quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Imagine us as one...

Como um só.

Enquanto meus olhos puderem percorrer os caminhos
que me levam até você, até a lembrança
de teus olhos nos meus, e do toque de teus dedos grossos,
da tua áspera língua nos meus lábios.

Como um só.

Mesmo à distância, mesmo o espaço
entre nossos corpos, entre nossas vidas reais.
Mesmo no escuro, onde não te posso ver.
Mesmo noutro tempo, onde não há espaço
para te amar...

Como um só.

No hiato entre os infinitos universos de Pullmann,
na eternidade das vidas noturnas e secretas dos
vampiros de Rice, na voz rouca e nas palavras sedosas
da poesia de Cohen - ontem, hoje, sempre.

Como um só.

E não há argumento que me convença
de que não sou tua, de que não podes ser meu.
Somos um. Ambos.
Sob o mesmo Sol - e na escuridão dos céus nublados.

... uma! (revisado em 04/01/2010)

Carina chegou em casa bem cedo, pão e leite para o café da manhã como um regalinho para o namorado. Ela sabia que ele estaria lá, esperando para levá-la ao trabalho. E é claro que sua disposição para ir trabalhar era mínima - para não dizer nula - e ele ficaria furioso se ela dissesse que não iria à livraria hoje. Afinal, ele estava esperando por ela fazia meia hora, e ela poderia ter tido a consideração de avisá-lo antes, assim ele não teria perdido a manhã quase toda de trabalho, blábláblá... e ela resolveu evitar o sermão dele e ir logo - sem abrir mão do desjejum! Depois de balada com XTC ela ficava faminta...

Ele olhou para ela intensamente. Ao invés de inquirir a respeito de seus whereabouts da véspera, ele simplesmente olhou para ela. Isso a enervava, porque ele era verdadeiramente imprevisível. Carina gostaria de poder decifrar aquele olhar profundo - e retribuí-lo dignamente. Mas não poderia fazê-lo naquele momento, e desistiu antes de tentar, abaixando os olhos enquanto sentia que ele a prescrutava em silêncio.

- Boa, a balada?
- É, não dá prá reclamar. Tá esperando a muito tempo?
- Não importa, querida. (Tá, até parece... ela pensou e não disse). De quanto tempo precisa para se arrumar?
- Uns 40 minutos... Se você estiver com pressa eu vou entender, Chris.
- Não, absolutamente! Eu espero. Por que você não toma um banho enquanto eu preparo o café? A gente ganha tempo. Que tal?
- Tá...

Foi para o banho incrédula. Não era do feitio dele ser tão gentil. Provavelmente queria pedir-lhe algum favor - e sabia o quanto aquelas pequenas delicadezas arrancariam dela whatever he wanted. Ela não tinha contado nada a ele dos sonhos de morte, e sabia que ele caçoaria dela por estar tão preocupada com isso. Eram somente sonhos, for Christ sake! Ele tinha essa mania de meter expressões em inglês no meio do discurso, era sua língua materna se intrometendo na conversa - e ela tinha absorvido essa mania bem rápido. Gostava de como soava, era charming... E de qualquer forma, ele era pragmático e não seria compreensivo se ela contasse os sonhos, e como se sentira, e sobre o que acontecera naquela noite, durante uma soneca no Íris. Deixaria passar. E resolvida, terminou o banho, vestiu-se e foi para o trabalho acompanhada dele.

A viagem de carro até a livraria foi bem demorada, o engarrafamento dava tempo para uma conversa, e Chris nunca enrolava. Straight to the point, ele pediu que ela posasse para ele. Era o trabalho final de seu curso de pintura.

- Você sabe, eu preciso amenizar o stress, e isso me relaxa, darling. Você faz isso por mim, will you?
- Sure, babe. Quando?
- Ah, semana que vem, sexta, how about it?
- Ok. Next friday it is.

A semana seguinte passou a galope, e de repente já era sexta. Dormiu sem muito cuidado todo esse tempo - ela esteve tão ocupada, foi a tantas festas, coquetéis de lançamento na livraria e estréias no cinema que nem sequer pensou nos sonhos-morte. Na noite de quinta foi ao shopping com as amigas, tomar um choppinho e falar da vida, chegou em casa tarde e foi logo dormir. Precisava estar bem disposta no dia seguinte - a pedido de Chris, o gerente da livraria lhe dera o dia seguinte de folga, para que ela pudesse posar para ele. Só acordou espontaneamente por volta das 10h, e foi tomar um longo banho de banheira. Estava sentada na cozinha, tomando café bem forte, quando ele chegou. Estava carregando o cavalete e uma maleta com as tintas e pincéis. Ela estava vestindo somente o roupão de banho, e Chris pediu-lhe que tirasse. Ela não imaginava que seria um nu, e aquilo a deixou muito excitada. Virou-se de costas para ele e deixou que o roupão escorregasse por seus ombros e costas, desnudando seu corpo roliço e macio em câmera lenta. A sessão de pintura começou com uma sessão de sexo selvagem, e só depois de satisfazer seu desejo ela deitou-se no sofá do terraço, na posição que ele determinara.

Então bateu aquele sono pós sexo, e ela permitiu-se deslizar para os braços de Morfeu...

Ele não vai me deixar olhar o quadro antes que termine. A maneira como franze a testa, concentrado no trabalho, é tão sexy... Me dá vontade de levantar daqui e atacá-lo novamente. Enquanto ele pinta, o mundo entra em colapso lá fora: vem da rua o barulho de tiros e bombas, eu quero levantar daqui e ir até a janela olhar o que está acontecendo - mas ele não me deixa mexer um músculo! Diz que o mundo pode até acabar que ele não dá a mínima, que vai acabar enquanto ele pinta. Eu peço 5 minutos para descansar da pose, ele é ríspido e nega. Então, ele caminha em minha direção, começa a pintar em meu corpo. No princípio faz cócegas, eu me retraio e acho graça. Ele sorri sem mostrar os dentes, e por um instante nos olhamos em silêncio. Mas de repente a brincadeira perde a graça, e sinto dor. Percebo apavorada que cada desenho feito por ele em meu corpo torna-se real. Ele desenhou uma fratura exposta em meu braço esquerdo, e agora estou sangrando e gritando, tão alto que até parece que o som não vem de mim... Os meus gritos se misturam aos da multidão em fúria na rua, e eu quero descer até eles para fugir de Christopher... Ele segura meu braço direito e lava com aguarrás a fratura, que desaparece como mágica.

Ele então desenha uma corda em volta do meu pulso, e do outro, e estou presa, as mãos amarradas às costas, impossibilitada de fugir porque amarrada a ele também. Ele desenha em meu rosto uma flor e uma abelha, e em torno de meu pescoço um colar de pérolas naturais - tudo se materializa. Estou assustada, e ele diz que eu posso ter tudo, ser o que eu quiser, mas que preciso mudar, me transformar em outra. Eu lhe digo que isso é impossível, que o que eu sou é mais forte que a minha vontade e seus feitiços. Ele mostra os dentes num sorriso sádico, e dessa vez não parece conciliador. Seus modos bruscos, suas mãos pesadas, ele procura na maleta um tubo de tinta vermelha, intensa. Jorra seu conteúdo sobre meu peito, e num instante o ar me falta, é meu sangue jorrando agora, me restam talvez uns minutos... Ele chora, e suas lágrimas são o solvente capaz de curar aquela ferida, mas ele se afasta de mim, o bálsamo de suas lágrimas molhando o avental de lona crua, o tapete de retalhos... Perco o controle de meus músculos, as forças me faltam, minhas pernas dobram sob o peso do meu próprio corpo. É o fim, é meu momento derradeiro. Eu lhe sopro um beijo, eu o amo - loucamente, apaixonadamente - mas não posso deixar de ser eu mesma para ser o que ele quer de mim.

Sinto que estou flutuando, sei que o sangue já não flui para o cérebro, meu rubro sangue, salgado e fértil, sangue coagulado sobre o acolchoado do sofá...

- Carina, você dormiu, meu anjo. Acorde, linda... Você escorregou no acolchoado, está arruinando a pose.
- O quê? Nossa, Chris, essa foi por pouco...
- De que está falando? It's nonsense, love. Come, deite-se aqui. Tenho uma pintura para terminar...
- É, você tem mesmo, mas precisa me despertar primeiro...

E durante todo o tempo em que fizeram amor, ela pensou, aliviada, que ele a tinha salvo. Mas nunca saberia direito de que. Sabia somente que gatos tem sete vidas, e que dessa maneira onírica e maldita sua natureza felina tinha chegado ao fim. Ela podia voltar a dormir tranqüila...



(Im)possibilidades

Vou vestir a roupa nova, vou ao mar! Se tanto, encontro a multidão. Quero estar sozinha, vazia de amigos e intenções, de família e de amores. Quero estar repleta de mim. Em algum lugar nessa areia toda pretendo encontrar-me, nem que seja preciso cavar profundamente!

Do buraco que faço na areia, à procura de mim, mina água salgada e sonho. Não emerjo, só mergulho, cada vez mais fundo, em busca do segredo que fiz de mim mesma. Este segredo é também meu presente ao mundo. Segredo na água salgada é pérola, doença de ostra, jóia rara para nós, os mortais. Se porventura tiver valor para os deuses, talvez eles a recolham...

Eu - a menina ostra.

Talvez fure algumas ondas. E mergulhe no oceano, com nunca antes. Quero me distanciar da praia, ficar em silêncio, ser tragada pelo oceano e tornar-me parte sua. Deixar-me ficar, flutuando sem pressa, até que os tentáculos do Kraken me envolvam e eu encontre o fim dos meus dias. Se nunca mais retornar à costa, meus compatriotas talvez percebam a ausência de algo, e passem a questionar: o quê?

Eu - a mulher invisível.

E, no final das contas, descobrirei o que já sei: que o meu tesouro é só meu, só a mim interessa riqueza que eu penso trazer aqui dentro, que já se passou muito tempo nessa existência sem que a totalidade do que eu sou fosse descoberta por alguém. E que provavelmente eu sou só uma pseudopessoa, envolta na minha solidão, entregue à certeza de minha desimportância. Não totalmente real, mais um fantasma que um vivente de verdade. E talvez todos já tenham percebido que sou uma fraude, e seja por isso que vivo tão ao largo, tão separada de tudo, de todos. E a verdade é que já fui engolida pelo Kraken, e o Kraken é a realidade - e é também o portal para um outro lugar. Um lugar onde eu sou.

Eu - uma in(ade)equação de mim.



terça-feira, 29 de dezembro de 2009

What if?

O não poder-te me consome...

E já que este é o nosso tema

(eu radical, você vogal temática)

Voltamos ao nosso problema:

E se você estivesse aqui, junto?

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

The strangest thing

Todos aqui, à minha volta

- eu sozinha.

Só, na multidão.

Aí, vem você - na imaginação.

E eu te vejo,

E você sorri,

E o mundo inteiro se abre num desabrochar de primavera.

