diálogos perfeitos para nós, e neles sempre rimos muito, e a gente descobre uma cumplicidade gostosa, que só pode crescer.

Nos meus sonhos, ele leva dois pãezinhos para casa, onde eu estou preparando o café para ele. Ele chega com o pacote da padaria e vai para o chuveiro, e eu arrumo a mesa do café da manhã com xícaras e pratinhos de porcelana, decorados com motivos florais. Ele se senta na minha frente e conversamos, ele nunca tem pressa de ir trabalhar. Nós rimos, dividimos o sonho de creme e nos despedimos com um abraço apertado, eu ajeito sua gravata, limpo as migalhas do seu terno. Ele me beija na boca e sai pela porta, olhando para trás quando chega ao elevador. E sempre estou na porta, olhando para ele. Nos meus sonhos, ele planeja a viagem para algum paraíso exótico - e me leva junto.

Mas no mundo real, o dia acaba, eu fecho o caixa e vou para casa, contar meus sonhos para a solidão.


quarta-feira, 23 de maio de 2012

Blábláblá

E eu estava achando que era paranoia minha, sabe - afinal, já faz uns seis anos que eu estou fora do "mercado" - e que eu só estava enferrujada. Mas agora, depois dessa história... Enfim, acho que mesmo contando ninguém me acredita.

Há mais ou menos um mês eu dei uma chance ao meu personal, sabe? O Marcelo é gato, e sarado, e eu não estava fazendo nada, ué! Sem julgamentos. Ele começou a mandar umas indiretas assim que eu topei incluir a corrida no meu programa, e eu estava fingindo que não estava entendendo porque ele não faz a minha cabeça. Daí, as meninas da academia perceberam e puseram aquela pilha, do tipo: "nossa, aquele gato quer sair com você e você descartando?" E, "ai, joga no meu lixo, eu reciclo!"... e eu caí.

Topei sair com ele para pegar um cineminha, e deixei a escolha do filme por conta dele. Devia ter dado meia volta quando percebi que estávamos indo assistir aquele pseudofilme coleção de clichês de filmes de ação do Stallone, mas né? Dei uma chance. Pensei assim: "tá, vamos dar umas risadas, quem sabe? Depois de uma hora e meia de tortura, saímos da sala de projeção e ele todo empolgado: "nossa, isso que é filme!" Chocada, eu? Com toda a certeza! Fomos tomar um chope depois, dei graças a Deus por ele não ficar puxando assunto sobre o filme, e uns três chopes depois ficou fácil partir para a pegação. Sabe o que é pior? É saber que, sem a pilha das meninas, eu nem teria experimentado. Vou te contar, nada combinava ali: o jeito dele beijar, o modo como me tocava... No fim da noite eu estava aliviada, imaginando que ele tinha percebido toda aquela incompatibilidade. Mas eu estava redondamente enganada.

Chegamos na minha casa e ele praticamente se convidou para subir. Quando eu desconversei, alegando ter trabalho no dia seguinte, bem cedo, ele arrematou com um "sei, sei, você está bancando a difícil... Para mim não existe mulher difícil. É que umas são mais resistentes que as outras..." Beijou meu rosto e foi embora assobiando uma música da Marisa Monte, e eu ali de cara! Como assim, mais resistente? Seria possível que ele não tivesse percebido o fiasco daquela situação? Será que para ele tinha sido ótimo, super gostoso, coisa e tal? Eu fiquei tão intrigada que achei que era tudo uma brincadeira dele. E outra vez, levei rasteira.

