sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Revelação

Isso é coisa que não se comenta. Talvez os amigos mais próximos já tivessem notado, ela não saberia dizer – e não se importava que percebessem, nem ficava pensando sobre isso. Tinha clareza a respeito de sua sexualidade – e uma curiosidade secreta por mulheres. Sua identidade heterossexual não se abalava com esse interesse, mas ela sentia que, se não houvesse uma oportunidade de experimentar uma mulher, ficaria faltando alguma coisa em sua história.

A oportunidade veio numa quarta-feira particularmente chuvosa, quando uma chuva torrencial alagou a cidade. Impedida de sair para o trabalho, resolveu perambular pelo bairro – as ruas normalmente ficam vazias em dias como esse, e ela preferia evitar multidões, quando possível.

Caminhou até o calçadão e desistiu da idéia na hora – era desagradável estar ali, ensopada e açoitada por ventos cortantes. Voltou pelo mesmo caminho, e entrou numa deli recém inaugurada. Adorou o mix de produtos e ficou ali, flanando entre as prateleiras e selecionando um fois gras aqui, uma mostarda dijon ali, um espumante brut acolá. Pronto, estava resolvido: seria uma celebração íntima a liberdade! Coletou na geladeira um pote de sorvete de doce de leite argentino e já ai ao caixa pagar, quando notou que no fundo da loja funcionava um café literário: as prateleiras recheadas de Best Sellers e clássicos da literatura cheiravam a livro novo – e para ela, aquele era o cheiro mais sedutor do mundo, seguido de perto pelo cheiro do café espresso bem tirado por um bom barista. E ali ela encontrou os dois, comungando naquele espaço aconchegante e charmoso. Um deleite! Devolveu o sorvete ao freezer – “mamãe volta para te buscar depois do café, querido” – e sentou-se numa das mesas. Pediu um espresso e uma fatia de torta de pecãs. Enquanto esperava, foi até a prateleira mais próxima, e pegou um vampiro de Anne Rice para passar o tempo – conhecia bem a história, mas gostava de ler e reler seus livros prediletos.

Estava ali, folheando preguiçosamente o volume e bicando o espresso curto, encorpado, e percebeu que estava sendo observada pela mulher sentada na mesa ao lado. Ela devia ter mais ou menos a sua idade, um pouco mais alta e era ruiva de verdade, o pacote completo: pele oliva, sardas cor de ferrugem, olhos castanhos muitos claros e até os cílios daquela cor vermelho dourada! Ficou tão impressionada com o inesperado da situação de acabou devolvendo o olhar, acidentalmente. Então a outra puxou o fio da conversa, e ela conhecia os vampiros da Anne Rice, e ouvia rock compulsivamente, e adorava espresso curto, e cheirava tão bem, e era interessante. Tudo nela era vermelho ouro, como seus cabelos e pêlos e cílios – a voz, o sorriso, os gestos, a maneira como olhava para ela – e ela se pegou imaginando seus pelos pubianos, se seriam acaso vermelhos e perfumados como ela era. O pensamento percorreu seu corpo como eletricidade, e seus pêlos se eriçaram de repente – e ela corou. Se a outra percebeu, não disse nem deu a entender, mas a atmosfera ficou carregada de energia sexual imediatamente. E ela não quis pensar, não podia racionalizar aquilo – e convidou-a a participar de sua pequena celebração. A outra sorriu, e até seu sorriso parecia reluzir – era ouro e escarlate.

Ela foi até a geladeira buscar o sorvete - “mamãe está aqui, querido” – enquanto a outra pagava a conta. Foram juntas ao seu apartamento. Caminhavam sem pressa, mas havia uma urgência surda, uma excitação crescente entre elas, e ela já sofria os efeitos da angústia, seus batimentos acelerados, a respiração curta – e quando chegaram ao apartamento, ela não conseguia encontrar a chave dentro da bolsa. Ela ria nervosa, e então a outra tocou de leve sua mão, sorrindo:

- Não tenha pressa, eu não vou a lugar nenhum.

Entraram no apartamento em silêncio, como se todas as palavras tivessem ficado do lado de fora. Entreolharam-se, e ela quebrou o silêncio, tensa, e levou as compras para a cozinha. Pôs o sorvete e o espumante no freezer, respirou fundo e voltou para a sala. Encontrou a outra reclinada confortavelmente na chaise. Seus olhares se encontraram, e ela bateu de leve no assento, convidativa. E ela não resistiu.

Quando sentou-se junto a ela, seus dedos tocaram de leve o rosto da outra, sentindo pela primeira vez a textura daquela pele acetinada. Ficou hipnotizada por seus olhos, ali tão próximos, piscando com aqueles cílios longos e luminosos, e sua respiração falhou um compasso. A outra aproximou-se lentamente dela, seu rosto roçando de leve o dela, o perfume e o calor de seu hálito envolvendo-a, seus lábios tocando suas faces em pequenos e delicados beijos, embriagando sua mente, sua alma, até que por fim tocaram seus lábios – e aquele beijo prolongou-se indefinitamente, enquanto provavam o néctar da saliva uma da outra. Tocavam-se num ritmo lânguido e constante, ela ainda tensa, sem saber exatamente como se comportar.