Eu sei. Você sabe.

Enough...

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Sublim(e)inar

As horas nos teus braços são tão breves,

O perfume do teu sim tão sutil,

Que sinto o cheiro do não, exalando forte da caçamba lá na esquina,

Subindo pelo vão do elevador,

Invadindo o apartamento pelas frestas da porta...

E te levando embora - bem na hora do bis.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

- 3...

Nas noites em que sonhava com a própria morte, sentia tal diminuição de sua energia vital que era como se deveras morresse. E temia agora o próximo sonho, como se estivesse perdendo algo imaterial e seu a cada momento do sono. Ela vinha sentindo um sono anormal desde que sonhara com três episódios de morte - um mais disparatado que o outro - e arrastava-se pelo dia como uma sonâmbula, lutando como uma leoa para manter-se acordada.

Justo ela, sempre tão ativa e animada, presente em todos os embalos de sábado a sábado - dia e noite - sempre ligada, andava agora caindo pelas tabelas, o olhar perdido no espaço, sempre sonolenta. Já havia recusado três convites para sair só naquela semana! E as pessoas iam acabar desistindo de convidá-la, e acabaria esquecida, no limbo das listas de convidados das festinhas VIP a que havia se acostumado frequentar.

O namorado - se é que ela ainda podia chamá-lo assim, tão distante ultimamente, sempre dedicando sua total atenção ao trabalho, aos amigos, pouco tempo para ela - já tinha reclamado de sua ausência. E isso vindo dele era um sinal alarmante de que alguma coisa não estava bem. A mãe estava uma alegria só - toda empolgadinha - só porque tinha conseguido falar-lhe ao telefone por duas noites seguidas. E todas as suas energias dedicadas a impedir seus olhos de se fecharem... "Eu preciso ir ao médico, tomar uns complementos vitamínicos e umas anfetaminas... Ah, sei lá! Eu preciso é de balada!" Passou a mão no telefone e descobriu que tinha uma rave no Íris. Foi!

Dançou a noite inteira, dançou o namorado (ele que fique com os amigos), dançou a mãe (hoje a gente não bate papinho, mamãe!), dançou a sobriedade (hoje não!), dançou o fim do mundo - porque não estava morta. E cansou. Já devia ser quase dia - e o efeito do XTC se esvaía, e ela nem conseguia mais ficar de pé. Arrastou-se até o sofá do lounge, e lá caiu, adormecida quase que instantaneamente.

"Saímos do Íris, eu, minha amiga e mais três carinhas. Vamos até o apê de um deles, logo ali, na Saúde, ficar de bobeira - e claro que vai rolar alguma sacanagem. O lugar é escuro - fica na sombra de um prédio bem alto do outro lado da rua - e abafado. Essas características conferem uma qualidade angustiante ao espaço - e eu não me sinto confortável aqui. Um dos caras trouxe LSD, e ofereceu. Ela logo quis, eu passo, e num instante o cara e ela estão atracados num canto do sofá. Os outros dois vem sentar do meu lado, assistindo a pegação - e lá vem eles, para cima de mim. No início até que estava gostoso, eles são bem competentes na pegação - mas estou desconfortável, mais uma vez. Eu aqui, podia estar curtindo uma sacanagem bacana, e fico pensando no cretino... Ai, sei lá, estremeci e travei. Digo que não quero mais, que não estou mais a fim. E os caras piram! Começam a me bater de verdade, sinto o sangue escorrendo do meu nariz, na minha boca, no fundo da garganta - gosto e textura de sangue, meu sangue descendo do supercílio esquerdo turvando minha visão. Sinto o calor da pisada de um deles na minha barriga... E a minha amiga da onça lá, atracada com o cara. Eles me arrastam para o quarto e me barbarizam, cara... Eu nem sinto, acho que vou morrer, acho que eles estouraram uma artéria abdominal me espancando... A consciência está apagando, como uma vela dentro de uma cúpula fechada - estou indo, e ninguém vem se despedir... Eles só vão perceber quando estiverem satisfeitos. E provavelmente vão me jogar num lixão, numa caçamba qualquer...

Desperto aflita. Nem um arranhão. Provavelmente estou morta, e a mente continua. Não. Estou amarrada numa cadeira, amordaçada. Não posso pedir socorro. Os caras que aparecem não são os mesmos de antes, não sei onde estou. Eles me perguntam coisas das quais não sei. Onde está a droga? - que droga? Eu já parei faz tempos, agora só uso XTC, e mesmo assim na balada! - Eles me batem mais um pouco. Merda! Não sei de nada, não sei que história de droga é essa! Merda, onde está minha amiga? Ela me largou sozinha, e agora eu estou literalmente na merda! Só saio dessa bem machucada, ou morta. Esses caras vão me matar de tanta pancada... O inchaço no olho esquerdo me impede de enxergar direito, se alguém me achar viva nem vou poder descrevê-los precisamente... O que é aquele emblema na camisa dele? Merda, polícia civil! Agora ferrou de vez... Esses caras são piores que muito traficante - aliás, foi por isso que eu parei com a herô. Vou desmaiar, vou perder os sentidos. Acho que não aguento apanhar muito mais... Eles já me quebraram algumas costelas, eu tenho dificuldade para respirar - é, deve ter perfurado um pulmão. Porra, mãe, eu devia ter ficado em casa e papeado com você essa noite... Olha só o que eu fui arrumar para mim... É o fim da linha, mãe, tô partindo... E dessa viagem eu não volto, não posso te trazer souvenir...

Sinto o Sol morno do amanhecer no rosto. Abro os olhos. Estou deitada no gramado do jardim do pátio de entrada do prédio dele. Ele - deitado do meu lado - ri como criança, enquanto eu conto para ele o quanto eu apanhei dos caras por ter travado bem na hora H. Nós dois rimos muito. Eu digo que a culpa é dele, e mostro os hematomas. Nossa, como estão doloridos! E como foi que eu vim parar aqui? Faço força para ignorar essa indagação - sacudo a cabeça, mais uma vez. Eu quero me deixar ficar aqui, no teu abraço, amor. Tão gostoso, tão aconchegante... De repente, uma sombra entre mim e o Sol. E sinto a pancada dura e seca bem na têmpora direita. Caramba, quanto sangue! De onde saiu essa louca, amor? Você já a deixou faz o quê, dois anos? O que essa louca está fazendo aqui? Ai, porque você não faz nada, porque ela continua investindo contra mim? Olho para o lado: ele está inerte, caído do meu lado. Amor, amor, olha para mim, amor! Ele não pode abrir os olhos porque não está mais ali. E eu me esforço para continuar - mas ela não para de me surrar - e eu vejo tua mão estendida para mim. Eu aperto tua mão na minha. Fecho os olhos. Vou com você aonde você for..."

- "Carina, acorda Carina! CARINA!!!"

Ela abre os olhos. Está novamente desperta. Está de volta ao sofá do lounge. Morreu novamente, mais três mortes. "Agora só falta uma", ela pensa alto - e ninguém entende.

- "E ai, vamos ao apê desse carinha? Tô super a fim de uma pegação..."

Não, ela responde muda, balançando a cabeça. Precisa ir para casa, tomar um longo banho, pôr suas coisas em ordem. Não sabia quando chegaria a próxima morte onírica. Mas dormiria com mais cuidado dali para frente...

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Sete, menos três: quatro.

Inspiro profundamente. É o ar rarefeito, é o fim. É a hora, e se aproxima o exato instante, em que ouvirei as palavras que não ouso imaginar. Por hora, há contentamento em poder adiar por mais algum tempo - por alguns minutos ainda - o momento final. Eu adoraria poder seguir respirando esse ar rarefeito, e continuar viva. Sei, no entanto, que preciso de bem mais oxigênio para seguir consciente, e se insistir em permanecer nesse ambiente perderei a consciência - vou desmaiar, sei disso.

Mas a beleza que me envolve é como ópio, a adrenalina circulante tão aumentada que a sensação de prazer acaba por inibir minha natural cautela. Estou a 4.000 metros de altitude. Nunca - not even in my wildest dreams - imaginei que subiria tão alto. Sempre tive vertigem, sempre foi desconfortável olhar para baixo, perceber as proporções diminutas das coisas lá embaixo, no nível do mar - e pensar que tudo aquilo que vejo na distância é do meu tamanho... E agora, presa somente por uma corda e um mosquete num paredão de pedra, estou extasiada com a beleza que meus olhos alcançam, com a ausência de limites, com o céu a minha volta, com a certeza da morte, com a sensação de que estou voando. Vou decolar. E se meu corpo pendesse, bem agora? Será que a corda agüenta, será que eu vou conseguir? Falta tão pouco... E o ar rarefeito me faz sucumbir.

Quando acordo, estou numa máscara de oxigênio. Eles me dizem que foi por muito pouco, que eu não devia ter-me deixado ficar. Mal e mal escuto, um misto de agitação e delírio - e percebo que foi tudo um sonho, uma alucinação. O alívio é imenso - é claro que já começava a duvidar de minha própria sanidade - o que diabos estaria eu fazendo pendurada ali?

Descubro então, horrorizada, minha real situação: perdi muito sangue, estou numa UTI, já recebi quatro unidades de sangue O+, e os prognósticos não são nada bons... Médicos sussurram muito alto - talvez fosse melhor que falassem normalmente. Ouço a voz de minha mãe, seu sofrimento grita em meus ouvidos, ela quer saber se vou sobreviver. Os médicos não sabem dizer, ainda. Mas dizem que foi muita sorte que o socorro tivesse chegado tão rápido na estrada.

Percebo de onde vem a sensação de flutuar, voar, olhar de cima. De onde a vertigem e a náusea: estou olhando tudo de cima, estou pairando sobre a cena. Vejo meu corpo dilacerado, vejo os curativos, vejo os aparelhos aos quais estou conectada. Acho que estou indo, chegou a hora da minha partida. Será? Sinto-me ligada ao meu corpo, e ao mesmo tempo atraída para fora daquele ambiente estéril de hospital. Eu estava dirigindo. Eu dormi. Acordei com os faróis do caminhão. O carro foi lançado para fora da pista, capotou sei lá quantas vezes, costelas e pernas fraturadas, traumatismo craniano, edema cerebral. Ouço o médico dizer a minha mãe que, se eu sobreviver a essa noite, tenho chances.

Já não sei mais. Eu deveria estar sentindo dor física, mas toda dor que eu sinto é pelo sofrimento dela, suas lágrimas sem qualquer propósito vazando de seus olhos, de sua alma, de seu coração transpassado. Dói tanto... Ah, não, mãe, o que ele está fazendo aqui? Ela deve ter ligado para ele. Não contei para ela que ia terminar com ele essa semana... Eu o amo tanto, ele é tão importante para mim - mas não se importa. Ou pelo menos eu pensava assim. Ele parece tão transtornado, pálido, olhando para mim como se a minha morte tornasse sua vida impossível. Ele chega perto do meu corpo. Eu quero ouvir o que ele tem para me dizer.