Dois dias depois do encontro, durante um treino na Lagoa, ele me agarrou pela cintura e me deu um beijo na boca, como se nós fossemos namorados ou coisa que o valesse! Como eu fiz cara de espanto, ele retrucou com um "nossa, por que esse susto todo?" Então eu comecei a explicar para ele, com cuidado (afinal, homem a gente arranja fácil, mas personal e cabeleireiro competentes são uma raridade), que a gente só tinha saído uma vez, que aquilo não era uma garantia de que a gente ia ficar sempre, e ele me convidou para sair de novo! Incrível! Como ele me pegou de surpresa, aceitei, mas disse que dessa vez eu escolheria o programa. Ele topou e eu liguei para um amigo: tinha uma peça em cartaz que eu queria muito ver, produzida por ele. Consegui os convites e avisei: "amanhã eu te busco às sete, ok?" Ele ficou todo ofendido, dizendo que mulher dele não buscava, era buscada, e eu retruquei, dizendo que dessa vez eu dava as cartas. Mesmo ficando meio contrariado, ele aceitou. E eu fui buscá-lo no dia seguinte. Ele estava me esperando na frente do prédio, e eu fiquei bem satisfeita, por não ter que esperar. Ele entrou no carro e seguimos para o teatro. A peça era excelente, eu estava me divertindo horrores com aquele musical setentinha, quis comentar alguma coisa - e o Marcelo estava dormindo. Dormindo de boca aberta.

Olha só, por mim tudo bem, gosto não se discute mesmo. O problema é que as incompatibilidades entre nós se acumulavam na velocidade da luz - e ainda assim, o cara continuava querendo ficar comigo (aqui leia-se, claro, me pegar. Sem ilusões). Fomos dali para um restaurante no shopping vizinho e eu pedi uma pizza. Foi o que bastou para ele começar a fazer piadinhas sobre eu recuperar todos os quilos que ele tinha me feito perder. O cara dorme no teatro, vem com essa conversa na sequencia e acha que vai se dar bem! Não né? Ah, mas ele não desiste! Eu levo o cara para casa, e ele quer que eu suba de qualquer jeito: "pô, gata, você não quer conhecer o meu apê?" Eu saio pela tangente com um "hoje não", bem evasivo. Se eu fosse ele tinha escutado as entrelinhas e deixado prá lá. Mas o Marcelo é O cara! Então ele dá o golpe de misericórdia: "então tá combinado: você vem jantar comigo aqui em casa no sábado! Vou te preparar um prato especial!" Como já estava tarde, me despedi sem bater boca e fui para casa.

No dia seguinte, ele só falava do tal prato especial, e se gabando muito dos seus dotes culinários. Então eu tentei entrar no espírito da coisa e avisei a ele que sou muito, mas muito alérgica a abacaxi, que não posso comer nada que leve sequer o suco da fruta. Ele disse que tudo bem, que estava "tudo dominado".

Então chegou o sábado. Resolvi caprichar na produção, porque não estou morta e estava me empenhando, nem sei por quê. Peguei o carro e fui até a casa do Marcelo, levando um vinho, tudo conforme manda o figurino. Ele abriu a porta e veio todo cheio de amor para dar, me elogiando o tempo todo, me abraçando por trás, cheirando o meu pescoço - e eu imune. Daí ele abre o vinho, serve duas taças e vai até a cozinha, buscar a tal iguaria divina: lombinho de porco assado, caramelizado. No abacaxi. Sério. No abacaxi! Foi o fim para mim.

- Marcelo, eu não te falei que eu sou alérgica a abacaxi?
- Ah, boneca, mas é só tirar a fruta do teu prato, deixa disso, vai...
- Cara, é sério: eu fico toda inchada, a minha glote fecha, eu vou parar no hospital, Marcelo!
- Gata, eu tenho certeza que mesmo inchada você fica linda...

Olha só o que eu tive que ouvir! Levantei, peguei minha bolsa e me despedi. Ele ficou furioso!

- Mas você vai embora sem nem provar a comida! Porra, você é uma fresca mesmo!
- Marcelo, meu querido, veja bem: você nem ouviu o que eu disse sobre a minha alergia! Será que você ouviu alguma coisa do que eu disse esse tempo todo? Numa boa, o que te passou pela cabeça, que eu estava caidinha por você e que mesmo que você servisse doritos com umas pastinhas eu já estava no papo? Eu vou embora sim, e nem é porque nós somos totalmente incompatíveis, ou porque eu sou completamente imune ao seu charme irresistível! É porque você não me ouve. Tudo o que você ouve quando eu abro a minha boca é "blábláblá, blábláblá, no final eu vou te dar". E isso para mim é fim de festa. Tchau, Marcelo.
-É, vai embora mesmo! Eu pego no telefone, e num instante aparece aqui uma mulher muito melhor que você e que nem vai me fazer perder tempo com toda essa papagaiada de jantarzinho romântico! Você que é uma fresca, mal amada! Vai embora mesmo, pode ir!

