segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

- 3...

Nas noites em que sonhava com a própria morte, sentia tal diminuição de sua energia vital que era como se deveras morresse. E temia agora o próximo sonho, como se estivesse perdendo algo imaterial e seu a cada momento do sono. Ela vinha sentindo um sono anormal desde que sonhara com três episódios de morte - um mais disparatado que o outro - e arrastava-se pelo dia como uma sonâmbula, lutando como uma leoa para manter-se acordada.

Justo ela, sempre tão ativa e animada, presente em todos os embalos de sábado a sábado - dia e noite - sempre ligada, andava agora caindo pelas tabelas, o olhar perdido no espaço, sempre sonolenta. Já havia recusado três convites para sair só naquela semana! E as pessoas iam acabar desistindo de convidá-la, e acabaria esquecida, no limbo das listas de convidados das festinhas VIP a que havia se acostumado frequentar.

O namorado - se é que ela ainda podia chamá-lo assim, tão distante ultimamente, sempre dedicando sua total atenção ao trabalho, aos amigos, pouco tempo para ela - já tinha reclamado de sua ausência. E isso vindo dele era um sinal alarmante de que alguma coisa não estava bem. A mãe estava uma alegria só - toda empolgadinha - só porque tinha conseguido falar-lhe ao telefone por duas noites seguidas. E todas as suas energias dedicadas a impedir seus olhos de se fecharem... "Eu preciso ir ao médico, tomar uns complementos vitamínicos e umas anfetaminas... Ah, sei lá! Eu preciso é de balada!" Passou a mão no telefone e descobriu que tinha uma rave no Íris. Foi!

Dançou a noite inteira, dançou o namorado (ele que fique com os amigos), dançou a mãe (hoje a gente não bate papinho, mamãe!), dançou a sobriedade (hoje não!), dançou o fim do mundo - porque não estava morta. E cansou. Já devia ser quase dia - e o efeito do XTC se esvaía, e ela nem conseguia mais ficar de pé. Arrastou-se até o sofá do lounge, e lá caiu, adormecida quase que instantaneamente.

"Saímos do Íris, eu, minha amiga e mais três carinhas. Vamos até o apê de um deles, logo ali, na Saúde, ficar de bobeira - e claro que vai rolar alguma sacanagem. O lugar é escuro - fica na sombra de um prédio bem alto do outro lado da rua - e abafado. Essas características conferem uma qualidade angustiante ao espaço - e eu não me sinto confortável aqui. Um dos caras trouxe LSD, e ofereceu. Ela logo quis, eu passo, e num instante o cara e ela estão atracados num canto do sofá. Os outros dois vem sentar do meu lado, assistindo a pegação - e lá vem eles, para cima de mim. No início até que estava gostoso, eles são bem competentes na pegação - mas estou desconfortável, mais uma vez. Eu aqui, podia estar curtindo uma sacanagem bacana, e fico pensando no cretino... Ai, sei lá, estremeci e travei. Digo que não quero mais, que não estou mais a fim. E os caras piram! Começam a me bater de verdade, sinto o sangue escorrendo do meu nariz, na minha boca, no fundo da garganta - gosto e textura de sangue, meu sangue descendo do supercílio esquerdo turvando minha visão. Sinto o calor da pisada de um deles na minha barriga... E a minha amiga da onça lá, atracada com o cara. Eles me arrastam para o quarto e me barbarizam, cara... Eu nem sinto, acho que vou morrer, acho que eles estouraram uma artéria abdominal me espancando... A consciência está apagando, como uma vela dentro de uma cúpula fechada - estou indo, e ninguém vem se despedir... Eles só vão perceber quando estiverem satisfeitos. E provavelmente vão me jogar num lixão, numa caçamba qualquer...

Desperto aflita. Nem um arranhão. Provavelmente estou morta, e a mente continua. Não. Estou amarrada numa cadeira, amordaçada. Não posso pedir socorro. Os caras que aparecem não são os mesmos de antes, não sei onde estou. Eles me perguntam coisas das quais não sei. Onde está a droga? - que droga? Eu já parei faz tempos, agora só uso XTC, e mesmo assim na balada! - Eles me batem mais um pouco. Merda! Não sei de nada, não sei que história de droga é essa! Merda, onde está minha amiga? Ela me largou sozinha, e agora eu estou literalmente na merda! Só saio dessa bem machucada, ou morta. Esses caras vão me matar de tanta pancada... O inchaço no olho esquerdo me impede de enxergar direito, se alguém me achar viva nem vou poder descrevê-los precisamente... O que é aquele emblema na camisa dele? Merda, polícia civil! Agora ferrou de vez... Esses caras são piores que muito traficante - aliás, foi por isso que eu parei com a herô. Vou desmaiar, vou perder os sentidos. Acho que não aguento apanhar muito mais... Eles já me quebraram algumas costelas, eu tenho dificuldade para respirar - é, deve ter perfurado um pulmão. Porra, mãe, eu devia ter ficado em casa e papeado com você essa noite... Olha só o que eu fui arrumar para mim... É o fim da linha, mãe, tô partindo... E dessa viagem eu não volto, não posso te trazer souvenir...

Sinto o Sol morno do amanhecer no rosto. Abro os olhos. Estou deitada no gramado do jardim do pátio de entrada do prédio dele. Ele - deitado do meu lado - ri como criança, enquanto eu conto para ele o quanto eu apanhei dos caras por ter travado bem na hora H. Nós dois rimos muito. Eu digo que a culpa é dele, e mostro os hematomas. Nossa, como estão doloridos! E como foi que eu vim parar aqui? Faço força para ignorar essa indagação - sacudo a cabeça, mais uma vez. Eu quero me deixar ficar aqui, no teu abraço, amor. Tão gostoso, tão aconchegante... De repente, uma sombra entre mim e o Sol. E sinto a pancada dura e seca bem na têmpora direita. Caramba, quanto sangue! De onde saiu essa louca, amor? Você já a deixou faz o quê, dois anos? O que essa louca está fazendo aqui? Ai, porque você não faz nada, porque ela continua investindo contra mim? Olho para o lado: ele está inerte, caído do meu lado. Amor, amor, olha para mim, amor! Ele não pode abrir os olhos porque não está mais ali. E eu me esforço para continuar - mas ela não para de me surrar - e eu vejo tua mão estendida para mim. Eu aperto tua mão na minha. Fecho os olhos. Vou com você aonde você for..."

- "Carina, acorda Carina! CARINA!!!"

Ela abre os olhos. Está novamente desperta. Está de volta ao sofá do lounge. Morreu novamente, mais três mortes. "Agora só falta uma", ela pensa alto - e ninguém entende.

- "E ai, vamos ao apê desse carinha? Tô super a fim de uma pegação..."

Não, ela responde muda, balançando a cabeça. Precisa ir para casa, tomar um longo banho, pôr suas coisas em ordem. Não sabia quando chegaria a próxima morte onírica. Mas dormiria com mais cuidado dali para frente...

Um comentário:

nemezio disse...

Texto muito bom (mas cuidado com algumas pontuações). Entretanto, acho interessante como, quase 40 anos depois, as mulheres continuem se punindo quando decidem transgredir; algo que nós, homens, fazemos bem. A pílula nunca venceu a culpa.

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