E é aqui, nesse lugar de perda, que ele me dá eu que eu sempre quis! Quanto amor ele diz que sente, todo o amor que eu sempre soube que ele tinha para me dar - e nunca revelou. Porque logo agora essas palavras? Parecem brotar tão fácil de seus lábios, e no entanto jamais antes encontrei o conforto dessas palavras. Que vontade de ficar mais um pouco, de dizer a ele que também o amo, que vamos ficar juntos o resto da vida, que nada mais importa... E ela? Que vontade de abraçá-la bem forte, dizer-lhe que a amo, que seja forte e seque suas lágrimas, que vou ficar bem, que amanhã meus olhos vão estar abertos, olhando para ela... É irônico. Sinto um puxão para longe. É sutil, mas determinado. Estou indo, meu amor, estou indo, mãe. Queria muito abraçá-los, ficar com vocês. Já não posso, estou partindo.

Acordo numa poça de sangue quente, vermelho e vivo. Estou caída, no chão da sala. Ele me deu dois tiros na barriga. Uma das balas alojou-se perto da coluna. Se sobreviver, estou paralítica. Mas vou morrer, perdi muito sangue, meu fígado já era - e sinto o gosto de fel no fundo da minha boca. Adeus, meu amor, adeus. Eu sei que você só queria me assustar, sei que não era a tua intenção - de que adianta eu saber tudo isso? Estou partindo, meu amor. Beije a minha boca, prova da minha saliva pela última vez. Eu te perdôo, de verdade. Beije minha mãe por mim. Diga-lhe que quero você livre - quero sim. Quero que a tua vida continue, que tenha significado. De nada adianta julgá-lo - eu não voltarei à vida. Talvez seja culpa minha, talvez eu tenha merecido...

O despertador toca. São seis horas da manhã. Levanto sobressaltada. Estou viva, estou bem, estou inteira.

Foi só um sonho.


segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Love, reedited.

Now that everything's over,

Could we start all over again?

Invitation

Eu te convido a fazer parte do meu mundo. Não é grande coisa, mas é o que eu sou - e é isso que tenho para compartilhar. Você pode vir, se quiser - mas só se quiser. Eu quero caminhar com você ao meu lado, a tua mão na minha mão, meus pés nas tuas pegadas. Eu quero te mostrar o meu lugar secreto, o refúgio para onde eu escapo sempre que posso. E não é um lugar no espaço - é mais uma dobra no tempo, um lugar na minha mente.

Venho aqui constantemente, derramando meu leite e mel por sobre meu caminho, agradando até sem a intenção de agradar. Porque sou assim, é da minha natureza. Olhar para o outro e ver. Achar maravilhoso. Desdobrar-me em espaços onde o outro possa ser. E navegar no outro.

Nunca soube dar de mim em doses homeopáticas. Desconfio de gente que se entrega de conta-gotas, um pouquinho a cada dia - como se amor gastasse mais rápido se dado de forma liberal. Só sei fazer o presente de mim aos borbotões, cascatas de amor que jorram por entre as frestas da minha alma - e eu quero deixar que tudo que eu sou te envolva, te surpreenda, te sufoque! Mas que seja tua. De uma só vez e cada vez mais. Só assim sinto que toquei a verdade do que sou.

A fera que dorme dentro de mim ronrona como uma gatinha quando você chega. Ela se esfrega nos teus tornozelos, ávida por carinho. E quando tuas mãos deslizam por seu pelo macio, ela se arrepia toda... Ela quer ficar ali, junto de você, quer que você fique. Ela está apaziguada na tua presença. Fica aqui um pouco. É o fim dos tempos, é um novo dia, é o momento de te amar. Vem comigo, tira a roupa que cobre tua alma, deixa eu ver o que eu vi antes, quando você descuidou e mostrou quem você é. Deixa eu ver tua verdade. Eu sou só o que você já viu. Mas isso é muito pouco, perto do que você me faz sentir.

Isso tudo que sou e sinto estava escondido, soterrado sob os estratos paleontológicos da minha história - camadas e camadas de sedimentos, desvirtuando a minha verdade, obscurecendo a minha luz. Eu sou feita de muito mais luz que sombras, luz que ofusca ainda mais tudo o que é sombra em mim. E você é a minha sombra, o meu negativo em carne e sangue - e eu preciso desse contraponto para voltar a ser.

Para além de tudo o que eu desejo, a felicidade de explodir em cores diversas, o meu arco-íris íntimo esparramado sobre o mundo que te envolve, refletido nas tuas retinas, impresso em teu miocárdio a ferro e fogo, a certeza de que a tua vida nunca mais vai ser a mesma - e nem a minha.

Mas só que você quiser vir comigo. Você precisa querer.

("Eu acho que ele não vem / Ele não vem não / Ou será que virá?)

domingo, 13 de dezembro de 2009

Constatação

Ele cresce e eu envelheço. Tudo certo, é assim que deve ser, e me distraio enquanto observo esse movimento.

É ele na água, aprendendo a nadar. Aprendendo a voar para longe. Longe da opressão delicada e dedicada do meu amor de mãe. Longe - até onde o levavem seus pés, no seu caminho.

Já não cheira mais a leite. E, em breve, os hormônios o farão cheirar como um homem. É o fato inexorável da vida: ele cresce, eu degenero.

Sinto sua vitalidade encantadora, seus olhos brilhantes de descobridor de mundos, seu fascínio diante das coisas novas - incrivelmente velhas - que ele desbrava. Novos mundos a seus olhos - e a seus pés. É a trilha sonora do filme da minha vida: ele floresce, eu decaio.

Experimento o novo em mim a cada despertar desde que ele invadiu meu universo. A plenitude de seu amor como um talismã poderoso, um amuleto da sorte, um farol que me guia - ofuscante - na escuridão dos caminhos que escolhi, que me levam e trazem de volta. Até ele, até aqui.

É a verdade subjacente, o ruído, é o zum da abelha ao pé do ouvido, sob os véus do cotidiano: ele segue, eu o acompanho.

Até a bifurcação da passagem:

Ele fica.

E eu, nele.

("And I will find him - but not yet. Not yet...")


Para meu filho - meu amor eterno: ontem, hoje, sempre. Para meu pai, no seu aniversário de vida, de morte, de renascimento.

50 - 50%, now and always - as always.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Urdidura

"Ele é uma ameaça. Preciso neutralizá-lo - ou destruir sua reputação. Se eu não o fizer, ele vai acabar se impondo, mudando as coisas por aqui. E eu não quero isso. Não importa o que é melhor para a empresa. Empresa uma ova! E os meus interesses? E tudo o que eu batalhei para conseguir? Nada vai atrapalhar a minha vida. Nada vai mudar, a não ser que eu queira. Ele precisa cair - e sou eu que vou empurrar..."
Já fazia três semanas seu pupilo retornara de um período na matriz em Washington, para onde foi para um treinamento específico - e chegou cheio de idéias e disposição, falando em reestruturação administrativa, reengenharia produtiva, e toda essa baboseira neoliberal pós-yuppie, como se fosse o rei da cocada preta. E era. A matriz tinha um plano em andamento quando convocou a carne nova para o treinamento, tinha para ele uma missão: fazer o escritório paulista funcionar, dar lucro e expandir sua participação no mercado brasileiro. Eles não estavam satisfeitos com os resultados obtidos pela atual diretoria - ou seja, seu tutor e mestre.

Talvez isso fosse um problema ético para qualquer outra pessoa, mas o grande diferencial em seu caso era exatamente o que o tornara um profissional excelente – fora treinado por uma raposa velha, que agora estava se tornando uma velha raposa. O rapaz sabia do que seu mestre era capaz – era um adepto do bom e velho CHEAT, STEAL, MURDER – e sabia que o homem faria qualquer coisa para manter-se no poder. Mesmo que significasse destruir algo que ele mesmo ajudara a construir: sua reputação.

“A velha raposa está tramando algo – posso sentir o cheiro da maquinação no ar”, a atmosfera tensa e pesada no escritório sendo dissimulada por muitos sorrisos e gracejos, apresentações elogiosas e convites para longos almoços em plena terça-feira. Ele sabia que havia um objetivo por trás de tudo aquilo, e era claro para ele onde o outro queria chegar: ele queria distraí-lo de seu objetivo e armar alguma situação bem debaixo de seus olhos. Desacreditá-lo, quebrar a confiança que o pessoal da matriz depositara nele, derrubá-lo. “Not gonna happen, old man”, ele pensou. Se o mestre tinha seus métodos pouco ortodoxos, o aluno não somente sabia como também aprendera a jogar aquele mesmo jogo – e aprendera com o melhor. “Eu preciso descobrir o pulo do gato, aquilo que ele deixou de me ensinar. Eu preciso fazer o meu trabalho, doa a quem doer. E preciso isolá-lo, deixá-lo imobilizado. Se isso é um jogo, eu não quero perder.”
O tabuleiro pronto, as peças arrumadas. O torneio vai começar.

Suicidal note

Escrevi um soneto de adoração,
para rivalizar com qualquer um de Vinícius!

E você não leu.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Atômica

Fomos plasmados no interior ígneo da mesma estrela, ele e eu. Da mesma matéria e do mesmo sopro. Fomos dispersados pelo universo quando nossa estrela-mãe completou seu ciclo, e por milênios vagamos, distantes anos-luz um do outro. Meus átomos ávidos por reencontrá-lo, os elétrons ansiando por novas ligações. Tantos elementos, tantas ligações covalentes, iônicas e dativas – e eu ainda em busca dele.


Completamos inúmeros ciclos biogeoquímicos, nos mais diversos sistemas planetários, formando tantas substâncias tão complexas, cada dia mais apartados – mas sempre juntos, porque da matéria de que fomos feitos, só eu e ele. Navegamos os ventos solares, minhas velas sempre escancaradas ante qualquer possibilidade de encontro. Nem sei quantos sistemas em quantas galáxias de quantos universos viajei em busca dele, ou por quantos ele viajou, fugindo de mim.


Um dia, um dia dentre tantos nessa infinidade de tempo transcorrido, num planeta qualquer de um sistema planetário em uma galáxia como tantas, novamente reunidos. A matéria de que sou feita vibrando como um diapasão, a energia gerada pelo próprio encontro – gênese de planetas – capaz de trazer à vida cada nível energético da minha eletrosfera. A mesma matéria nele, num uníssono cristalino, ressoando a sinfonia do encontro, amplificando seus acordes e enviando a mensagem a cada canto do espaço-tempo. E retraindo, encolhendo em sua concha, como se fosse errado permitir-se essa felicidade incontida.


Meus pobres elétrons desejando a ligação perfeita que os estabilizaria para sempre - um novamente - e os dele estagnados numa outra ligação covalente, tão frágil e ainda assim indissolúvel.