Nem me dei ao trabalho de responder. Já estava no corredor, descendo pelas escadas para não ter que esperar elevador. Fui até em casa, deixei o carro, peguei um taxi e fui para a balada, para não desperdiçar a produção, e só saí de lá com o dia raiando. O taxi que eu peguei na volta passou pela rua do Marcelo. Ele estava na porta do prédio, trazendo pão numa sacola. Pensei em dar bom dia, só para provocar, mas e a preguiça de abrir a janela? No fim das contas, ele ia precisar mesmo do pão.

O tal lombinho deve ter dado um ótimo recheio...




quinta-feira, 5 de abril de 2012

Intransitivo

Acordei sentindo cheiro de chuva, ouvindo o tamborilar nas vidraças das janelas. Deixei-me ficar preguiçosa, os olhos fechados, imaginando a temperatura agradável, a terra molhada, o trânsito caótico obrigando as pessoas a reduzirem a velocidade e darem-se conta do milagre que é a chuva. Sorri, e foi um sorriso frio e melancólico, como aqueles sorrisos de velório, que nada mais são que a sombra das lágrimas que passaram e o prenúncio das que virão.

Lenta, ainda entorpecida pelo sono, espreguicei: ritmo de domingo em plena terça-feira. O corpo foi ganhando vontade, pedindo movimento, e eu fui cedendo o meu desejo de ficar ali ao seu apelo imperativo.

O perfume quente da terra molhada, será que eu imaginei? A percussão das gotas miraculosas no parapeito, foi o som da minha memória que eu ouvi? Abri os olhos para um dia azul, céu de brigadeiro, nem nuvens. Procurei no horizonte vestígios, mas nada havia lá.

A tempestade estava aqui, dentro de mim.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Canvas

Você é essa linda tela, onde eu pintei minhas ilusões de amor.

(É fato, eu não deveria tê-lo feito, mas é assim que eu sou. Eu pinto.)

Há muito mérito em se continuar as pinceladas de outros artistas, mesmo que a opinião pública diga o contrário. É tão difícil imaginar o que o autor queria dizer ou mostrar ao mundo com o seu trabalho... Contudo, sou muito dedicado, e não desisto jamais! Sei que posso ir mais longe, e que de alguma forma a minha criação será ainda mais surpreendente do que pretendia o seu antigo mentor.

Digo isso porque sei que obras de arte são projeções de uma realidade subjacente, oculta de nossos olhos carnais. É preciso enxergar através da tela, para além do espaço restrito em canvas, e usar nossos olhos de ver. Mesmo quando pensamos estar observando uma pintura que retrata uma cena real, um momento recortado do presente, há sempre algo a mais, como a luz que emana dos olhos dos personagens, ou mesmo o modo como o vento sopra suavemente as folhas de uma árvore ao fundo... É muito difícil explicar esse tipo de coisa a alguém. É muito pessoal.

Então eu desenvolvi essa habilidade: eu encontro pinturas incompletas, passo dias a observá-las, e de repente chega o momento em que decido continuá-la. De onde o outro parou, sem nenhum artifício além de meus pincéis e tintas. As pinturas falam comigo, e eu lhes dou voz.

Com você não foi diferente, e eu fiquei encantado quando te encontrei. Você parecia tão frágil, tão simples, e ainda assim tão cheia de nuances! Não pude dormir ou comer até que me dissesse que viria comigo. Abri as portas de minha casa e de meu coração para que fizesse deles sua morada, e dali em diante, passei a reinterpretá-la, como a uma de minhas obras. Levei muito tempo pensando em como destacar a profundidade dos teus olhos, as pequenas linhas de expressão em torno deles como molduras delicadas, a linha perfeitamente arqueada das suas pálpebras curiosas, o brilho intenso dos teus olhares misteriosos, tão inocentes quanto sábios, as ondas revoltas de seus cabelos longos, negros como a noite. Trabalhei determinado, sem descanso, e construí todas as minhas decisões artísticas sobre o que julgava ser um esboço em construção.

