terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Sete, menos três: quatro.

Inspiro profundamente. É o ar rarefeito, é o fim. É a hora, e se aproxima o exato instante, em que ouvirei as palavras que não ouso imaginar. Por hora, há contentamento em poder adiar por mais algum tempo - por alguns minutos ainda - o momento final. Eu adoraria poder seguir respirando esse ar rarefeito, e continuar viva. Sei, no entanto, que preciso de bem mais oxigênio para seguir consciente, e se insistir em permanecer nesse ambiente perderei a consciência - vou desmaiar, sei disso.

Mas a beleza que me envolve é como ópio, a adrenalina circulante tão aumentada que a sensação de prazer acaba por inibir minha natural cautela. Estou a 4.000 metros de altitude. Nunca - not even in my wildest dreams - imaginei que subiria tão alto. Sempre tive vertigem, sempre foi desconfortável olhar para baixo, perceber as proporções diminutas das coisas lá embaixo, no nível do mar - e pensar que tudo aquilo que vejo na distância é do meu tamanho... E agora, presa somente por uma corda e um mosquete num paredão de pedra, estou extasiada com a beleza que meus olhos alcançam, com a ausência de limites, com o céu a minha volta, com a certeza da morte, com a sensação de que estou voando. Vou decolar. E se meu corpo pendesse, bem agora? Será que a corda agüenta, será que eu vou conseguir? Falta tão pouco... E o ar rarefeito me faz sucumbir.

Quando acordo, estou numa máscara de oxigênio. Eles me dizem que foi por muito pouco, que eu não devia ter-me deixado ficar. Mal e mal escuto, um misto de agitação e delírio - e percebo que foi tudo um sonho, uma alucinação. O alívio é imenso - é claro que já começava a duvidar de minha própria sanidade - o que diabos estaria eu fazendo pendurada ali?

Descubro então, horrorizada, minha real situação: perdi muito sangue, estou numa UTI, já recebi quatro unidades de sangue O+, e os prognósticos não são nada bons... Médicos sussurram muito alto - talvez fosse melhor que falassem normalmente. Ouço a voz de minha mãe, seu sofrimento grita em meus ouvidos, ela quer saber se vou sobreviver. Os médicos não sabem dizer, ainda. Mas dizem que foi muita sorte que o socorro tivesse chegado tão rápido na estrada.

Percebo de onde vem a sensação de flutuar, voar, olhar de cima. De onde a vertigem e a náusea: estou olhando tudo de cima, estou pairando sobre a cena. Vejo meu corpo dilacerado, vejo os curativos, vejo os aparelhos aos quais estou conectada. Acho que estou indo, chegou a hora da minha partida. Será? Sinto-me ligada ao meu corpo, e ao mesmo tempo atraída para fora daquele ambiente estéril de hospital. Eu estava dirigindo. Eu dormi. Acordei com os faróis do caminhão. O carro foi lançado para fora da pista, capotou sei lá quantas vezes, costelas e pernas fraturadas, traumatismo craniano, edema cerebral. Ouço o médico dizer a minha mãe que, se eu sobreviver a essa noite, tenho chances.

Já não sei mais. Eu deveria estar sentindo dor física, mas toda dor que eu sinto é pelo sofrimento dela, suas lágrimas sem qualquer propósito vazando de seus olhos, de sua alma, de seu coração transpassado. Dói tanto... Ah, não, mãe, o que ele está fazendo aqui? Ela deve ter ligado para ele. Não contei para ela que ia terminar com ele essa semana... Eu o amo tanto, ele é tão importante para mim - mas não se importa. Ou pelo menos eu pensava assim. Ele parece tão transtornado, pálido, olhando para mim como se a minha morte tornasse sua vida impossível. Ele chega perto do meu corpo. Eu quero ouvir o que ele tem para me dizer.

E é aqui, nesse lugar de perda, que ele me dá eu que eu sempre quis! Quanto amor ele diz que sente, todo o amor que eu sempre soube que ele tinha para me dar - e nunca revelou. Porque logo agora essas palavras? Parecem brotar tão fácil de seus lábios, e no entanto jamais antes encontrei o conforto dessas palavras. Que vontade de ficar mais um pouco, de dizer a ele que também o amo, que vamos ficar juntos o resto da vida, que nada mais importa... E ela? Que vontade de abraçá-la bem forte, dizer-lhe que a amo, que seja forte e seque suas lágrimas, que vou ficar bem, que amanhã meus olhos vão estar abertos, olhando para ela... É irônico. Sinto um puxão para longe. É sutil, mas determinado. Estou indo, meu amor, estou indo, mãe. Queria muito abraçá-los, ficar com vocês. Já não posso, estou partindo.

Acordo numa poça de sangue quente, vermelho e vivo. Estou caída, no chão da sala. Ele me deu dois tiros na barriga. Uma das balas alojou-se perto da coluna. Se sobreviver, estou paralítica. Mas vou morrer, perdi muito sangue, meu fígado já era - e sinto o gosto de fel no fundo da minha boca. Adeus, meu amor, adeus. Eu sei que você só queria me assustar, sei que não era a tua intenção - de que adianta eu saber tudo isso? Estou partindo, meu amor. Beije a minha boca, prova da minha saliva pela última vez. Eu te perdôo, de verdade. Beije minha mãe por mim. Diga-lhe que quero você livre - quero sim. Quero que a tua vida continue, que tenha significado. De nada adianta julgá-lo - eu não voltarei à vida. Talvez seja culpa minha, talvez eu tenha merecido...

O despertador toca. São seis horas da manhã. Levanto sobressaltada. Estou viva, estou bem, estou inteira.

Foi só um sonho.


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