Sinto o colapso chegando, as forças fraca e forte desistindo de sua batalha crucial – como jamais poderia ser. Num instante, uma a uma, minhas partículas começam a colidir – e eu simplesmente permito que aconteça, a explosão da matéria convertendo-se em energia, tudo o que fui de espera e desejo, tudo que soube de mim logrado pela ilusão do encontro, tudo que ansiei e desisti desfazendo o que sou, numa fração de segundo: fissão nuclear.



Revelação

Isso é coisa que não se comenta. Talvez os amigos mais próximos já tivessem notado, ela não saberia dizer – e não se importava que percebessem, nem ficava pensando sobre isso. Tinha clareza a respeito de sua sexualidade – e uma curiosidade secreta por mulheres. Sua identidade heterossexual não se abalava com esse interesse, mas ela sentia que, se não houvesse uma oportunidade de experimentar uma mulher, ficaria faltando alguma coisa em sua história.

A oportunidade veio numa quarta-feira particularmente chuvosa, quando uma chuva torrencial alagou a cidade. Impedida de sair para o trabalho, resolveu perambular pelo bairro – as ruas normalmente ficam vazias em dias como esse, e ela preferia evitar multidões, quando possível.

Caminhou até o calçadão e desistiu da idéia na hora – era desagradável estar ali, ensopada e açoitada por ventos cortantes. Voltou pelo mesmo caminho, e entrou numa deli recém inaugurada. Adorou o mix de produtos e ficou ali, flanando entre as prateleiras e selecionando um fois gras aqui, uma mostarda dijon ali, um espumante brut acolá. Pronto, estava resolvido: seria uma celebração íntima a liberdade! Coletou na geladeira um pote de sorvete de doce de leite argentino e já ai ao caixa pagar, quando notou que no fundo da loja funcionava um café literário: as prateleiras recheadas de Best Sellers e clássicos da literatura cheiravam a livro novo – e para ela, aquele era o cheiro mais sedutor do mundo, seguido de perto pelo cheiro do café espresso bem tirado por um bom barista. E ali ela encontrou os dois, comungando naquele espaço aconchegante e charmoso. Um deleite! Devolveu o sorvete ao freezer – “mamãe volta para te buscar depois do café, querido” – e sentou-se numa das mesas. Pediu um espresso e uma fatia de torta de pecãs. Enquanto esperava, foi até a prateleira mais próxima, e pegou um vampiro de Anne Rice para passar o tempo – conhecia bem a história, mas gostava de ler e reler seus livros prediletos.

Estava ali, folheando preguiçosamente o volume e bicando o espresso curto, encorpado, e percebeu que estava sendo observada pela mulher sentada na mesa ao lado. Ela devia ter mais ou menos a sua idade, um pouco mais alta e era ruiva de verdade, o pacote completo: pele oliva, sardas cor de ferrugem, olhos castanhos muitos claros e até os cílios daquela cor vermelho dourada! Ficou tão impressionada com o inesperado da situação de acabou devolvendo o olhar, acidentalmente. Então a outra puxou o fio da conversa, e ela conhecia os vampiros da Anne Rice, e ouvia rock compulsivamente, e adorava espresso curto, e cheirava tão bem, e era interessante. Tudo nela era vermelho ouro, como seus cabelos e pêlos e cílios – a voz, o sorriso, os gestos, a maneira como olhava para ela – e ela se pegou imaginando seus pelos pubianos, se seriam acaso vermelhos e perfumados como ela era. O pensamento percorreu seu corpo como eletricidade, e seus pêlos se eriçaram de repente – e ela corou. Se a outra percebeu, não disse nem deu a entender, mas a atmosfera ficou carregada de energia sexual imediatamente. E ela não quis pensar, não podia racionalizar aquilo – e convidou-a a participar de sua pequena celebração. A outra sorriu, e até seu sorriso parecia reluzir – era ouro e escarlate.

Ela foi até a geladeira buscar o sorvete - “mamãe está aqui, querido” – enquanto a outra pagava a conta. Foram juntas ao seu apartamento. Caminhavam sem pressa, mas havia uma urgência surda, uma excitação crescente entre elas, e ela já sofria os efeitos da angústia, seus batimentos acelerados, a respiração curta – e quando chegaram ao apartamento, ela não conseguia encontrar a chave dentro da bolsa. Ela ria nervosa, e então a outra tocou de leve sua mão, sorrindo:

- Não tenha pressa, eu não vou a lugar nenhum.

Entraram no apartamento em silêncio, como se todas as palavras tivessem ficado do lado de fora. Entreolharam-se, e ela quebrou o silêncio, tensa, e levou as compras para a cozinha. Pôs o sorvete e o espumante no freezer, respirou fundo e voltou para a sala. Encontrou a outra reclinada confortavelmente na chaise. Seus olhares se encontraram, e ela bateu de leve no assento, convidativa. E ela não resistiu.

Quando sentou-se junto a ela, seus dedos tocaram de leve o rosto da outra, sentindo pela primeira vez a textura daquela pele acetinada. Ficou hipnotizada por seus olhos, ali tão próximos, piscando com aqueles cílios longos e luminosos, e sua respiração falhou um compasso. A outra aproximou-se lentamente dela, seu rosto roçando de leve o dela, o perfume e o calor de seu hálito envolvendo-a, seus lábios tocando suas faces em pequenos e delicados beijos, embriagando sua mente, sua alma, até que por fim tocaram seus lábios – e aquele beijo prolongou-se indefinitamente, enquanto provavam o néctar da saliva uma da outra. Tocavam-se num ritmo lânguido e constante, ela ainda tensa, sem saber exatamente como se comportar.

- “Você é virgem, não é?” – a outra perguntou, adivinhando. Ela apenas consentiu, acenando com a cabeça, constrangida por um minuto, achando a afirmação ao mesmo tempo absurda e verdadeira. “Você só precisa relaxar, deixar as coisas acontecerem naturalmente. Eu quero você, você me quer. O resto não importa.”

- Vamos para o meu quarto, então? Ela convidou, e a outra assentiu.

Sentaram-se na cama, e juntas, recomeçaram a exploração. Era incrível para ela imaginar que aquilo nunca tinha lhe acontecido e de repente nada parecia mais natural. Aquelas mãos macias que a tocavam tão suaves e firmes - como devia sempre ser – aqueles dedos encontrando os caminhos de seu corpo por sobre o vestido, a língua lisa e úmida lambendo seu pescoço, sua boca, seus olhos, e ela sorrindo - as duas sorrindo – e se permitindo a intimidade daquele momento. Cada peça de roupa despida devagar, os olhos dela nos seus, e em seu corpo – e ela brincando de espelho, copiando a outra, sua inexperiência compensada pelo desejo, desejo de ouro e escarlate, vermelho fogo de sua língua quente em seus mamilos, vermelho brasa dos pelos pubianos dela, vermelho carne de seu sexo incandescente sob o toque delicado e preciso dos dedos dela, de sua língua, de sua boca faminta devorando, explorando cada dobra de pele, cada milímetro de mucosa – nem forte nem débil: exata. O gozo veio em ondas vigorosas, subindo por dentro do sexo e explodindo em sua garganta, um gemido aflito de quem deseja dar o que recebeu, e ela sentiu-se encolher e expandir-se, como um coração que pulsa, a mão dela fechada sobre o seu sexo, como se pudesse conter ali a explosão das ondas do mar sobre os rochedos do costão.

Ela então a beijou, e a boca tinha o gosto do seu sexo, e ela suspirou profundamente. Sentou-se entre suas pernas, a bunda dela roçando-lhe o sexo, aninhou-se em seu abraço, e pegou suas mãos. Beijou cada um de seus dedos, e envolveu os próprios seios em suas mãos. Ela começou a beijar a curva delicada do pescoço dela, a penugem de ouro e cobre eriçada sob o toque de seus lábios como um convite aos seus beijos e carícias. Apalpou os seios dela, sentindo atenta sua forma e textura, querendo aprender aquele corpo, decorá-lo. Daquele ângulo sobre o ombro direito dela podia ver os pelos vermelhos de seu púbis – tão perfeitos e lindos como ela imaginara – e percebeu que eles se abriam úmidos, e quis conhecer seu gosto como ela conhecera o seu. Suas mãos desceram pelo vale da barriga dela, e ela acariciou aqueles pelos, a respiração e o coração contidos ao som de seus gemidos, e deslizou seus dedos pelo sexo dela, os lábios molhados de tesão, o clitóris firme, pulsante, toda aquela secreção tornando a sensação de toca-la ao mesmo tempo excitante e deliciosa. Ela continuou tocando seu sexo com uma das mãos, enquanto levava a outra até sua boca, provando o gosto dela, descobrindo em seu palato o sabor que imaginara antes, ainda na mesa do café. Sussurrou um “você é tão doce” ao pé da orelha dela, mordendo o lóbulo delicadamente. A respiração dela ofegou e a outra dobrou o corpo num espasmo de gozo, mas ela não tinha desistido – “quero provar o teu gosto novamente.”

Beijou a nuca dela, sua boca, seus mamilos, e finalmente seu sexo. E pensou em tudo que gostaria que os homens fizessem quando estavam naquela situação. “Não vai ser nada difícil, pelo contrário”, ela pensou – e deu início à exploração. Com sua língua e sua boca tocou cada pedacinho escondido do sexo dela, enquanto ela pedia, implorava que continuasse. E era uma explosão de vermelhos sob suas pálpebras semicerradas, vermelho ouro, carmim, escarlate, vinho, cobre, sangue! Precioso sangue, que gritava em suas veias o desejo por aquela mulher vermelho ouro, ela toda como uma jóia inesperada, como um presente por seu mau comportamento, por seu bom comportamento, por seu não comportamento. Eram só as duas no mundo inteiro, o universo sob as águas do dilúvio e elas duas fazendo amor como se sempre o fizessem, como se fossem uma mesma pessoa em cores diferentes – ela tão castanha e acobreada, a outra tão branca, vermelha e dourada – como num catálogo de uma coleção do Antonio Bernardo: uma jóia em duas versões.

Não saberia dizer por quanto tempo ficaram ali, primeiro satisfeitas, depois insatisfeitas novamente, então famintas e novamente saciadas – uma da outra, a outra de si, as duas de espumante e fois gras.

Não saberia dizer por quanto tempo esperava por aquilo. Nem se aquilo era o que ela estivera esperando. Não saberia mais o que dizer de si. Sentia que devia abandonar todos os rótulos: não era hétero, nem lésbica, nem bissexual. E quando acordou no dia seguinte, aquela cabeleira vermelha deitada sobre seu ventre, a luz do dia infiltrando-se pelo quarto - por entre as dobras da cortina - revelando a luminosidade da pele dela, o perfume dela impregnado em sua pele, as duas partilhando ainda a mesma cama, o mesmo ar, ela teve uma epifania.

Era uma mulher apaixonada por uma deusa de ouro e sangue.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Outsider

Numa família de políticos, um inocente.
Numa família de artistas, um inepto.
Numa família de populares, um infame.
Numa família de iletrados, um erudito.

