segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Pensão completa

"Pode mandar ver! Aqui é tudo incluído, pensão completa!"

Era um sobrado velhíssimo, caindo aos pedaços, tábua corrida de pinho de riga - onde grassavam cupins felizes, comendo aquela madeira valiosa e extinta - teto sancado, lustres arruinados, pintura descascando. A imagem da decadência. Era uma reminiscência de épocas idas, quando a família tinha posses. Com a conservação adequada, seria de uma beleza atemporal - é bem verdade - mas agora só uma equipe de restauradores poderia trazê-lo de volta a seu áureo esplendor de outrora. Agora a família vivia de alugar os oito quartos espaçosos aos desafortunados que chegavam à cidade sem ter onde ficar.

Era a ironia perfeita. Ele fora parar justamente ali, naquele casarão tão decadente quanto ele próprio.

Acertou com o dono da casa o pagamento da primeira semana - "adiantado, por favor, sabe como é..." o homem ainda ensaiou, meio sem jeito. "Sei, sei sim. Perfeitamente", respondeu, entregando-lhe o dinheiro enquanto ia fechando a porta, sem fazer cerimônia. Encostou-se na porta fechada, e fitou longamente o espaço em que se confinaria nas próximas semanas - ou meses, quem poderia dizer? Era um bom quarto, sem dúvida tinha servido ao casal, no passado. Eles quase não alugavam aquele quarto - como era uma suíte, ficava mais caro. A maior parte das pessoas que chegava ali não podia pagar o que eles pediam pelo quarto, e ele imaginava que pediam mais para evitar arrendá-lo - era uma maneira de preservar aquele cômodo, que já testemunhara a intimidade daquele casal já idoso. Provavelmente fizeram ali, naquele colchão, os filhos que os tinham abandonado à própria sorte. Aquela ideia marejou seus olhos e transpassou seu coração. "Por favor, por favor, não! Não procure identidade, isole-se! Isso não vai te trazer nada de bom." Deixou suas mazelas do porão da casa de seus pensamentos, e continuou a inspecionar o quarto. A cama de casal dominava o centro do espaço, sob uma das janelas do quarto - a que ficava de frente para a porta da entrada, uma cômoda com gavetas sob a janela de treliça voltada para o nascente, um armário do lado oposto. Não havia ali uma mesa, e ele teria que dar um jeito nesse inconveniente, cedo no dia seguinte. Na mesma parede da porta de entrada estava a porta do banheiro. Lá também havia uma janela - e ele agradeceu em silêncio ao arquiteto - a luz natural clareava os espaços mentais mais intensamente e ajudaria a organizar suas lembranças.

Foi por isso que se exilou: tinha a intenção de escrever suas memórias, contar sua história ao mundo - para que ela perdesse o significado, ganhasse um novo sentido, invadisse a vida das outras pessoas como uma obra de ficção. Ele acreditava que sua vergonha e humilhação perderiam a força com esse artifício. Ele acreditava que voltaria à vida, caso conseguisse criar a perfeita ilusão com seu romance ficcional "baseado em fatos reais". Ele acreditava.

E preferia não pensar no que aconteceria caso não alcançasse seu intento. Caso sua intenção fosse desmascarada por seus pares, seus irmãos. Caso não pudesse convencer a ninguém de que aqueles fatos nunca tivessem ocorridos exceto em sua imaginação.

Ele sabia o que precisava fazer. E decidiu que não esperaria nem mais um dia. Tomou um banho rápido e doloroso, esfregando diligente cada pedacinho de sua pele até que não restasse senão o cheiro do sabão. Vestiu uma muda limpa, e desceu até a sala de jantar, onde já estavam servindo a sopa vespertina. Não se sentou com os outros - haveria tempo depois para apresentações. Dirigiu-se diretamente ao anfitrião: "Senhor, preciso de uma escrivaninha."

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