segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Permanência (parte 5)

Passaram o fim de semana recolhidos ao quarto. Tinham que fazer um esforço enorme para descer as escadas e passar algum tempo entre os amigos, e já tinham acostumado com as brincadeiras da galera, sempre implicando com o sumiço dos dois. Não se importavam. Queriam somente estar juntos, como se aquele hiato de dez anos não houvesse existido, como se tivessem estado juntos todos aqueles anos. Para ambos era como se nunca tivessem se separado. Quando Rachel resolveu deixar cair por terra as resistências, quando Luís resolveu engolir seu orgulho e declarar seu amor a ela - ali a vida dos dois recomeçou de verdade.

Eles não falaram em nenhum momento sobre o que aconteceria depois de terminado o fim de semana. Evitaram tocar no assunto "Maria e Marcos", como num pacto de silêncio não proclamado. Para Rachel era colocar o carro na frente dos bois - ela sabia que não tinha nada com aquele assunto, era a vida dele que estava pendente. A dela já estava resolvida, era uma mulher livre, vivia sozinha e nada devia a ninguém. Para Luís era um assunto desnecessário. Quando saiu de casa, na semana anterior àquela viagem, tinha levado consigo apenas uma pequena valise com algumas roupas e objetos pessoais. Foi para um Apart próximo ao seu antigo endereço, só para ficar perto do filho, e mandou alguém buscar suas coisas dois dias depois. A separação era fato consumado. Ele queria ser feliz novamente. E o único lugar onde queria recomeçar era nos braços de Rachel.

Ficaram entre os lençóis daquela cama, fazendo amor. Completamente despidos: pele e alma, desprovidos de disfarces. Podiam finalmente tocar um no outro: carne e coração. Mais que seus corpos, partilharam a intimidade plena do desnudar-se, de estar diante do outro, o outro como espelho, espelho da história que tinham para construir juntos. Mas não ousavam tentar recuperar o fio da meada. Queriam começam uma história nova, trazer do passado somente as lembranças felizes. A ingenuidade pode atingir qualquer faixa etária, e eles estavam se permitindo serem ingênuos. Queriam acreditar em finais felizes. Queriam driblar o passado e sair ilesos, como crianças travessas que tocam a campainha do vizinho e saem correndo tão rápido que não são descobertos.

O passado dos dois era doloroso, havia ressentimento entre eles - tanto que ninguém entre os amigos podia imaginar que os veria juntos outra vez. Mas o passado os espreitava, e estava tocaiando na próxima esquina - aquilo não podia durar para sempre. E durou até domingo, antes do café da manhã. O telefone do quarto tocou estridente, e Rachel teve um pressentimento ruim.

- Lu, é melhor atender.
- Ah, Chel, não é nada! Deve ser a Lena chamando a gente para descer...
- Não, Lu. Atende, vai. Acho que é para você.
- Nossa, Chel, tá bem...

Ele atendeu e a realidade caiu sobre eles de súbito. Ele se empertigou na beirada da cama, respondendo ao interlocutor com monossílabos. Sua expressão facial demonstrava somente cansaço, e ele não discutia nem argumentava. Só aquiescia. Desligou dois minutos depois. O grave silêncio entre eles gritava, e ecoava nas paredes.

- Quem era, Lu? - Rachel quebrou o silêncio, constrangida.
- É a Maria que está lá embaixo, Chel. Ela veio me buscar.
- Por quê? Aconteceu alguma coisa com o Marquinho?
- Não. O pai dela morreu.
- Você precisa ir.
- É, preciso. Mas quero que você vá comigo.
- Acho que é imprudente, Luís.
- Acho que, se você não for comigo, ela vai achar que eu vou voltar para casa. Eu não vou, Rachel. Mesmo que você não esteja do meu lado, mesmo que não queira fazer parte da minha vida. Eu não posso ser arrastado de volta para aquela história - e eu preciso de você agora. Por tudo que a gente viveu desde sempre, meu amor.
- Lu, a Maria vai me detonar - e você sabe disso.
- Eu sei também que você sabe se defender. Por favor...

Levantaram e vestiram-se rapidamente. Juntaram suas coisas dentro das malas de qualquer jeito e desceram juntos, as mãos dadas, numa última tentativa de simular normalidade. Nada mais seria normal entre eles, e a ingenuidade que eles evocaram evaporou-se instantaneamente do momento em que puseram os pés na recepção. Maria estava de pé, muito digna, vestida de preto, os olhos escondidos por enormes óculos escuros e um chapéu de abas largas sobre a cabeça. Era a imagem da estrela hollywoodiana enlutada. Mas toda aquela classe desapareceu no instante em que ela viu Rachel ao lado de Luís.