Numa família de informais, um solene.
Numa família de destros, um sinistro.
Numa família de toscos, um sublime.
Numa família de violentos, um pacifista.

Ficou de fora por não adequar-se à forma
E deitou fora o nome - e o renome.
Na balança, prós e contras

Não encontraram equilíbrio.
E seguiram paralelos - de encontro marcado
No infinito.




segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Eyes wide shut

Feche os olhos
Você não vai gostar de ver meu corpo dilacerado

Feche os olhos
Você não vai gostar de ver o que só em seus delírios mais insanos
Imaginou

Feche os olhos
Sacuda a cabeça
Peça, implore aos céus que seja apenas um sonho

Mantenha seus olhos fechados

(Talvez seja melhor assim)

Pensão completa

"Pode mandar ver! Aqui é tudo incluído, pensão completa!"

Era um sobrado velhíssimo, caindo aos pedaços, tábua corrida de pinho de riga - onde grassavam cupins felizes, comendo aquela madeira valiosa e extinta - teto sancado, lustres arruinados, pintura descascando. A imagem da decadência. Era uma reminiscência de épocas idas, quando a família tinha posses. Com a conservação adequada, seria de uma beleza atemporal - é bem verdade - mas agora só uma equipe de restauradores poderia trazê-lo de volta a seu áureo esplendor de outrora. Agora a família vivia de alugar os oito quartos espaçosos aos desafortunados que chegavam à cidade sem ter onde ficar.

Era a ironia perfeita. Ele fora parar justamente ali, naquele casarão tão decadente quanto ele próprio.

Acertou com o dono da casa o pagamento da primeira semana - "adiantado, por favor, sabe como é..." o homem ainda ensaiou, meio sem jeito. "Sei, sei sim. Perfeitamente", respondeu, entregando-lhe o dinheiro enquanto ia fechando a porta, sem fazer cerimônia. Encostou-se na porta fechada, e fitou longamente o espaço em que se confinaria nas próximas semanas - ou meses, quem poderia dizer? Era um bom quarto, sem dúvida tinha servido ao casal, no passado. Eles quase não alugavam aquele quarto - como era uma suíte, ficava mais caro. A maior parte das pessoas que chegava ali não podia pagar o que eles pediam pelo quarto, e ele imaginava que pediam mais para evitar arrendá-lo - era uma maneira de preservar aquele cômodo, que já testemunhara a intimidade daquele casal já idoso. Provavelmente fizeram ali, naquele colchão, os filhos que os tinham abandonado à própria sorte. Aquela ideia marejou seus olhos e transpassou seu coração. "Por favor, por favor, não! Não procure identidade, isole-se! Isso não vai te trazer nada de bom." Deixou suas mazelas do porão da casa de seus pensamentos, e continuou a inspecionar o quarto. A cama de casal dominava o centro do espaço, sob uma das janelas do quarto - a que ficava de frente para a porta da entrada, uma cômoda com gavetas sob a janela de treliça voltada para o nascente, um armário do lado oposto. Não havia ali uma mesa, e ele teria que dar um jeito nesse inconveniente, cedo no dia seguinte. Na mesma parede da porta de entrada estava a porta do banheiro. Lá também havia uma janela - e ele agradeceu em silêncio ao arquiteto - a luz natural clareava os espaços mentais mais intensamente e ajudaria a organizar suas lembranças.

Foi por isso que se exilou: tinha a intenção de escrever suas memórias, contar sua história ao mundo - para que ela perdesse o significado, ganhasse um novo sentido, invadisse a vida das outras pessoas como uma obra de ficção. Ele acreditava que sua vergonha e humilhação perderiam a força com esse artifício. Ele acreditava que voltaria à vida, caso conseguisse criar a perfeita ilusão com seu romance ficcional "baseado em fatos reais". Ele acreditava.

E preferia não pensar no que aconteceria caso não alcançasse seu intento. Caso sua intenção fosse desmascarada por seus pares, seus irmãos. Caso não pudesse convencer a ninguém de que aqueles fatos nunca tivessem ocorridos exceto em sua imaginação.

Ele sabia o que precisava fazer. E decidiu que não esperaria nem mais um dia. Tomou um banho rápido e doloroso, esfregando diligente cada pedacinho de sua pele até que não restasse senão o cheiro do sabão. Vestiu uma muda limpa, e desceu até a sala de jantar, onde já estavam servindo a sopa vespertina. Não se sentou com os outros - haveria tempo depois para apresentações. Dirigiu-se diretamente ao anfitrião: "Senhor, preciso de uma escrivaninha."

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Insônia

Era insone contumaz. Não era eventualmente que passava noites em claro, e nem precisava fazer esforço para ver o Sol nascer. Na verdade, esperava que ele nascesse em sua vida - e por isso gostava de assistir ao seu espetáculo diário, como se o próprio ato pudesse fazer de sua vida um novo dia. Sentia que vivia uma longa noite. E pensava que esse era o motivo da insônia.

Nem se lembrava mais de quantas noites passara em claro, algumas vezes assistindo TV, a maior parte delas lendo. E nessas noites eram tantas histórias, tantas emoções diferentes, e o direito de colocar-se em outras vidas, igualmente fictícias - como a sua - e excitantes - mais diferente impossível. Vivia através dessas pessoas, suas aventuras tornando-se tão concretas e edificantes quanto o noticiário matinal, que lhe dava um sono danado. Dormia então, mas só por alguns minutos - a vida diurna era também uma armadilha, da qual não conseguira ainda escapar.

Admirava as pessoas em seu perfeito ciclo circadiano, a passagem do tempo estimulando sua produção hormonal, cortisol e serotonina em perfeita sintonia biológica, sono e vigília em perfeito balanço. Equilíbrio sempre lhe faltara. Equilibrava-se na corda bamba do tempo, enquanto esperava a sua vida começar.

Um dia, um dia como outro qualquer, o Sol nasceria diferente. Nasceria em seu interior, acenderia um fogo perpétuo e toda a espera teria valido a pena. Cada minuto de cada madrugada de cada semana de cada mês de cada um dos anos de sua vida insone se dissolveriam no calor daquele Sol interno, e ele queimaria amarras e libertaria sua mente para a vida, seu coração para uma sensibilidade delicada e sutil, sua visão estreita dos acontecimentos para uma nova perspectiva.

Até lá, permaneceria insone, distante. Mais que uma vida inteira do mundo dos homens e mulheres ao seu redor, mais que um momento de glória, mais que um instante de pânico, mais que a morte e o esquecimento. Até lá, marionete do tempo, viveria num compasso composto, dia e noite como planetas diversos, em sistemas planetários opostos, em galáxias distantes anos e anos-luz, no quebra-cabeças do espaço-tempo que existia bem ali, dentro de si.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Conhecimento

É um saber confortável, daqueles que te fazem sentir um calorzinho gostoso por dentro. Alguém ama você.

"Eu te amo". Era só uma frase estúpida, escrita num pedaço de papel ainda mais estúpido. Mesmo assim, sem que ela quisesse, a ideia fez morada em sua mente, e ficou lá, imersa em pensamentos, e foi tomando forma - como um saquinho de chá, que fica muito tempo na água quente e vai produzindo uma infusão cada vez mais encorpada, perfumada, densa e escura.

Desdobrou-se e deu crias em sua imaginação: quem seria? Seria um cara ou uma garota? Será que ela iria descobrir quem era? Ou ele/ela lhe diria? A curiosidade a estava consumindo, e lembrou-se de um momento distante, quando encontrou dentro de sua agenda adolescente um desenho do Garfield com um balão de pensamento que continha a mesma frase. E pensou também que a pessoa do passado - até hoje ela só desconfiava de quem poderia ser - tinha perdido uma oportunidade preciosa de felicidade. A pessoa do bilhete - no presente - iria pelo mesmo caminho?

E ainda assim, no anomimato de sua revelação, a tal pessoa estava enchendo de um colorido diferente os seus dias desde então, e ela olhava a sua volta com um sorriso nos lábios, palavras doces para quem quer que a interpelasse. Um amor assim não deve jamais ser descuidado. E devia ser um amor bem bonito, cheio de verdade e pungência - muitas palavras não ditas - e até trilha sonora!

E de pensar nesse amor, ela foi ficando mais bonita...


segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Aragem

Nem aragem. Dois dias e nem aragem. Todas as janelas do pequeno apartamento abertas. Escancaradas. E nem aragem.

Ela perdera a conta das horas de espera, sentada naquela cadeira de palhinha, debaixo do ventilador, rádio ligado bem baixinho, sussurrando ao pé de seu ouvido o noticiário local. Nenhuma notícia. Nem consolo, nem júbilo. Resta a espera. Não havia jeito de retornar no tempo, ou de fazê-lo passar mais depressa, e ela não encontra maneira de concentrar-se em nada. "É o calor" - pensa, e segue redigindo aqueles bilhetinhos mentais: "aqui, as horas se arrastam, e o calor é opressivo. O ventilador só dá conta de mover o ar de um lado a outro da sala-estufa", "o suor me brota por todos os poros, e eu posso sentí-lo enquanto se acumula sobre a minha pele, e escorre por meu corpo", "queria te contar algo de novo, ou até fazer um comentário espirituoso, mas meu cérebro está desnaturando." Todos assinados: "beijo, te amo."

Ela já tinha tentado dormir, mas o esforço fora em vão. A preocupação, a falta de notícias ou contato, e todos os desfechos possíveis se delineando em sua mente... Era impossível dormir, ela não sabia como fazer contato. Restava esperar. E ela o faria em vigília, escrevendo aqueles bilhetes mentais, reafirmando seu amor a cada novo recado, como um bálsamo, um elixir, um amuleto de boa sorte. Como se fazê-lo pudesse prevenir qualquer problema, impedir qualquer tragédia. Livrar de todo o mal.

Na geladeira, um pequeno pedaço de gorgonzola e dois ovos. No ármario, uma lata de molho de tomate e miojo. Muito miojo. Ela prepara um omelete com o queijo e os ovos, e um macarrão ao sugo com o miojo. Ela pensa que chamar de miojada seria mais apropriado, e esse pensamento traz o esboço de um sorriso aos seus lábios. E é só. Ela espera.

Desde o início sentia que aquilo não acabaria bem, e a angústia se acumulava dentro dela, a opressão do calor, as horas acordada... E a solidão.

O que teria acontecido? O que dera errado? "Aconteça o que acontecer, no terceiro dia você vai embora. Eu acho você." Ela ainda tentou argumentar, mas foi rechaçada. "Não, amor, não adianta. Você não pode se dar ao luxo de ficar me esperando. Quando amanhecer o terceiro dia, você vai embora. Eu sempre acho você. Você precisa confiar em mim. Vai dar tudo certo."

Adormece tombada no sofá, e é desperta pelo som do trovão. "Chegou a tempestade, e ele não veio". Amanhece. E é o terceiro dia. Ela se levanta, fecha todas as janelas, toma um longo banho frio. Come o omelete, joga fora o macarrão, junta tudo que é seu. E revista todo o apartamento, à procura de algo que tenha ficado para trás. O envelope caído num canto, entre o sofá e a parede os levaria a ela. Recolhe. "Penso nisso depois."