Precisei de 10 anos irrecuperáveis de minha vida para reunir a coragem de te dizer aquilo que eu já desconfiava, mas nunca ousara enunciar: você era um trabalho desbotado, mais que completo, já tão castigado pelos anos e maus cuidados que seria impossível fazer qualquer reinterpretação.

Você nunca precisou de reintérprete, querida. Você precisa desesperadamente de restaurador. Essa não é a minha área de atuação. E você devia ter a decência de avisar aos poucos incautos que ainda tiverem coragem para investir em você - para poupar-lhes o tempo.







quinta-feira, 29 de março de 2012

Once upon a time...

Era um sapo comum. Não era príncipe nem poderia transformar-se em outra coisa. Uma vez já fora larva, nos tempos idos antes de sua metamorfose. Mas nem disso se lembrava. Talvez o tivessem chamado girino, e ele de nada saberia. Vivia à beira daquele lago, onde fora gerado, e onde tinha a possibilidade de, quem sabe, encontrar uma sua irmã disposta a parear cromossomos consigo, e depositar na mesma margem os ovos de sua descendência.

Contudo, a vida das criaturas é joguete nas mãos do destino, e naquela gloriosa manhã de outono a vida do sapo iria sofrer um golpe fatal.

Ele comia seus insetos matinais sentado sobre uma pedra da margem do lago, esquentando ao Sol, totalmente alheio à estrada que cortava os vales por detrás daquela clareira. Enquanto isso, dois caminhões amarelos seguiam pela estrada, transportando azeite português. O motorista do primeiro carro vinha distraído, conversando ao rádio com Cleonice, a dona do posto de gasolina. Mal se concentrava na direção, tão interessado estava em conquistar as atenções daquela mulata de parar o trânsito. Ele ria forçadamente de suas piadas quando engasgou-se, e estendeu a mão direita para pegar um copo d'água, no momento em que a estrada fazia uma curva fechada para a esquerda. Perdendo o controle da direção, ele livrou-se do cinto de segurança e pulou para fora rapidamente, deixando que o veículo saísse da pista e invadisse a clareira. O segundo motorista, com presença de espírito, conseguiu evitar a situação e parou seu caminhão mais adiante para ajudar seu colega imprudente.

Por sorte deles, e azar do sapo, o caminhão ficou quase intacto. Caiu dentro do lago, arrastando terra e pedras junto com ele - e esmagando o corpo do infeliz animal contra o fundo, debaixo da roda dianteira direita.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Ingenuidades

Sempre acreditara ser aquele tipo de mulher de quem os homens fazem gato e sapato. Jamais em toda sua vida soubera dizer não a quem quer que fosse, quanto mais a um homem por quem sentisse amor. E desta forma, seguiu sendo pilhada por toda a sua existência: ora o marido, ora o filho, ora o chefe, todos, sem exceção, conseguiram dela tudo o que desejaram.

Era assim que ela enxergava o mundo, e talvez sua mãe tivesse alguma culpa, por ter ela mesma sido sempre submissa e subordinada ao marido, seu padrasto. Ela nunca soubera que mulheres pudessem ser fortes, donas de si, ter desejos próprios e e até mesmo decidir o que fazer da sua vida.