- Eu não acredito que você teve a audácia de vir até aqui com o meu marido! Você não tem vergonha, não?
- Eu tenho, Maria. E você também devia. Afinal, você acabou de perder seu pai...
- Você é muito cara de pau, hein, garota? - Luís resolveu intervir.
- Olha, Maria, fui eu que pedi à Rachel para vir comigo. Eu quero que ela esteja ao meu lado. Nós já conversamos longamente sobre isso.
- Acontece que é o sepultamento do meu pai, e você vai lá com a tua piranha! É muita falta de respeito pelo teu filho!
- Olha só, Maria, eu não admito que você fale assim da Rachel. Isso não é verdade, e você sabe que está se excedendo.

Rachel preferiu se afastar dos dois. Ela não queria ofender a outra, sabia o que era a perda que ela estava enfrentando - mas não tinha sangue frio suficiente para tolerar aquilo por muito tempo. O passado dos três condenava Maria, mas por uma tendência à benevolência e ao seu orgulho ferido, Rachel sempre se furtara de dar o troco à outra. Talvez tivesse chegado a hora de acertarem as contas.

Quando Rachel e Luís namoravam, Maria era a ex dele. Rachel estava apaixonada demais para perceber que eles ainda mantinham algum vínculo. Em sua mente eles estavam sempre juntos, e não havia tempo para que ele ficasse com qualquer outra garota. Mas ela estava enganada. O filho dos dois, Marcos Vinícius, fora concebido durante o namoro dela com Luís, e também o motivo do fim do relacionamento e do casamento deles. Ela podia lembrar com detalhes de como Maria a humilhara diante dos colegas de escola. Ela estava cheia de orgulho, estava grávida do seu namorado, e estava ali, de pé no centro do pátio, proclamando aquilo aos quatro ventos, ridicularizando Rachel de todas as formas possíveis. Ela gritava que Rachel não era mulher suficiente para satisfazer o Luís, e que agora ela estava carregando a prova concreta das puladas do seu namorado, para quem quisesse ver. Rachel simplesmente se levantara e saíra de cena. Passou quinze dias sem ir à escola. E voltou ao convívio dos colegas como se nada houvesse acontecido. Durante aquela semana, Luís fora todos os dias à sua casa, e tentara convencer a mãe dela que o deixasse subir a conversar. Dona Luíza dizia somente que Rachel não estava bem disposta, que eles poderiam conversar numa outra oportunidade. A verdade era que Rachel estava prostrada, num estado de choque que a impedia de sequer levantar-se da cama ou comer qualquer coisa. Ela nada disse em casa sobre o que acontecera entre eles - dissera à mãe somente que Luís tinha morrido para ela - e fora necessário chamar o médico em casa para determinarem o que fazer a respeito de sua recuperação. Todos temiam que ela viesse a perder o último ano do curso, que não pudesse mais frequentar à escola, que não tivesse condições emocionais para continuar dividindo o mesmo espaço físico com o ex-namorado. O pai esbravejara, dissera que o rapaz não prestava, que ele nunca tinha aprovado o tal relacionamento - mas a mãe apenas calou e fez a vontade da filha. Silenciou o marido e deixou que Rachel vivesse sua dor.

Ela entrou em sala de aula como se não tivesse passado duas semanas ausente, entregou um atestado médico ao professor e sentou-se na primeira fileira, como de hábito. Luís passou todo o tempo da primeira aula tentando chamar-lhe a atenção, mas Rachel estava como surda. Ele ainda tentara convencê-la a pelo menos conversar com ele. Ela lhe dissera somente que não havia nada para falarem, que dali por diante eram somente colegas de classe.

Ele ainda insistiu por mais de três meses, e então chegou o mês do casamento. Ele entregou-lhe uma carta, longuíssima, explicando - como se houvesse explicação - tudo, dizendo que tinha sido um imbecil e pedindo a ela somente duas coisas: que o perdoasse - e que fosse sua madrinha de casamento, ao lado de seu primo Casimiro. Dizia que só poderia passar por aquilo se ela estivesse ali, com ele. Ela somente olhou para ele e perguntou se havia algum acordo a respeito de cores de vestidos, se haveria um ensaio para a cerimônia e a que horas todos deveriam chegar. Ele mal podia encará-la, sentiu nela um profundo descaso por tudo o que ele tivera o trabalho de escrever naquela carta. Entregou-lhe um papel com dois números de telefone: o da cerimonialista e o do tal primo.

E ela estava lá, no altar, assistindo à cerimônia, como havia prometido a ele. Não transparecia nenhum sentimento - parecia até uma pessoa estranha, alheia às famílias e aos noivos, como se fosse uma atriz convidada para ocupar o lugar de uma madrinha ausente. Não compareceu à recepção, mas entrou na fila dos cumprimentos e beijou os noivos, desejando-lhe felicidades.

