quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Permanência (final)

Ela respirou fundo. Não podia ignorar tudo o que eles tinham vivido naquele fim de semana. Por outro lado, não podia ignorar a dor física que sentia só de lembrar daquelas duas semanas, há dez anos atrás, quando o mundo parecia ter deixado de existir, quando nada fazia sentido, quando ela pensava que talvez fosse melhor morrer a voltar à escola e vê-lo novamente. Ela não podia entrar naquele carro, sentar-se ao lado dele e simplesmente agir como se nada tivesse acontecido. Estava claro que aquele era o momento do tudo ou nada, e que ela teria que resolver se podia ou não lidar com todos aqueles sentimentos reprimidos por toda uma vida.

Ele estava apavorado, da mesma forma que estivera naquela ocasião, quando ela desapareceu e cortou toda e qualquer oportunidade de contato. Ele não tinha chão sem ela por perto, o chão podia se abrir e tragá-lo e ele nem se importaria - tudo o que ele queria era poder olhar em seus olhos e dizer-lhe a verdade, toda a verdade: que ele fora um fraco, que não tinha sido digno da confiança dela, que entendia se ela nunca mais quisesse vê-lo - mas que a amava e não queria casar com Maria! Se ela tivesse ouvido, se tivesse sido capaz de enfrentá-lo! Se ela tivesse explodido em impropérios, se tivesse gritado e cuspido nele, se ela ao menos tivesse reagido! No fim das contas, ele sabia que aquela ausência era a reação mais grave. Ele imaginava o quanto ela estava sofrendo por causa daquela maldita transa inconseqüente sem camisinha! Se ele pudesse ao menos se explicar... Mas sabia que nenhuma explicação era explicação suficiente.

As escolhas que fizeram tinham trazido os dois até ali. Tinham estado juntos por todo o fim de semana, conversado sobre tudo - e tinham evitado o único assunto que não podia ser calado. Estavam pagando caro demais pela ingenuidade que escolheram abraçar durante aquelas horas doces de idílio. Naquele momento, tudo o que Rachel queria era fugir dali. Tudo o que Luís queria era dissuadí-la. Ele sabia que talvez a tivesse perdido para sempre, depois da chegada de Maria.

Ao invés de ficar ali, esperando que as coisas se resolvessem, Rachel resolveu ir se despedir dos amigos. Helena e Renata estavam muito preocupadas. Perguntaram se ela não queria ficar, e afirmaram que dariam um jeito para que ela voltasse com uma das duas. Ela apenas agradeceu, tentando parecer normal - mesmo ali, no olho do furacão. Suas amigas a conheciam muito bem, e sabiam que ela estava bem triste, mas não podiam pressioná-la. Rachel sentiu-se acolhida, e disse isso a elas. Mas tinha que ir, tinha que fechar aquela história. Todos estavam se divertindo tanto que a ausência deles não seria percebida - afinal, tinham estado lá, mas era como se não estivessem. Dali voltou ao quarto, verificou se havia deixado algo para trás e fechou aquela porta pela última vez. Nunca mais voltaria àquele lugar. Apesar de todas as lembranças felizes que ele evocava, não podia ignorar que fora durante a viagem de formatura que Luís e Maria conceberam seu filho, e que tudo havia desmoronado a partir daquele ponto. Desceu até a recepção para fechar a conta - e encontrou Luís à sua espera.

- Você vai comigo? - Havia um tom de súplica em sua voz, e ela sentiu raiva de verdade.
- Vou, se você parar de se fazer de vítima.
- Tudo bem. Eu só quero que você entenda que eu realmente não imaginava que ela viesse até aqui.
- Ela adora uma baixaria, Luís. Eu já devia imaginar. Mas baixei a guarda, e foi nisso que deu. Eu só quero deixar bem claro que vou me manter distante. Não quero fazer nada de que me arrependa, mas se você puder facilitar a minha vida, diga a ela que não mexa comigo, por favor. Eu calei por dez anos. Nem mais um minuto, ok?
- Ok, Chel. Combinado.
- Então vamos fechar a conta e sair daqui logo.
- Já resolvi tudo, não se preocupe.