"Eu acho você."

Respira fundo. Sacode a cabeça, espantando os maus presságios. Sai, batendo a porta atrás de si. Todo aquele futuro ficaria para depois.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Walking backwards

Ela pegou a borracha. Permitiu-se ainda uma última lágrima. E pôs-se a trabalhar.

Abriu o caderno na última página, e não deu-se o trabalho de reler aqueles seus escritos. Sabia como tudo terminara. Sabia o que fazer para acabar com a dor. Lentamente, cuidadosamente. Imprimiu o mesmo afeto, a mesma atenção, o mesmo amor profundo e incabível de que se valera na construção daquela história para dar cabo dela. Ela os usaria também agora.

Com a borracha macia, foi apagando cada palavra dita, cada entrelinha daquele diálogo destrutivo final. Virou a página, e deu continuidade à tarefa. Com absoluta concentração, apagou os encontros incendiários em quartos de motel, as caminhadas lado a lado pelo parque, as sessões de cinema, os almoços e jantares, teatros, pistas de dança, afagos e afetos, dor e deleite. As palavras de amor ditas. E as não ditas. O amor oferecido - e nunca prometido. O amor possível. E o desejo pelo absoluto. As mãos que se tocavam e entendiam tudo, sem nem mesmo dizer palavra. O olhar e a completa aceitação do outro em si, como seu negativo - ela o negativo do outro. Tudo e nada ali, no caderno. E era só varrer dali o grafite, a borracha limpando os parágrafos, suas lágrimas esforçando-se para lavar o que restasse.

Página por página, transformou sua agonia em diligência, e agora não sobrara quase nada. O primeiro beijo, o primeiro encontro, o primeiro olhar. Como doeu correr a borracha por aqueles momentos felizes, e por que teimavam em ficar dentro de si? Da mesma forma como sentira-se angustiada ao iniciar o projeto, temerosa e insegura, por não saber se conseguiria fazê-lo direito, ela se sentia agora, enquanto terminava de apagá-lo.

Apavorada, percebeu então que o efeito desejado não fora alcançado. Sentia ainda a dor excruciante, a proximidade da morte, a angústia como um condor, as asas abertas sobre ela, assombrando, destruindo, magoando. Não podia entender. Se estava acabado, como sobrara tanta dor? De onde tal sofrimento?

Resolveu revisar seu trabalho, olhando enfim as páginas atentamente. E descobriu a resposta.

A borracha fora eficiente. Apagara os registros, completamente. Mas a força desse amor deixara marcas. No papel, no verso de cada folha.

No coração.


sábado, 21 de novembro de 2009

Regra # 3

"Eu sou um homem. Como mulher nunca fui exatamente um sucesso. E é por isso: sou um homem."

Enquanto dirigia para casa, no fim de mais uma semana de trabalho, ela pensava sobre os acontecimentos daquele dia, e mais precisamente dos últimos três meses de sua louca vida... E chegara a esta conclusão. Nunca ouvira falar de uma mulher capaz de fazer o que ela vinha fazendo, com regularidade, nas semanas que sucederam o congresso de Cirurgia cardiovascular em Amsterdã.

Ela estava acompanhando o marido. Ele era um cirurgião renomado, seus trabalhos publicados nas melhores revistas da área, havia trabalhado recentemente em uma colaboração internacional que desenvolveu uma nova técnica de transplante - e dessa vez iria palestrar. Ela sabia exatamente porque tudo aquilo estava acontecendo na vida dele: ele tinha suporte permanente. Sim, é um homem talentoso, genial até - mas quantos talentos são desperdiçados no mundo por falta de suporte? Quantos caras acabam abrindo mão de suas pretensões intelectuais, acadêmicas, profissionais, até pessoais pelo dever de prover a família, dar conforto e segurança à mulher e filhos? Ele chegaria onde chegou sem tê-la ao lado, segurando as responsabilidades familiares, domésticas, logísticas até? E dividindo a provisão, é claro - ela jamais poderia onerar a família...

Tudo isso pesava sobre ela - mas ela estava desistindo de queixar-se. Afinal, ele era um bom homem, um bom marido, um bom pai. A falha no quesito companheirismo - mesmo em se considerando todo o seu peso - não chegava a abalar a média dele. Era uma boa média, enfim. E ela já ouvira mais de uma vez de seus amigos que não se pode exigir demais das coisas, que as pessoas tem seus limites, e que ela devia aprender a lidar - e mesmo aceitar - os limites dele. "Ok, vocês venceram." Mas ele não deveria também saber ligar com os limites dela? Aceitá-los, até?

Era a noite do coquetel de abertura do congresso. Ela ficava esquecida nessas situações, flanando entre bandejas de canapés e prosecco, sorrindo quando solicitado, postando-se ao seu lado, a imagem da mulher perfeita - e aquele turbilhão de sentimentos e - porque não admitir, ressentimentos - dentro dela fervilhando, como a feijoada na panela de pressão, forçando passagem para fora pela tampa... E escapando suavemente, fazendo um chiadinho mimoso... "Arre, já deu!" Escusou-se do marido, balbuciou algo sobre dor de cabeça e saiu pela direita, como o Leão da montanha...

Sentou-se no bar do hotel. Precisava de uma dose de scotch antes de subir ao quarto. E então ela o viu - e o reconheceu imediatamente! Era um seu ex-namorado, eles já não se viam há alguns anos, ela não podia lembrar-se quantos. Ele se aproximou, conversaram, descobriram as novidades um do outro. E descobriram que nada daquilo importava. Não falaram sobre as sensações que estavam experimentando naqueles minutos de conversa, e não lhe pareceu conveniente continuar ali, dando bandeira no lobby do hotel. Desculpou-se com ele também, disse alguma coisa sobre ter um dia cheio no dia seguinte, e subiu - não sem antes beijá-lo. Ela tinha tentado o rosto, mas ele ofereceu a boca - e foi um beijo como os outros, do passado comum. Desvencilhou-se dele e subiu. Excitadíssima.

Não pode conter-se e masturbou-se no chuveiro, enquanto a água morna lambia seu corpo e a fazia pensar na língua dele pelo seu corpo, no esperma dele jorrando sobre sua barriga. Ficou louca de desejo, e sentia que ele provavelmente estaria naquele momento em seu quarto, fazendo a mesma coisa... "Ai, ele me tira do sério, esse homem. Como pode o tesão resistir tantos anos, quando a paixão já está morta - ou pelo menos adormecida..." agora não saberia mais dizê-lo. Deitou na cama, mas não conseguia dormir. Ficou agitada, e depois de rolar por alguns minutos, abandonou as tentativas e resolveu descer para a piscina. Deixou um bilhete para o marido: "Não pude dormir. Estou na piscina. Bj".

Mergulhou na água fria da piscina, arrepiou-se e permitiu que o corpo se adaptasse a temperatura. Deu algumas braçadas. E não conseguiu relaxar. Afundou e tentou manter a apnéia, o máximo possível. Veio à tona e encontrou seus olhos, fixos nela.

- "Não pode dormir?"
- "Não."
- "Nem eu..."

Ela observou paralisada enquanto ele entrava na água, descendo pelas escadas para não quebrar o contato visual. Ela sabia estar presa nele como uma mariposa, atraída pelo olhar penetrante da serpente. Não saberia evitá-lo. E então nem tentou.

Suas mãos tocaram o corpo dela com firmeza. Envolveu sua cintura e abraçou-a forte. Sua boca cobriu a dela e tirou seu fôlego. As mãos dele desfizeram o laço da parte de cima do biquíni, tocaram a pele dos seios, e os mamilos sentiram as pontas de seus dedos, depois sua língua - exatamente como ela se lembrava. Ele a virou de costas, e explorou seu torso e suas costas, as mãos percorrendo seus seios enquanto os lábios beijavam e sugavam a pele e as pequenas sardas das costas, a língua se insinuando em suas orelhas e os dedos acariciando seu sexo por sobre o tecido elástico do biquíni, e ela sentindo a rigidez do seu pênis forçando a base da sua coluna.

Como que desperta do transe, finalmente suas mãos tocaram o corpo dele, suas unhas bem cuidadas arranhando a pele de suas pernas, apalpando sem pudor o sexo dele, deslizando a palma da mão pela barriga e passando os dedos por dentro da sunga, acariciando sua glande com a palma da mão e ouvindo seu gemido de prazer ao seu toque. Ele retribuiu tirando seu biquíni e tocando o sexo dela. Ele gemeu e sua respiração ficou mais ofegante quando percebeu a que ponto sua excitação havia chegado. Molhou seus dedos dentro dela e provou seu gosto.

-"Você ficou mais gostosa ainda... Preciso sentir esse gosto na minha língua inteira..."

E ela não protestou quando ele levantou seu corpo até a borda da piscina, deixando o sexo dela na altura da sua boca. Ele era um especialista em sexo oral naquela época em que se conheceram, e ela não podia mais esperar para sentir seus lábios e sua língua dentro dela, lambendo, mordiscando, comendo... Ele parecia ouvir seus pensamentos, e a chupava com tanta perícia que ela gozou quase instantaneamente.

Os olhos dele procuraram os dela, fixando-se neles. Sem dizer palavra, sustentou seu corpo pelos quadris, e a deslizou, as pernas abertas, para a penetração vigorosa, o seu pênis tão duro que ela sentia sua pulsação dentro dela. Não demorou muito ele também gozou, num jorro veloz, o pênis encostado em sua barriga, espalhando sêmen por sobre seu abdome.

Ainda ficaram ali, imóveis, curtindo o momento, mal respirando. A ela parecia que aquilo viera bem a calhar - e não havia a menor necessidade de conversarem sobre o tinha acontecido. Ele quebrou o silêncio levantando-se, enrolando o corpo numa toalha e pegando um roupão para ela.

- "Quer me encontrar de novo, no Rio?"
- "Por que não?"

Então trocaram telefones, ela lhe disse que só estaria de volta dali a duas semanas, ele voltaria no dia seguinte - e despediram-se com um beijo suave, "beijo de aeroporto" - ela pensou.

Ficou ali por mais alguns minutos, depois levantou-se também, para subir. Descobriu que seu biquíni não estava lá. "Cretino, levou um souvenir..." Rindo com a ideia, foi para o quarto, tomou um banho morno e deitou ao lado do marido, que nem se mexeu. Ela pensou no que o namorado dissera, antes de ela contar sobre a viagem: "ele te trata como se você fosse um bichinho de estimação, como um peixe, a quem nem ao menos se precisa demonstrar afeto! Eu não sei como você consegue viver com ele! E agora mais essa: Lua de mel! Você é uma Pollyana mesmo..."

É, ela tinha um namorado... E isso ainda sublinhava com um marcador luminoso a sua "masculinidade". Era nisso que pensava agora, e fora nisso que pensara naquela noite em Amsterdã, antes de entregar-se ao sono.