Havia chegado o dia do casamento de seu único filho, Adalberto - conhecido por todos como Júnior, uma vez que fora nomeado como seu pai. Ela achava de uma falta de imaginação sem precedentes, nomear crianças como a seus pais, mas não pudera dizer que não ao marido, e chamara ao menino Jr toda a vida, a única insubordinação de que fora capaz. Estava vestida, penteada e maquiada de forma impecável, e via refletida no espelho uma bela mulher, jovem para seus 53 anos. Estava emocionadíssima, e esperava o momento de entrar na igreja com o filho, enquanto a família de sua nora corria de um lado para o outro, todos extremamente nervosos. Imaginou ser essa a atribuição da mãe da noiva, esse preocupar-se excessivo. Olhava curiosa toda aquela aflição reinante, mas desistira de oferecer-lhes alguma ajuda. Para Dona Yolanda, mãe da Narinha, era quase uma competição entre elas, para descobrir quem era a melhor mãe, e ela já lamentava por seu filho, genro daquele trator humano! Ria-se de tudo internamente, porque sabia que, apesar de toda a histeria, eram todos muito boas pessoas, e seu netinho ou netinha seria muito feliz por viver no meio de todos eles. Estava assim, absorta em seus pensamentos, quando ouviu a voz de Adalberto, o pai, chamando-a:

- Ezilda, venha cá, mulher! Está fazendo o quê aí?
- Já vou, meu bem!
- Por que você estava ali, criatura? - Adalberto lhe perguntou, exaltado. Ele sempre ficava indignado quando ela ficava à toa. Era quase uma afronta a ele, era como ela percebia, se ela ficasse sem o que fazer, nem que fosse por cinco minutos.
- Ora, Beto! Haja paciência... Você não viu que eu ofereci ajuda a D. Yolanda? Ela insistiu que não precisava, então, fiquei olhando.
- Ora, mulher... Acha-se logo o que fazer! Vai lá ver se o Betinho não está precisando de alguma coisa, vai.

Ela apenas meneou a cabeça, e foi ter com o filho. Para o marido ela era como uma emissária, a quem ele enviava onde queria, para fins de sua representação. Nunca pensava nisso, mas achava muito chato ter que servi-lo todas as vezes, com um sorriso no rosto. E ele, o que teria que dar-lhe em troca por tanta dedicação? Ah, isso ela bem sabia: todas aquelas amantes, o filho da Outra que ele se recusara a registrar, a quem ela reconhecera e amadrinhara desde pequerrucho, o risco de bancarrota por suas dívidas de jogo, e um sem número de eventos em que se metera. Essa era a paga que ela merecia...

Percebendo a nuvem escura que se colocava sobre seus olhos enquanto lembrava desdes incidentes, sacudiu a cabeça como quem espantava um mosquito inconveniente e sorriu para o Jr. Seu filhote estava lindo, um homem feito com olhos de menino... apavorado! Ela ficou alarmada imediatamente, e correu em sua direção, solícita.

- O que houve, Jr?
- Mamãe, eu acho que a Narinha desistiu do casamento.
- Agora, meu filho? Na hora de cerimônia?
- É, mãe, agora, agorinha! - retrucou Jr exasperado. Eu escutei o que não devia, D. Yolanda aos berros com ela no telefone, dizendo que parasse com a criancice, saísse daquele quarto e viesse já - mas eu ouvi ela dizendo que não viria, que não queria nem me ver, que o nosso filho teria pai, mas ela não queria marido de jeito nenhum. É o fim, mamãe. Ela não quer viver comigo. Ela prefere ficar sozinha do que viver comigo...

Ezilda abraçou o filho, enquanto tentava inutilmente compreender o que ele dissera. "O que ele quis dizer com não quer casar comigo? Então Narinha enlouqueceu? Será possível uma mulher ter um filho sem pai, por Deus?" Esses pensamentos passavam rapidamente por sua cabeça, ela ficou zonza e não soube a princípio que juízo fazer do que lhe fora dito. Limitou-se a olhar seu filho nos olhos e garantir que tudo daria certo. Alguma coisa estava acontecendo na sua cabeça, mas não daria atenção àquilo naquele momento. Foi até onde estava D. Yolanda e disse:

- Querida, eu preciso falar com a Narinha.
- Está tudo sob controle, Ezilda, eu lhe asseguro. - Então Ezilda foi mais assertiva.
- Yolanda, meu amor, eu vou falar com a Narinha agora, ok? Onde ela está?