- “Você é virgem, não é?” – a outra perguntou, adivinhando. Ela apenas consentiu, acenando com a cabeça, constrangida por um minuto, achando a afirmação ao mesmo tempo absurda e verdadeira. “Você só precisa relaxar, deixar as coisas acontecerem naturalmente. Eu quero você, você me quer. O resto não importa.”

- Vamos para o meu quarto, então? Ela convidou, e a outra assentiu.

Sentaram-se na cama, e juntas, recomeçaram a exploração. Era incrível para ela imaginar que aquilo nunca tinha lhe acontecido e de repente nada parecia mais natural. Aquelas mãos macias que a tocavam tão suaves e firmes - como devia sempre ser – aqueles dedos encontrando os caminhos de seu corpo por sobre o vestido, a língua lisa e úmida lambendo seu pescoço, sua boca, seus olhos, e ela sorrindo - as duas sorrindo – e se permitindo a intimidade daquele momento. Cada peça de roupa despida devagar, os olhos dela nos seus, e em seu corpo – e ela brincando de espelho, copiando a outra, sua inexperiência compensada pelo desejo, desejo de ouro e escarlate, vermelho fogo de sua língua quente em seus mamilos, vermelho brasa dos pelos pubianos dela, vermelho carne de seu sexo incandescente sob o toque delicado e preciso dos dedos dela, de sua língua, de sua boca faminta devorando, explorando cada dobra de pele, cada milímetro de mucosa – nem forte nem débil: exata. O gozo veio em ondas vigorosas, subindo por dentro do sexo e explodindo em sua garganta, um gemido aflito de quem deseja dar o que recebeu, e ela sentiu-se encolher e expandir-se, como um coração que pulsa, a mão dela fechada sobre o seu sexo, como se pudesse conter ali a explosão das ondas do mar sobre os rochedos do costão.

Ela então a beijou, e a boca tinha o gosto do seu sexo, e ela suspirou profundamente. Sentou-se entre suas pernas, a bunda dela roçando-lhe o sexo, aninhou-se em seu abraço, e pegou suas mãos. Beijou cada um de seus dedos, e envolveu os próprios seios em suas mãos. Ela começou a beijar a curva delicada do pescoço dela, a penugem de ouro e cobre eriçada sob o toque de seus lábios como um convite aos seus beijos e carícias. Apalpou os seios dela, sentindo atenta sua forma e textura, querendo aprender aquele corpo, decorá-lo. Daquele ângulo sobre o ombro direito dela podia ver os pelos vermelhos de seu púbis – tão perfeitos e lindos como ela imaginara – e percebeu que eles se abriam úmidos, e quis conhecer seu gosto como ela conhecera o seu. Suas mãos desceram pelo vale da barriga dela, e ela acariciou aqueles pelos, a respiração e o coração contidos ao som de seus gemidos, e deslizou seus dedos pelo sexo dela, os lábios molhados de tesão, o clitóris firme, pulsante, toda aquela secreção tornando a sensação de toca-la ao mesmo tempo excitante e deliciosa. Ela continuou tocando seu sexo com uma das mãos, enquanto levava a outra até sua boca, provando o gosto dela, descobrindo em seu palato o sabor que imaginara antes, ainda na mesa do café. Sussurrou um “você é tão doce” ao pé da orelha dela, mordendo o lóbulo delicadamente. A respiração dela ofegou e a outra dobrou o corpo num espasmo de gozo, mas ela não tinha desistido – “quero provar o teu gosto novamente.”

Beijou a nuca dela, sua boca, seus mamilos, e finalmente seu sexo. E pensou em tudo que gostaria que os homens fizessem quando estavam naquela situação. “Não vai ser nada difícil, pelo contrário”, ela pensou – e deu início à exploração. Com sua língua e sua boca tocou cada pedacinho escondido do sexo dela, enquanto ela pedia, implorava que continuasse. E era uma explosão de vermelhos sob suas pálpebras semicerradas, vermelho ouro, carmim, escarlate, vinho, cobre, sangue! Precioso sangue, que gritava em suas veias o desejo por aquela mulher vermelho ouro, ela toda como uma jóia inesperada, como um presente por seu mau comportamento, por seu bom comportamento, por seu não comportamento. Eram só as duas no mundo inteiro, o universo sob as águas do dilúvio e elas duas fazendo amor como se sempre o fizessem, como se fossem uma mesma pessoa em cores diferentes – ela tão castanha e acobreada, a outra tão branca, vermelha e dourada – como num catálogo de uma coleção do Antonio Bernardo: uma jóia em duas versões.

Não saberia dizer por quanto tempo ficaram ali, primeiro satisfeitas, depois insatisfeitas novamente, então famintas e novamente saciadas – uma da outra, a outra de si, as duas de espumante e fois gras.

Não saberia dizer por quanto tempo esperava por aquilo. Nem se aquilo era o que ela estivera esperando. Não saberia mais o que dizer de si. Sentia que devia abandonar todos os rótulos: não era hétero, nem lésbica, nem bissexual. E quando acordou no dia seguinte, aquela cabeleira vermelha deitada sobre seu ventre, a luz do dia infiltrando-se pelo quarto - por entre as dobras da cortina - revelando a luminosidade da pele dela, o perfume dela impregnado em sua pele, as duas partilhando ainda a mesma cama, o mesmo ar, ela teve uma epifania.

Era uma mulher apaixonada por uma deusa de ouro e sangue.

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