quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Mergulho

Era dia de lavar roupas, e já o perfume do sabão em pó lhe adentrava as narinas, mesmo antes de os seus pés tocarem o assoalho frio do pátio. Essa incumbência, embora dolorosa no inverno, era sua preferida no verão. O Sol por detrás das poucas nuvens já mostrava sua força e ela não quis perder mais nem um segundo. Desceu as escadas com o cesto de roupas sujas até o tanque antigo e profundo, e debruçou-se para tampar o ralo. Abrindo a torneira, inclinou-se para frente e permitiu-se o luxo de molhar os cabelos antes do trabalho. A água fria descia por seus longos fios anelados ao mesmo tempo que um filete teimoso encontrava o caminho contrário, escorrendo por sua nuca e descendo pelas costas. Arrepiada, pensou se havia melhor maneira de começar um dia quente como aquele. E não encontrou resposta.

Sorriu e levantou o corpo jogando a cabeça e os cabelos molhados para trás, displicente. Pegou as roupas no cesto e foi mergulhando uma a uma na água represada no tanque. Com a barra de sabão nas mãos, esfregou golas, colarinhos e punhos das camisas sociais do marido, barras das calças jeans e meias encardidas ficando alvas novamente. Era um trabalho braçal e miraculoso, e a força de seus braços ia transformando toda a sujeira em passado, deixando na água do primeiro enxague todas as impurezas, lavando todos os traços dos acontecimentos dos dias anteriores. As roupas limpas seriam o palco de novos eventos, e ficariam mais ou menos marcadas por eles conforme o dia e suas atribuições. E era reconfortante pensar que, ao menos para roupas, havia sim, redenção.

A sujeira grossa removida, agora as roupas brancas eram dispostas em bacias de alumínio brilhante, e iriam passar suas horas ao Sol, para clarear. As outras, coloridas, só ficariam um pouco mais de molho no sabão em pó - só para garantir a remoção de uma ou outra mancha renitente. Enquanto as roupas brancas quaravam ela se estirava também sob o Sol, lagarteando preguiçosamente. Dizia sua mãe que era para fortalecer os ossos e espantar o mofo. Ela não saberia jamais porque esse hábito ficara nela, junto com as palavras de sua mãe. Ela ainda via a mulher lavando roupa naquele mesmo tanque, enquanto ela menina corria atrás dos irmãos, jogando água em todos eles. Era talvez para lembrar-se dela que se deitava ali no pátio, sob o Sol.

Então passaram-se as horas, e o calor no pátio era abafado, como se ela estivesse num forno, dentro de um tabuleiro, assando. Levantou-se e começou a enxaguar tudo: primeiro as roupas coloridas, depois as brancas, e de repente havia uma pilha de roupas limpas no cesto que as trouxera sujas até ali. Torcidas e esticadas no varal, agora a faziam lembrar das festas de junho, das crianças dançando quadrilhas e da fogueira que se fazia ali. Outra lembrança no fundo da mente se agitava, uma lembrança mais íntima - e essa ela preferia abafar. Aquela tarde pretérita, recolhendo as roupas com o primo, as mãos se tocando, o calor que percorria seu corpo...

Ela mergulhou no tanque, sem perder sequer um segundo em devaneios. A água do último enxague, ainda fria, a despertou daquela recordação com um choque agradável por todo corpo. Era melhor deixar o passado ficar no passado...

sábado, 12 de fevereiro de 2011

A herança de Dona Saudade

Um dia como qualquer outro era uma boa definição. Aquele era um dia como qualquer outro. Ela estava sentada num banco de praça, as crianças brincando felizes nos balaços e escorregas, o caçula revolvendo a areia da caixa ferozmente, como quem caça tesouros, o do meio emburrado, sentado do lado oposto da praça, sob o Sol escaldante, braços cruzados sobre o peito, aquela expressão de infelicidade em seu rosto e os olhos transbordando pingos grossos de chuva. O mais velho se gabando para os amigos de suas façanhas acrobáticas nos brinquedos do parquinho.

Poucas mães como ela ali àquela hora da manhã, a maioria babás acompanhando as crianças de suas patroas. Num dia comum de semana, as mulheres de sua idade já estavam em seus trabalhos, talvez tomando a décima decisão do dia junto da terceira xícara de capuccino. Ela achava tudo engraçado e distante, como se estivesse assistindo aquela sucessão de cenas da escotilha de um ônibus espacial, mas sabia que era ao mesmo tempo parte da paisagem que apreciava calada. Levantou-se a caminhou devagar em direção ao do meio, sem distrair-se do caçula, que gargalhava no tanque de areia, espalhando brinquedos e terra molhada com seus movimentos desconexos. Ela olhava para o pequeno e sorria, enquanto seus passos a aproximavam no reflexo de si mesma sentado ali, sob o Sol da manhã, os olhos marejados observando sua aproximação.

Dos três filhos, ele foi o único que herdou sua melancolia, sua tendência para o drama, sua sensibilidade extrema. Ela preferia que nenhum deles fosse frágil como ela, que nenhum de seus filhos precisasse passar pela vida carregando o peso do mundo nas costas. Mas de algumas coisas não se pode fugir. Era ele o seu espelho, o filho com que mais se identificava - e ela o amava e lamentava por ele na mesma medida.

Pelo menos sempre saberia como lidar com aquilo. Sabia que não havia palavras de consolo suficientemente boas em situações como aquela. E sabia que morreria por um abraço silencioso. Sentou-se ao seu lado, estendeu seus braços em sua direção e permitiu que ele se aconchegasse em seu regaço, a cabeça virada para o lado direito, evitando seus olhos e posicionando a orelha sobre seu coração. Cada batimento cardíaco era um mantra de aceitação e amor. Era só do que ele precisava.

E ela sabia.

No futuro, quando se lembrasse dela, seus olhos interiores a veriam como a única pessoa no mundo capaz de entendê-lo completamente. A única que saberia ouvir suas conversas e histórias com total aceitação, sem nenhum traço perceptível de paternalismo ou afetação. Seus irmãos pensavam que conheciam a mãe. Ele sabia que ambos estavam errados. Ela era somente dele, sua totalidade em cada gesto banal do cotidiano transbordando um amor irretocável, seu perfume indelével e as cores da sua aura. Ninguém jamais soubera a sua mãe como ele.

E ela também sabia.


sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Feedback negativo

Ouví-lo respirar causava-lhe certo desconforto. Era como se de repente algo de sujo e imperfeito tivesse penetrado na sua pequena redoma de vidro temperado, e ela não podia tolerá-lo por muito tempo. Nem sempre fora assim.

Houve uma época que o som de sua respiração era o parâmetro de sua existência. Mas alguma coisa estava faltando, e por todos os deuses ela nem saberia dizer o que era! Algo nele tornara-se exasperante e imperfeito, e onde antes só havia alguém como ela agora havia um impostor. Talvez fosse isso. Talvez nem fosse ele, mas um dublê de corpo, uma réplica moldada à sua imagem, para confundí-la e ameaçá-la.

Se algum dia a sensação de incômodo a deixasse... Ah, ela seguiria em frente, como uma mulher adulta, cabeça erguida, nada para trás. Mas a verdade gritando em seus ouvidos era ensurdecedora e cruel. Aquilo, aquele mal estar, nunca acabaria. E a cada dia ele se imporia, até que ela tomasse a decisão e fugisse dali.

As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...