Ela não encontrou forças para retrucar e exigir que dividissem a conta. Só concordou e acompanhou Luís até o carro, onde ele já tinha colocado as suas malas, sem dizer mais nada. Maria tinha ido na frente, e ele se comprometera a chegar ao velório para a cerimônia do adeus. Eles viajaram sem trocar palavra - ela absorta em seus pensamentos, ele apreensivo, ambos infelizes. O que quer que acontecesse, ambos sabiam que nada mais seria como antes. Encontraram o Marquinhos na entrada da capela. Era um menino lindo, e ela se viu diante de um Luís de 10 anos. O menino correu até o pai e o abraçou.

- Você é a Rachel? - perguntou a queima roupa, sem soltar o pai.
- Sim.
- A mamãe disse que você era uma baranga. Não é verdade. - Rachel se limitou a sorrir. Ele continuou:
- A mamãe disse que o papai deixou a gente por sua causa. É verdade?
- Acho que só seu pai pode responder isso, querido. Eu só posso dizer que nunca imaginei que fosse vê-lo de novo até esse fim de semana.
- A minha mãe fala muitas coisas de você...
- Tenho certeza que ela nunca te contou a história inteira. Mas não é hora para essa conversa, meu bem. Acho que sua mãe e toda a família estão esperando por você e seu pai, e a cerimônia já deve estar começando, não é mesmo?
- Você vai entrar com a gente?
- É isso que você quer?
- É. É sim.
- Tudo bem, então.

Entraram na capela em silêncio, ela se manteve sempre um passo atrás dos dois. A família inteira ali, olhando para ela sem entender nada, ela ali sem saber direito por que. A cerimônia transcorreu tranqüilamente e terminou bem rápido. Rachel acabou relaxando. Ela devia saber que nunca podia baixar a guarda na presença da Maria.

- Será que eu vou ser mesmo obrigada a tolerar a tua puta aqui hoje, Luís?

Rachel sentiu que ia desmaiar, mas ao invés disso uma fúria absoluta cresceu dentro de seu peito, e, sem saber exatamente como, começou a falar diretamente para Maria, baixo e lentamente:

- Puta, né? Engraçado isso... Daqui de onde eu estou olhando eu só vejo uma puta. A puta que deu para o meu namorado e engravidou dele para forçar um casamento! Você por acaso conhece essa puta, Maria? Pois é, foi essa puta que me humilhou diante de toda a escola, num pátio lotado, na hora do recreio! Foi essa puta que riu da minha cara todos esses anos. E sabe para quê? Para perder o marido justamente para a minha lembrança! Quer saber do que mais? Você é uma puta bem patética e incompetente... Como é que esse homem nunca me esqueceu, hein? Como é que você não conseguiu me tirar da cabeça dele, nem com filho, nem com família!? Isso, minha cara, é o que você devia estar se perguntando, ao invés de vir até aqui me afrontar durante a despedida do teu próprio pai! Eu só estou aqui porque o teu ex-marido me disse não conseguiria passar por isso sem mim, e porque o teu filho me pediu para entrar. Mas é claro que isso nunca ia te passar pela cabeça! Me faz um favor, Maria: nunca mais se aproxime de mim, ouviu? Nunca mais sequer me dirija a palavra! Se há uma coisa de que eu me arrependo é de não ter te feito engolir os dentes... Então não me faça perder a paciência, ok? Não brinque com fogo.

Ela engoliu em seco e deu as costas a uma Maria atônita. Olhou para o menino e disse:

- Desculpe, Marcos. Eu realmente poderia ter me contido, mas eu não quis fazer isso.
- Eu não tenho nada com isso, né?
- Não. Não mesmo. - eles sorriram e se entenderam. Ela continuou:
- Você é um rapazinho muito bacana. Gostei de conhecer você, viu? De verdade.
- Eu também. Você e meu pai vão morar juntos agora?
- Isso a gente ainda não resolveu. Mas eu acho que não tem mais clima para eu ficar aqui, né?
- É. Eu acho que você está certa. O meu pai pode ficar?
- Isso é com ele, ok? Eu vou ficar lá fora, porque as minhas coisas estão no carro dele, mas ele pode ficar, eu não tenho pressa.

O menino a puxou para baixo e deu-lhe um beijo no rosto, agradecido. Ela sorriu e devolveu o beijo. Levantou-se e olhou Luís nos olhos:

- O filho de vocês é maravilhoso, Luís.
- É verdade. E você, me espera?
- Sim. Estarei no carro, ok?
- Claro. Fica com as chaves.