Ela estava perdidamente apaixonada pelo seu professor de canto. Havia muito tempo que não cantava, e resolveu entrar na aula de canto para relaxar, ter um hobby. E lá estava ele, o único homem capaz de fazê-la sentir-se ao mesmo tempo tudo e nada. Nunca se sentira insegura a respeito dos sentimentos de um homem por ela. Até conhecê-lo, apaixonar-se, seduzi-lo - e deixar-se seduzir. Com ele, ela vivia numa montanha-russa de emoções desenfreadas. Ele era tão casado quanto ela, e inicialmente ela tinha pensado que esse era o "ingrediente X" do possível romance. Assim ambos estariam protegidos - os dois tinham tudo a perder... E, no entanto, ele fazia estragos constantes em sua auto-estima, jogava em sua cara as coisas que ela escondia até de si mesma! E ela tornava sua vida conjugal um problema. Ele lhe dizia que agora os pequenos conflitos domésticos pareciam terríveis, as discordâncias abriam abismos entre ele e a mulher, e que ele, que sempre se sentira solitário - onde quer que estivesse - agora sentia-se completo, porque ela o fazia sentir-se completo. Eles tinham tantos conflitos... Ela sentia que não podia ser feliz com ele - e jamais seria feliz sem ele. Um impasse.

Viajara tão triste por ter que deixá-lo... Ele não entendia por que ela precisava ir com o marido, não queria que ela fosse, e disse que não iria mais vê-la se ela fizesse a viagem. Não havia como atender aquele seu pedido. Talvez por isso tivesse trocado telefone com o Regra 3. Era assim que chamava o ex, atual amante.

Com ele não há conflitos, as regras são simples e claras - ela liga, marcam o encontro, ela passa para buscá-lo, vão a um motel, transam alucinadamente, gozam muitas vezes, tomam um banho, ela paga a conta e o leva de volta. E vida que segue.

As deliciosas tardes que passam juntos a fazem pensar no namorado - "por que ele complica tanto?"- e no marido - "por que eu faço isso? Ele não merece." E ela sabe, lá bem no fundo, que não é essa a questão. É uma questão de poder. "Eu faço isso porque posso, porque sei como, porque entendo as regras. Faço porque sou um homem. E homens precisam disso."

A estrada passa rapidamente pela janela do carro. Logo estará de volta em casa. Beijará os filhos, o marido, jantarão todos juntos, conversarão sobre o dia - e ela sabe que vai sorrir antes de começar a contar-lhes sobre seu trabalho. E mais tarde vai fazer amor com o marido, e vai chorar no travesseiro, com saudades do namorado, a quem ama de verdade. Mas antes de fechar seus olhos para dormir, vai agradecer aos deuses. Pelo Regra 3.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Na chuva...

Queria correr para longe, queria sentir a chuva... A água da chuva, a lavar-lhe a alma, a escorrer-lhe pelo corpo provocando arrepios incontroláveis. Queria fazer amor com a chuva.

Não podia lembrar-se de quando aquele romance começara. Era ela ainda menina, e fugia para o quintal sempre que chovia. No princípio era somente uma brincadeira de criança: enlamear-se para que sua mãe quase enlouquecesse de raiva dela, entrando assim toda suja pela casa, tornando imprestável o tapete persa, presente do bisavô... Ela sabia que levaria umas boas palmadas pela travessura, mas era tão gostoso...

Com o passar dos anos, entretanto, a mania não a deixara. Ela ainda escapulia para o pomar do sítio da tia avó, e permitia que seus dedos afundassem na lama, que a chuva colasse o vestido em sua pele, revelando-lhe os contornos do corpo de mulher. Dançava na chuva como uma pagã, em louvação à divindade da fertilidade, cega e surda aos apelos maternos, aos olhares do mundo... E caía, quantas vezes caía, e rolava pelo chão de terra, terra molhada, perfumada e fértil como a sua imaginação. Sempre vira na chuva uma amiga, um amante, uma confidente, um cúmplice. Sempre a chuva para ela como um amigo, íntimo, leal.

E agora essa novidade: andava obcecada pela ideia de dividir seu ritual da chuva com ele. Porque ele não era um ele qualquer. Porque, em sendo ele, ela - a chuva, jamais se negaria, ou ressentiria.

Ele estaria lá, no sítio da tia avó, naquele fim de semana. E todas as previsões meteorológicas eram unânimes: chuva na madrugada. Nas noites que precederam o fim de semana, ela acordou banhada em suor, os sonhos que povoavam a sua imaginação, seu inconsciente, impublicáveis.

Ele chegou na sexta. Já era quase noite, e a chuva o precedera. Por algum motivo inexplicável, todos os primos decidiram ir a Paty aquela noite - e tinham saído uns quinze minutos antes de sua chegada. Ela estava sozinha. Não quisera ir, não podia estar fora, precisava vê-lo chegar. E também, a casa não podia estar vazia, o amigo tinha que ter quem o levasse até eles. Então, resolveu-se que ela ficaria. E pronto. Foi o fado.

Ela estava no pomar quando ele chegou, sentada no chão de terra, encharcada e enlameada até os ossos. Ela tremia, seus lábios roxos e suas mãos doloridas pela água fria. E ela adorando cada instante. Ele pensou em despertá-la do transe, mas preferiu observá-la de perto, oculto por uns arbustos. A lua já atravessava as nuvens menos densas, e sua luz diáfana conferia um colorido onírico aquela cena - a moça que se entregava à chuva parecia saída de um conto de fadas, e mesmo assim era tão real...

Ela percebera sua presença, mas resolveu permitir que ele a observasse. Como poderia negá-lo? E era a única maneira de saber se ele entenderia. Então, depois de alguns minutos, ela voltou-se para ele. Sabia exatamente para onde olhar, e, ao perceber que havia sido descoberto, ele corou violentamente. Por sorte, ela não poderia sabê-lo. E no entanto, ela não se mostrava assustada, ou tímida. Ela o esperava, ele agora sabia. Ela sorriu, e seus olhos o convidavam a chegar perto, a participar daquele seu momento. Tão transparentes, tão claros, e tão irrecusáveis...

Aproximou-se lentamente. Temia que aquele quadro se dissipasse por completo se fosse descuidado. E não disse palavra, pois palavras eram mesmo desnecessárias. Suas mãos a tocaram de leve nos ombros. Ela deu uma risada e o derrubou no chão. Ele ficou ali, estatelado no chão escorregadio, a olhá-la, incrédulo. E ela pousou os lábios nos dele, à princípio suave e em seguida poderosamente, a força de seu desejo subjulgando a última gota de recato que lhe restara, a chuva lavando todas as máscaras que se colocaram entre eles.

Ele devolveu-lhe o beijo na mesma intensidade. E, como num balé ensaiado à exaustão, suas mãos percorreram os corpos um do outro, sem pressa, traçando os caminhos do desejo com terra e saliva em suas peles. Ela, encantada, mergulhava em seus olhos, em sua boca; sugava da fonte todo o seu amor, que até momentos atrás estivera oculto. Ele, febril, queria sentir cada centímetro quadrado da sua pele, marcá-la como sua, seu amor confundindo-se com seu desejo.

E aquele luar filtrado iluminava os corpos terracota, as unhas dele cravadas em seus quadris, a grama pontilhando de verde a pele alva manchada de barro vermelho, as roupas dos dois já largadas pelo pomar, demarcando a trilha dos amantes da chuva. Na clareira, onde o luar dominava, finalmente consumou-se o amor, seus corpos como um, ele pesando sobre ela, ela cedendo feliz à sua própria sedução. E a chuva testemunhando o milagre que se fez ali, abençoando como um deus pagão seus dois adoradores.

E para ela o amor se fizera a três: ela, ele, e a chuva.

No dia seguinte, quando o Sol pôs enfim a cara larga e ofuscante no céu, encontrou os dois adormecidos no carramanchão, e quem visse de longe acreditaria serem a escultura de amantes: seus corpos ainda cobertos de terra formando um conjunto harmonioso.

Acordaram, entreolharam-se e sorriram. Sabiam que nada mais seria como antes. E não poderiam estar mais felizes. Se houve algo a ser dito, a coreografia do amor tornara desnecessário. Ele a amava, ela o amava. Ponto.

Até a próxima chuva.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Confissão

Acordei de um sono sem sonhos, agitado pelas preocupações que não me pertencem.

Em algum momento da noite, senti teu cheiro bem próximos às minhas narinas, e foi insano, como se você estivesse realmente aqui. Já não está. Tenho a sensação de que teus olhos me estão fitando, de que, se de repente abrir os meus, você vai estar a centímetros de distância, me olhando e fazendo beiçinho, carinha de pidão... E fico até com medo de me acordar totalmente.

Já é dia. A porta da manhã se escancara sobre mim, inevitável, e eu preciso ir. Tenho uma longa jornada pela frente. A água fria do chuveiro ajuda as células a despertar, a acompanhar a consciência - esta, desperta há horas. O sabonete deslizando pela minha pele, seu perfume insistente tentando roubar o teu cheiro de mim. Resisto, mas dura pouco, e de certa maneira agradeço à espuma macia, ao perfume de figos e cupuaçu, por me libertarem da sensação do teu toque, do cheiro do teu corpo - mesmo que somente durante os breves minutos que dura o banho.

Vou trabalhar, ainda preocupada. Onde andas? Como estás? Para cada pensamento uma sentença definitiva: "você sabe que isso não te cabe..." Que me importa? É só no que penso hoje, enquanto me movo através do dia como um avatar que, num videogame manjado, pula todos os perigos e pega todos os prêmios - mas já nem te emociona.

Talvez porque hoje não haja motivo. Sinto o teu cansaço, sinto a tua tristeza, eles me encantam e ferem igualmente, e eu quero tanto te tocar, te consolar, e é como se estivesse presa em uma redoma de vidro temperado, de onde não consigo escapar, de onde minha voz gritada não pode chegar aos teus ouvidos. E você se afasta, e eu grito, e canto, e choro, e chamo: "me espera, eu tenho uma confissão a fazer!" E você se vai...

Eu sei - that's just the way it is... Mas eu quero confessar o inconfessável. A confissão ficou retida pela redoma. Um dia, um dia sem pressa, eu vou fazê-la ao pé do teu ouvido. O teu mundo vai tremer um bocadinho, como um pequeno abalo sísmico daqueles que nem é percebido pelas pessoas, e marca 0,5 na escala Richter. As tuas placas tectônicas vão se acomodar em torno do teu coração, da tua mente - e você seguirá adiante, o pedaço do meu coração preso entre os dentes balançando displicentemente sendo levado como um troféu. Inabalável.

