quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

... uma! (revisado em 04/01/2010)

Carina chegou em casa bem cedo, pão e leite para o café da manhã como um regalinho para o namorado. Ela sabia que ele estaria lá, esperando para levá-la ao trabalho. E é claro que sua disposição para ir trabalhar era mínima - para não dizer nula - e ele ficaria furioso se ela dissesse que não iria à livraria hoje. Afinal, ele estava esperando por ela fazia meia hora, e ela poderia ter tido a consideração de avisá-lo antes, assim ele não teria perdido a manhã quase toda de trabalho, blábláblá... e ela resolveu evitar o sermão dele e ir logo - sem abrir mão do desjejum! Depois de balada com XTC ela ficava faminta...

Ele olhou para ela intensamente. Ao invés de inquirir a respeito de seus whereabouts da véspera, ele simplesmente olhou para ela. Isso a enervava, porque ele era verdadeiramente imprevisível. Carina gostaria de poder decifrar aquele olhar profundo - e retribuí-lo dignamente. Mas não poderia fazê-lo naquele momento, e desistiu antes de tentar, abaixando os olhos enquanto sentia que ele a prescrutava em silêncio.

- Boa, a balada?
- É, não dá prá reclamar. Tá esperando a muito tempo?
- Não importa, querida. (Tá, até parece... ela pensou e não disse). De quanto tempo precisa para se arrumar?
- Uns 40 minutos... Se você estiver com pressa eu vou entender, Chris.
- Não, absolutamente! Eu espero. Por que você não toma um banho enquanto eu preparo o café? A gente ganha tempo. Que tal?
- Tá...

Foi para o banho incrédula. Não era do feitio dele ser tão gentil. Provavelmente queria pedir-lhe algum favor - e sabia o quanto aquelas pequenas delicadezas arrancariam dela whatever he wanted. Ela não tinha contado nada a ele dos sonhos de morte, e sabia que ele caçoaria dela por estar tão preocupada com isso. Eram somente sonhos, for Christ sake! Ele tinha essa mania de meter expressões em inglês no meio do discurso, era sua língua materna se intrometendo na conversa - e ela tinha absorvido essa mania bem rápido. Gostava de como soava, era charming... E de qualquer forma, ele era pragmático e não seria compreensivo se ela contasse os sonhos, e como se sentira, e sobre o que acontecera naquela noite, durante uma soneca no Íris. Deixaria passar. E resolvida, terminou o banho, vestiu-se e foi para o trabalho acompanhada dele.

A viagem de carro até a livraria foi bem demorada, o engarrafamento dava tempo para uma conversa, e Chris nunca enrolava. Straight to the point, ele pediu que ela posasse para ele. Era o trabalho final de seu curso de pintura.

- Você sabe, eu preciso amenizar o stress, e isso me relaxa, darling. Você faz isso por mim, will you?
- Sure, babe. Quando?
- Ah, semana que vem, sexta, how about it?
- Ok. Next friday it is.

A semana seguinte passou a galope, e de repente já era sexta. Dormiu sem muito cuidado todo esse tempo - ela esteve tão ocupada, foi a tantas festas, coquetéis de lançamento na livraria e estréias no cinema que nem sequer pensou nos sonhos-morte. Na noite de quinta foi ao shopping com as amigas, tomar um choppinho e falar da vida, chegou em casa tarde e foi logo dormir. Precisava estar bem disposta no dia seguinte - a pedido de Chris, o gerente da livraria lhe dera o dia seguinte de folga, para que ela pudesse posar para ele. Só acordou espontaneamente por volta das 10h, e foi tomar um longo banho de banheira. Estava sentada na cozinha, tomando café bem forte, quando ele chegou. Estava carregando o cavalete e uma maleta com as tintas e pincéis. Ela estava vestindo somente o roupão de banho, e Chris pediu-lhe que tirasse. Ela não imaginava que seria um nu, e aquilo a deixou muito excitada. Virou-se de costas para ele e deixou que o roupão escorregasse por seus ombros e costas, desnudando seu corpo roliço e macio em câmera lenta. A sessão de pintura começou com uma sessão de sexo selvagem, e só depois de satisfazer seu desejo ela deitou-se no sofá do terraço, na posição que ele determinara.