E nunca mais quisera fazer parte daquilo. Era uma história sórdida, da qual não quisera participar à época, e da qual nunca fizera parte. Era um problema deles. E ela preferia que continuasse assim. Até agora, até aquele fim de semana. Parecia que finalmente o Passado conseguira dar-lhes o bote. E dessa vez tudo viria à tona - à sua revelia.

- Rachel, por favor. Rachel, onde você vai?
- Eu vou deixar vocês conversarem, Luís. Essa história não é minha.
- Mas é, Rachel! Você não pode fugir disso para sempre.
- Posso sim, Luís. Eu fugi disso por dez anos. Não estou disposta a enfrentar nada agora. É problema de vocês.
- Não Rachel! É problema nosso! Se você não tivesse me abandonado, se não tivesse me impedido de me aproximar naquela época, essa história poderia ter sido diferente... - ela não permitiu que ele continuasse:
- Ah é, Luís? E como seria diferente? Você ia abandonar a Maria grávida para continuar namorando comigo, como se nada houvesse acontecido? Ou você pretendia fazer um filho em mim, para não ter que casar com ninguém? Me diga agora de que maneira essa história poderia ter sido diferente?
- Eu não queria casar com ela, Rachel! Eu podia ser pai do Marcos sem ser marido dela!
- Hoje em dia pode ser, mas naquele tempo? Você pode se enganar o quanto quiser, querido - no final não faz diferença! Se você não quisesse casar com ela não precisava de mim do teu lado para dizer esse não - mas precisou de mim para dizer sim!
- Eu queria estar com você ali, você não entende até agora, mesmo depois de todo o fim de semana?
- E você acha que só porque a gente se ama você está redimido das tuas dívidas, Luís? A vida é um cobrador amargo: ela te deixa atrasar, mas sempre cobra juros altíssimos!
- E eu vou pagar para sempre por um erro que eu cometi há quase 11 anos atrás?
- Um casamento até pode acabar, Luís. Mas um filho é para sempre. Foi por isso que eu nunca quis ter filhos, e pelo mesmo motivo o meu casamento não funcionou. Ele entendeu que eu não atrelaria a minha vida à ele - e nos separamos.
- Rachel, não faz isso comigo, por favor! Eu precisava de você no altar naquele dia, eu preciso de você agora! Eu chorei durante toda a festa, era como se eu tivesse morrido quando você apertou minha mão naquela fila de cumprimentos. Como você consegue ser tão fria?
- Fria?! Fria? é isso que você pensa, né? Que eu sou uma pedra, que não sinto nada! Só que eu confiei em você! Confiei cegamente - e você me traiu com a tua ex, fez um filho nela e deixou que ela me humilhasse diante de toda a escola! O que exatamente você queria que eu fizesse? Que eu cortasse os pulsos? Que tomasse 30 comprimidos de valium? Que tivesse um ataque histérico, me embolasse com ela no meio do pátio, pegasse a Maria pelos cabelos e fizesse ela retirar o que tinha dito? ERA VERDADE, Luís! Ela estava certa - e eu errada, enganada, iludida, crédula. Você perdeu e eu perdi. Ela ganhou, e fim. Eu precisei juntar toda a minha dignidade para voltar à escola e terminar o ano junto com a turma. Precisei de todo o auto-controle do mundo para te olhar nos olhos de novo e aceitar aquele pedido desumano, de que eu fosse tua madrinha de casamento. E precisei evitá-los por todos esses anos. E mesmo sendo inocente, a vida está aqui agora, me cobrando isso também.

Ela chorava como nunca, como se toda a dor do mundo estivesse transpassando seu coração em um átimo. Ele não sabia o que fazer, o que dizer. Ela era a mulher da sua vida. Ele já a havia perdido uma vez. Não podia perdê-la novamente.

- Rachel, por favor, eu te amo! Você é a única mulher do mundo para mim...
- Eu sei que você me ama, só não me diga mais isso, porque desse jeito não faz diferença! Eu quero um amor que eu possa levar comigo.
- Eu te prometo que você vai poder me levar contigo, meu amor. Eu te prometo que tudo vai acabar bem. Vem comigo, eu estou te implorando. Já que a vida está cobrando isso, eu pago. Pago o preço que for - se você vier comigo.

Ela ficou ali, olhando para ele, as lágrimas turvando a sua visão. Ela sentia que podia confiar nele, mas já tinha se enganado antes. Ele já tinha falhado com ela - e tinha sido ao terrível, algo que lhe custava até hoje noites em claro e horas de terapia. Ele parecia resolvido. Agora era a vez de ela se decidir.

(to be ended...)

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