E o mel que escorre dos meus lábios, espesso e cristalizado, a luz que transborda de meus olhos, quente e brilhante - a minha dádiva - são o que de mim ficará intacto na tua lembrança.

sábado, 31 de outubro de 2009

E.E.Cummings



i carry your heart with me

i carry your heart with me (i carry it in
my heart) i am never without it (anywhere
i go you go,my dear; and whatever is done
by only me is your doing,my darling)
i fear
no fate (for you are my fate,my sweet) i want
no world (for beautiful you are my world, my true)
and it's you are whatever a moon has always meant
and whatever a sun will always sing is you

here is the deepest secret nobody knows
(here is the root of the root and the bud of the bud
and the sky of the sky of a tree called life; which grows
higher than the soul can hope or mind can hide)
and this is the wonder that's keeping the stars apart

i carry your heart (i carry it in my heart)



terça-feira, 27 de outubro de 2009

Lusco-fusco

Então era verdade.

Respirou fundo - não tinha mais nada a temer. Seus olhos fundos fitaram a escuridão do quarto como se fosse dia claro. Via nos contornos e volumes camuflados na penumbra as cores dos objetos familiares, e era como se sua imaginação pudesse acender a luz do recinto e revelar-lhe os matizes como que por mágica.

Mas estava escuro, era o cair de mais uma tarde de terça-feira, e sua vida estava passando muito rapidamente. Via um borrão de púrpura encobrindo suas lembranças da última semana, do último mês, o ritmo frenético da corrida contra o relógio, a semana de provas, os resultados, a comemoração - finalmente médico, agora residente, depois, com sorte e perseverança, quem sabe! - e de repente a freada brusca: era verdade.

Aquela comemoração foi o começo do seu fim. Ela apareceu na porta do diretório acadêmico, linda e etérea, como sempre. Era fim de ano - meu Deus, fim de ano! - e ainda assim ela apareceu. Seus olhos tinham a mania de encontrá-la em qualquer lugar, eram arrastados para ela. Mas nunca tinha encontrados os dela a fitá-lo. Pelo menos não daquela maneira. Ela o estava encarando. Devorando. Com os olhos. Ah, aqueles olhos! Quanto estrago pode uma só mulher operar no mundo com um mísero par de olhos? Depende de que olhos são esses, e de como essa mulher - a dona dos tais olhos - sabe usá-los... E essa cretina sabia. Olhava como se sempre o tivesse feito daquela maneira, como se nunca o tivesse desdenhado na vida. Olhava ainda como se ele fosse a oitava maravilha do mundo, e como se nunca antes os tivesse ela pousado sobre ele.

Agora, o mal estava feito. Ele pausou em sua mente o momento em que ela se voltou para ele, e reviveu em slow motion sua ascensão ao paraíso: ela caminhando em sua direção, sua boca ávida cobrindo a dele, seus lábios deixando marcas vermelhas de batom sobre a pele dele, suas unhas lanhando a pele dele. Respirou fundo mais uma vez, mas não acelerou a lembrança. Já que cairia por ter cometido aquele erro, queria rememorá-lo à exaustão, e revivê-lo perfeitamente.

Ela estava ali, em seus braços. Encostava-se a ele como se sua vida dependesse disso, como se só os seus batimentos cardíacos pudessem fazê-la viver. Pediu que ele a tocasse. Não, ela exigia, fervorosamente: "Eu quero você, Eugênio. Quero que você me toque. Quero que você me tenha. Quero ser sua." Todo o seu corpo parecia reforçar suas súplicas, trêmulo e ofegante. E ele não poderia negar-lhe nada - nem a própria destruição.

Todos os seus sentidos, alertas, indicavam que aquilo era uma cilada. Mas o sentido do tato gritava, e suas mãos percorreram aquele corpo que as exigia como se não houvesse outra alternativa. E não havia. Seu corpo mesmo já gritava por ela há anos, e não era agora, em seu momento de júbilo, que ele se negaria aquele prazer. Em meio ao torpor alcoólico, um por um seus colegas e amigos deixaram a cena, enquanto ele mandava todos embora e jogava no chão as revistas, copos e garrafas que estavam sobre a mesa do D.A. - seria ali mesmo. Aquele parecia o cenário perfeito. Afinal, quantas vezes ela já o desprezara ali? Quantas vezes recusara seus convites diante daquelas mesmas pessoas que ele dispensava naquele momento? "É aqui mesmo, sua bandida" - ele pensou. E a deitou sobre a mesa molhada de cerveja, entre restos de salgadinhos e aperitivos diversos. Rasgou-lhe a meia calça, na tentativa vã de tirá-la. Ela riu - e aquele riso foi para ele mais um desprezo, e ele resolveu que não ia mais ser bonzinho. Junto com o resto de dignidade, ele engoliu as palavras de amor que pensara sussurrar-lhe ao pé do ouvido. E, ao invés de fazer amor com ela, ele simplesmente a comeu.

Pode parecer irrelevante, mas aquilo destruiu Eugênio por dentro. Comê-la era a última coisa que ele imaginava fazer na vida. Mas foi assim que aconteceu - "A primeira vez que eu e sua mãe transamos, meu filho, eu comi ela! Não, não foi amor não! Foi uma foda!"

Esse pensamento cortou o flashback - um corte seco e definitivo. Corte de katana.

Era verdade. Aquela foda atrapalhada e violenta, aquela foda ressentida e maldada - aquela foda gerara em seu ventre uma vida. E ele, que sonhara por seis longos anos em conquistar o amor daquela linda e inatingível criatura, via-se agora unido a ela pela obrigação de encarar uma responsabilidade. "Ela está grávida, Geninho. Todo mundo sabe que você comeu a Regina naquela noite. O filho é teu, cara." Ele ainda podia ouvir o Altamiro soprando aquela sentença na sua cara. "É teu e pronto! Mesmo que não seja..." E as risadas daquele amigo da onça filho de uma rameira ecoando em seus ouvidos pintavam de vermelho sangue e noite escura a aurora de sua nova vida de residente do hospital geral de Patos...

sábado, 24 de outubro de 2009

Stairway to heaven

"As I climb the staircase - bare feet on the cold steps - I feel his gaze. Intense, and menacing... I’m his object of pray - and I love it."

Ele me olha. E parece estar me devorando. E não só a minha carne. Sinto pedaços da alma descendo por seu esôfago enquanto seus olhos – semicerrados – traçam veredas pelo meu corpo.

Ele é um desbravador. Um aventureiro. Seus caminhos já o levaram para longe tantas vezes... Mas ele volta. Aqui é o seu lugar de poder. E percebi dessa vez que seu poder ele drena de mim, da luz que escoa de meus olhos enquanto ele fala, lenta e languidamente, as histórias de suas andanças.

Talvez por isso ele volte.

Hoje não é diferente. A porta se abre para revelar um par de botinas enlameadas. As vejo antes de o todo – ele sempre chega quando estou terminando de limpar o chão... Já nem reclamo ou luto - ou fico indignada. Qualquer reação recebe a mesma resposta. O mesmo beijo bem beijado de quem sabe que jamais será rechaçado. E a culpa é minha.

Ele conta que caçou um javali, que escapou por um triz do bote de uma serpente, que quase morreu na mão de uma quadrilha de ladrões de carga em Modiana... Ele conta histórias. É através de suas histórias que eu viajo. Eu. Sempre aqui, nessa pensão, na beira dessa estrada, no limite entre esse e o outro mundo.

Ele senta à mesa do canto, perto do balcão, e passa o resto do dia – e da noite – observando o entra e sai de clientes, enquanto eu anoto e entrego pedidos, cobro despesas e dou troco, recebo mercadoria e pago aos fornecedores. Ele, a garrafa de Paraty, o cigarro de palha. E o cheiro doce do fumo de rolo enche a atmosfera já enfumaçada do salão, e de repente nem meus pensamentos nem minhas pernas conseguem manter seu rumo. É como um feitiço. Ele fica cantando sem emitir som alguma mandinga – e eu fico incapaz de mandá-lo embora.

Não tem por mim apreço nenhum em particular. Some por meses e não manda notícias. Quando morrer, não ficarei sabendo. Mas vou sentir sua falta o resto da minha vida. E ele nem dará por minha falta, se por acaso voltar um dia e não me encontrar aqui. Vai arrebatar quem quer que esteja limpando o chão.

Ele sempre fica no mesmo quarto. Se estiver ocupado, ele pede que a pessoa troque – e é sempre tão persuasivo que nunca houve quem lhe recusasse. É o quarto que fica no sótão dessa velha estalagem. Tem uma pequena janela de frente para o riacho que corre nos fundos – e para a destilaria de meu bisavô.

A primeira vez que ele me viu eu estava lá, no riacho, sentada nas pedras e lavando os pés na água gelada. Era lua cheia, e o terreiro estava prateado. O luar no céu e na água do riacho. Eu era pouco mais que uma menina. Ele ficou me olhando de lá, daquela janelinha, e desde aquela vez eu senti que ele estava me devorando inteira. Eu tive medo então, e tenho medo ainda. Sei que sou sua presa. E adoro sabê-lo.

Às vezes eu imagino que ele vai me levar consigo... Às vezes penso até em pedir. Mas temo demais o resultado dessa ousadia. Se ele por acaso gargalhar, e o seu riso perfurar meu coração? Eu caio dura, lívida, morta aos seus pés. Ele põe de volta o chapéu, passa por cima de meu corpo inerte e vai embora – ainda se rindo. Ele não tem sentimentos – ou talvez tenha. Mas não são por mim.

Volta porque a minha carne treme de desejo quando ele me toca, e cada vez que ele chega o meu corpo se abre como uma flor de maio. É uma dor aguda e ao mesmo tempo um prazer tão terno... E subo as escadas porque quero. Algumas vezes, antes do fim da noite, ele me segura pelo braço esquerdo, fecha assim com violência a mão direita sobre ele, e me puxa atrás de si, como se eu fora uma bagagem... E eu ainda finjo indignação, só prá ele dizer ao pé do meu ouvido que vai me comer de qualquer jeito, quer eu colabore ou não.

Às vezes parece transfigurado, fora de si. Olha para mim como se não me visse, beija meu sexo assim automaticamente, jorra seu gozo sobre o meu ventre e sai pela porta, transtornado como entrou por ela. Ele é febril nessas vezes, e diz coisas desconexas. Mas sempre me chama pelo meu nome. Elisa. Nunca me chamou de meu bem, nem de amor. Minha Elisa. E é isso que eu sou. Sou dele.

Outras vezes ele está inteiro. Nessas vezes me olha intensamente. E parece engasgado todo o tempo. Parece ter palavras presas na garganta – palavras que querem sair desesperadamente. Mas ele não deixa.

Esse homem existe somente para me torturar. E lá vem ele...

Nem olho duas vezes, nem discuto. Dou-lhe as costas e subo na frente.

Sinto seu olhar percorrendo o meu corpo, sinto o calor do seu desejo precedê-lo enquanto me segue. Sim, serei sua – ele o sabe, eu também sei.

Hoje, no entanto, vou prender algo dele dentro de mim. E ele vai me amar sempre – e para sempre terei algo seu para amar...

As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...