Dona Yolanda parecia petrificada, e como nunca tinha visto "Ezildinha" falar daquela maneira, aquiesceu. Deu um suspiro profundo, e dando de ombros, ofereceu-se para acompanhá-la até o quarto da casa de festas onde a noiva estava se arrumando. Por todo o caminho foi oferecendo explicações, entre muxoxos, justificando que esses jovens eram assim, inconsequentes, que essas coisas de medo eram assim mesmo, que no final tudo daria certo, mas Ezilda não estava escutando. Ela sabia o que tinha que dizer a quase-futura-ex-nora, e o faria. Quando chegaram na porta do quarto, Yolanda fez que ia bater na porta para chamar a filha, mas Ezilda cortou seu gesto, imperativa.

- Eu assumo daqui, obrigada, Yolanda. Vai dar tudo certo, de alguma forma. - Diante do silêncio perplexo da outra, Ezilda bateu na porta, anunciando-se:
- Narinha, sou eu, Ezilda. Vou entrar, querida. - ela não estava ali para brincadeiras, era a felicidade do filho e do neto que estavam em jogo, e não ouviria nenhuma negativa da noiva. Virou a maçaneta e entrou no quarto, decidida. Encontrou a menina jogada sobre a cama, os cabelos desalinhados, a maquiagem borrada, em prantos. Abraçou a Nara e permitiu que a pobrezinha terminasse de se lamentar em seu ombro. Entre soluços, ela desabafou:
- Dona Ezilda, a senhora me perdoa? Será que seu Adalberto vai me perdoar também? Ah, dona Ezilda, eu não sei mais de nada, eu não sei o que fazer! A senhora já imaginou o que vai acontecer quando o Júnior perceber a merda que fez e me abandonar? - e dito isso, desabou novamente em lágrimas. Ezilda sorriu e apertou a menina em seus braços. "Quanta bobagem a gente pensa quando está grávida..."
- Minha filha... você atinou na quantidade de asneiras que você me disse nesse minutinho desde que eu entrei aqui? - e continuou, sob o olhar atônito de Nara - Minha criança, o Jr é completamente apaixonado por você! Você acha que ele não se casaria com você se não fosse pela gravidez? Ora, Narinha... deixe de ingenuidade, esses são outros tempos! Meu filho casaria com você de qualquer maneira. Talvez não tão logo, talvez mais um ano, ou dois - mas tenho certeza de que, no coração dele, você é a escolhida! Para que tantas inseguranças, meu anjinho? Você ama o meu filho?
- Ai, dona Ezilda... a senhora sabe que eu sou louca pelo Júnior.
- E você duvida no seu coração que possa ser feliz com ele, ou que ele possa ser feliz do seu lado?
- Não, minha sogra! Eu não posso imaginar a minha vida sem o Júnior...
- Eu sei disso, minha filha. Ninguém se casa com um homem que se chame Adalberto sem ter certeza absoluta de que é isso que deseja. Agora, vamos dar um jeitinho em você, e eu te garanto que quando você chegar naquele salão ele nem vai se lembrar que você está esperando criança!

A menina sorriu, meio envergonhada, e permitiu que a sogra lhe penteasse os cabelos, refizesse sua maquiagem e ajeitasse o véu e o vestido. Quando Ezilda deixou aquele quarto, Narinha estava pronta para dizer sim ao Jr, e até Yolanda, embora não gostasse de dar-se por vencida, estava agradecida àquela mulher intrometida que salvara a situação. Ezilda foi até seu filho, deixou que ele tomasse seu braço e a conduzisse ao altar montado no meio do salão, para tomar seu lugar ao lado de Adalberto, o pai. A cerimônia foi lindíssima, os noivos muito emocionados, o filho feliz como nunca tinha visto, a nora radiante, toda a felicidade do casal transbordando sobre os convidados. Ezilda não se lembrava de ter presenciado um casamento mais bonito - nem mesmo o seu. Até que ela fixou o olhar na fileira do fundo, e sentiu um arrepio subir-lhe a espinha. Sentada ali, assistindo a cerimônia, estava a Outra - a amante do marido, mãe de seu afilhado! Ela olhou novamente, não sem antes piscar, num esforço para certificar-se de que era real. O rapazote, irmão de Jr, estava agora com dezesseis anos, e era a cópia esculpida de seu pai, o marido dela. Ela gostava muito do Anselmo, mas vê-lo ali, no casamento do Jr, e ainda por cima acompanhado de sua mãe, aquilo foi um pouco demais para ela. Coisa do marido, tinha certeza. E nunca uma decisão dele pareceu-lhe tão audaciosa!