Então bateu aquele sono pós sexo, e ela permitiu-se deslizar para os braços de Morfeu...

Ele não vai me deixar olhar o quadro antes que termine. A maneira como franze a testa, concentrado no trabalho, é tão sexy... Me dá vontade de levantar daqui e atacá-lo novamente. Enquanto ele pinta, o mundo entra em colapso lá fora: vem da rua o barulho de tiros e bombas, eu quero levantar daqui e ir até a janela olhar o que está acontecendo - mas ele não me deixa mexer um músculo! Diz que o mundo pode até acabar que ele não dá a mínima, que vai acabar enquanto ele pinta. Eu peço 5 minutos para descansar da pose, ele é ríspido e nega. Então, ele caminha em minha direção, começa a pintar em meu corpo. No princípio faz cócegas, eu me retraio e acho graça. Ele sorri sem mostrar os dentes, e por um instante nos olhamos em silêncio. Mas de repente a brincadeira perde a graça, e sinto dor. Percebo apavorada que cada desenho feito por ele em meu corpo torna-se real. Ele desenhou uma fratura exposta em meu braço esquerdo, e agora estou sangrando e gritando, tão alto que até parece que o som não vem de mim... Os meus gritos se misturam aos da multidão em fúria na rua, e eu quero descer até eles para fugir de Christopher... Ele segura meu braço direito e lava com aguarrás a fratura, que desaparece como mágica.

Ele então desenha uma corda em volta do meu pulso, e do outro, e estou presa, as mãos amarradas às costas, impossibilitada de fugir porque amarrada a ele também. Ele desenha em meu rosto uma flor e uma abelha, e em torno de meu pescoço um colar de pérolas naturais - tudo se materializa. Estou assustada, e ele diz que eu posso ter tudo, ser o que eu quiser, mas que preciso mudar, me transformar em outra. Eu lhe digo que isso é impossível, que o que eu sou é mais forte que a minha vontade e seus feitiços. Ele mostra os dentes num sorriso sádico, e dessa vez não parece conciliador. Seus modos bruscos, suas mãos pesadas, ele procura na maleta um tubo de tinta vermelha, intensa. Jorra seu conteúdo sobre meu peito, e num instante o ar me falta, é meu sangue jorrando agora, me restam talvez uns minutos... Ele chora, e suas lágrimas são o solvente capaz de curar aquela ferida, mas ele se afasta de mim, o bálsamo de suas lágrimas molhando o avental de lona crua, o tapete de retalhos... Perco o controle de meus músculos, as forças me faltam, minhas pernas dobram sob o peso do meu próprio corpo. É o fim, é meu momento derradeiro. Eu lhe sopro um beijo, eu o amo - loucamente, apaixonadamente - mas não posso deixar de ser eu mesma para ser o que ele quer de mim.

Sinto que estou flutuando, sei que o sangue já não flui para o cérebro, meu rubro sangue, salgado e fértil, sangue coagulado sobre o acolchoado do sofá...

- Carina, você dormiu, meu anjo. Acorde, linda... Você escorregou no acolchoado, está arruinando a pose.
- O quê? Nossa, Chris, essa foi por pouco...
- De que está falando? It's nonsense, love. Come, deite-se aqui. Tenho uma pintura para terminar...
- É, você tem mesmo, mas precisa me despertar primeiro...

E durante todo o tempo em que fizeram amor, ela pensou, aliviada, que ele a tinha salvo. Mas nunca saberia direito de que. Sabia somente que gatos tem sete vidas, e que dessa maneira onírica e maldita sua natureza felina tinha chegado ao fim. Ela podia voltar a dormir tranqüila...



Nenhum comentário:

As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...