Aquela zonzeira que ela experimentara antes, quando o filho lhe falou da desistência da noiva, aqueles pensamentos que não concatenavam, agora formavam uma imagem muito clara em sua mente. Ela entendeu num relance porque tinha ficado tão incomodada com a ideia louca da Nara. "Eu tenho escolha", ela pensou, e viu tudo claramente. Todas aquelas humilhações que sofrera, nunca mais. O medo do abandono, nunca mais. A dor da perda iminente, nunca mais.

A festa se desenrolou suave e deslumbrante, todos dançando e se divertindo até a madrugada. Ela mesma foi pessoalmente cumprimentar o afilhado e sua mãe, sorrindo e muito cordial. O próprio Anselmo lembrou-se depois que sua madrinha nunca tinha sido tão gentil com sua mãe antes, e o marido ficou encantado, imaginando todos os possíveis desdobramentos positivos dessa nova atitude de Ezilda para consigo. Quando os esposos resolveram deixar a festa, ela abraçou os dois ternamente, e desejou-lhes uma vida inteira de cuidados mútuos e muita gentileza. Recomendou ao filho que fosse sempre bom companheiro para a esposa, e que nunca, nunca a decepcionasse. Sorriu para a nora, abençoou a ela e ao seu ventre, onde o minúsculo embrião repousava, imperceptível, e deixou que seguissem.

Esperou até a hora em que Adalberto veio a seu encontro, depois de ter dançado quase a noite toda com a Outra, já meio alto e aos gritos.

- Ei, Ezilda, minha filha! Venha cá, vamos para casa.
- Não.
- O quê?
- Não, Adalberto. Você não vai para casa comigo.
- Como assim, mulher? O que você pensa que vai fazer, criatura?
- Eu vou ser feliz sozinha, porque com você já faz muitos anos não sou. Nem sei se fui, um dia.
- E quem te disse que você pode fazer uma coisa dessas, falar assim comigo?! Eu sou teu marido, criatura!
- Mas não é meu dono, e eu não sou obrigada a ficar do teu lado, nunca mais. Olha só, nós já criamos nosso filho, ele já é dono de seu nariz e logo será pai. Não existe motivo na face da Terra para que eu durma sequer mais uma noite ao teu lado, estrupício! Eu deixo as tuas coisas na porta da frente amanhã. - deu-lhe as costas, resoluta.
- Mas mulher, pelo amor de Deus, para onde eu vou?
- Não me interessa.
- Mas o que houve, criatura?
- Ah, Adalberto, eu descobri uma coisa hoje. E o tempo da minha ingenuidade acabou.

Ela seguiu em frente, deixando para trás um Adalberto perplexo e descrente, a Outra lívida e assustada, e Anselmo, seu afilhado, às gargalhadas.

- Ô, dinda!
- Diga, meu querido?
- A que horas eu posso passar lá na sua casa para pegar as coisas do papai, amanhã?
- Passe depois das 11h, meu filho, e almoce comigo, sim?
- Tá combinado, dinda!

E enquanto ela seguia em frente, acenando bem alto um adeusinho a Anselmo, ele virou-se para o pai e disse, assim entre dentes:

- Perdeu, playboy!


domingo, 12 de fevereiro de 2012

A quem interessar possa

Estou organizando minha vida de modo que haja tempo para este blog. Agradeço a todos que me visitam pela paciência, e peço desculpas pela ausência. Acredito que daqui para frente vocês voltarão a encontrar de tudo um pouco por aqui, com alguma freqüência, como dantes.

Muitos beijinhos, grandes e pequenininhos... :)

Isso é só uma carta

Paloma, minha pequenina flor de laranjeira:

Desde a manhã em que a deixei sozinha neste enorme apartamento onde nós vivemos juntos por lindos e mágicos 10 meses, tenho pensado em vão nas melhores palavras, aquelas que não deixariam dúvidas a respeito dos meus motivos - e como um bônus, te trariam alguma paz. Agora eu sei, tais palavras não existem, e ainda assim estou te escrevendo, e por um único motivo, somente: tenho algumas coisas a dizer.

Sim, eu te amo. Ainda, e muito, e sempre. Um amor como esse que eu sinto não é coisa passageira, e não seriam as dificuldades do cotidiano que teriam a capacidade de arrefecê-lo. Encontro-me no maior dos dilemas, porque construí minhas hipóteses sobre uma premissa simples, elementar até. E, infelizmente, tão frágil quanto simples. Entenda, meu doce anjo: eu imaginei que o tempo poderia fazê-la me amar como eu a amo. E sei que me diria, se estivesse aqui, o quão ingênuo eu fui, e quão arriscado é basear toda uma argumentação sobre as vontades de outro. Não estou me queixando. Pudesse, faria tudo de novo. O amor pode até não ser cego, mas é louco, e essa falha é um tanto pior que a primeira, não acha?

Se houve os momentos em que quase acreditei que de fato havia conseguido o meu intento, em outros, como no dia de nossa última discussão, todas as minhas ilusões perdiam o colorido e caíam por terra. Como é triste amar sozinho... A tua indiferença, o teu desinteresse por qualquer coisa que me diga respeito é tão eloquente que me deixou surdo e mudo - e me fez voltar a enxergar com clareza. Hoje, quase um mês depois daquele dia, posso novamente usar a minha voz para dar-te uma satisfação que não pediste, e sinto que nem te interessa. Mas não posso negar a mim mesmo.

Não te preocupes com nada, cuidei para que nunca mais tivesses que me encontrar. Tudo o que está no apartamento é teu, disponha como entender. Eu jamais poderia pedir-lhe nada, uma vez que nem o essencial te pedi. Podes vendê-lo, doar todas as minhas coisas para alguma caridade, não importa. Se nem toda a minha atenção, toda a minha disponibilidade, o meu afeto, meus elogios e declarações de amor foram capazes de te sensibilizar, não te apegues a uns poucos cacarecos. Não estarei mais ao teu lado, é certo - meu coração segue te amando, por mais algum tempo ainda - mas nem toda a distância do mundo pode me fazer te esquecer. Não preserve nem mesmo minha coleção de mangás ou o velho Atari. Deixei para trás esses velhos apegos quando me lancei nesta aventura desconhecida rumo ao teu coração. E me perdi.

Perdoe-me por tanto amor. Ele é a única explicação que existe. Tenho certeza que alguém tão articulada pode encontrar respostas diferentes, muito melhores que estas que te dou aqui. Mas isso é só uma carta, podes desfazer-se dela de tantas maneiras... Incinere, jogue no lixo, passe pela picotadora, recicle, use-a para acender a lareira da casa de Itatiaia. Pouco importa. Embora conte a verdade, é só a minha verdade, querida. Sinta-se livre para compôr a tua.

Recebi um convite para ir a Londres pelo aniversário de Otaviano. De lá, parto em busca de novos horizontes. Mesmo amando demais essa terra, há um laço misterioso que me ata ao Velho Continente. Estreitarei esta ligação o quanto puder, buscarei outras histórias para viver, e eventualmente esquecerei de ti. Provavelmente estarei decrépito demais para voltar para casa, esquecido demais para saber sequer onde ela fica.

Espero que leias tudo, até aqui. E desejo-te toda a felicidade que desejei para nós dois.

Com todo o meu amor,

Cristiano.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Ela dorme em meus braços - e eu sonho. O sonho é a luz dos olhos dela, seu sorriso sem dentes e a alegria contagiante que dela emana.

Ela não sabe dormir sem acalantos - e disso eu cuido. Todos nós buscamos para sempre a mãe que nos embala, que afasta nossas penas e preocupações. Deixo que durma - cuidarei para que o bicho-papão não se aproxime esta noite...

As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...