Ela abraçou Luís, e ele se surpreendeu - mas era uma surpresa boa, um alívio depois da tensão dos últimos minutos. Ele não sabia de onde vinha a força dela, mas estava agradecido por aquele gesto. Profundamente agradecido. Ela deixou a sala e foi sentar-se no carro. Tinha ainda alguns minutos antes de poder estar sozinha com ele. Mas não tinha mais dúvidas. Ela tinha tentado fugir, tinha se afastado de todos os amigos comuns, tinha construído novos relacionamentos e até se casado, quando encontrou alguém que a amava, estimulava e fazia feliz. Nunca foi capaz de esquecê-lo, o passado sempre estivera presente, e ela sabia daquilo agora, depois daquele fim de semana com ele. Os anos que passaram separados tinham afastado as vidas, não as pessoas, e eles estavam ligados novamente. Ela sabia das fraquezas dele como homem, mas não podia negar que ele a amasse. De sua parte, nunca havia negado o amor. Tinha calado, isso sim - mas foi a maneira que encontrou para continuar vivendo. Não havia motivos para continuar calada.

Tinham pela frente uma conversa dura, algum tempo para aparar arestas, e um relacionamento para construir. Não seria fácil. Mas talvez fosse a única possibilidade que restava. Ela reclinou o banco do carona, onde tinha escolhido se sentar, e acabou cochilando.

Acordou sobressaltava, com Luís batendo de leve no vidro dianteiro.

- Olá, dorminhoca.
- Oi, meu amor. E aí, correu tudo bem?
- É, dentro do possível... Abre a porta para mim? - Ela puxou a trava imediatamente, e ele sentou-se atrás do volante.
- A gente precisa conversar.
- Com certeza, Lu.
- Chel, o Marcos vai comigo para casa hoje, e talvez tenha que ficar uma semana direto, por causa do inventário e tudo mais. A gente pode esperar mais esse tempo até resolver quem vai morar com quem?
- Opa, muita calma nessa hora, Luís! Você está se antecipando demais, não acha?
- Mas eu pensei... Você veio comigo, disse aquilo tudo para a Maria na maior elegância, foi super doce com o meu filho... Eu fiquei confuso agora.
- Meu amor, não confunda as coisas: é uma coisa a gente ficar juntos, outra a gente ir morar juntos. Acho que precisamos de mais um período de adaptação.
- Mas por que, querida? Eu preciso de você do meu lado. Eu sei o que eu quero há dez anos - acho que há mais tempo, até.
- Luís, isso é precipitado! Você tem que pensar no Marcos, precisa dar segurança a ele. E a mim.
- O que ainda falta para você se sentir segura, Rachel?
- Você precisa ser forte para mim, Luís. Eu sei que para você, ter me trazido aqui foi o supra sumo da força, mas na verdade você não se sentiu forte para estar aqui sozinho - e me pediu ajuda. Eu vim, como estive no teu casamento: como uma muleta. Mas eu também preciso de segurança. Eu preciso ter certeza de que você não vai vacilar mais, que isso aqui é o que você quer, que não vai haver outros deslizes.
- Ah, Chel... Eu não sei o que dizer. Eu entendo a tua posição, mas você não está enxergando a coisa pelo meu ponto de vista! Eu estou me expondo aqui com você! Eu coloquei meu coração na janela! Todo mundo sabe que eu te quero. E ninguém duvida que isso é recíproco. Nem eu. Mas você ainda precisa do cavaleiro de armadura...
- Eu acho que a gente não vai avançar muito assim, a gente só se defendendo. Mas o Marcos não pode esperar. Você me leva para casa?
- Claro. Vou pegá-lo e a gente vai. Você janta conosco?
- Pode ser. E depois vocês me levam para casa.
- Tá bom, tá bom... Sem golpe, juro.

Eles riram e saíram juntos do carro para buscar o menino. Ele era uma criança adorável, e Rachel estava achando que aquilo parecia bom demais... Ele veio até o pai sem protestos, depois de se despedir de todos. A mãe já tinha preparado uma mala com as coisas dele, e não seria necessário ir até a casa da Maria e estar na presença dela nem mais um minuto - o que ela viu como uma benção. Luís se despediu da ex-mulher cordialmente e pegou o filho pela mão. O menino estendeu a outra mão para ela. Ela deu-lhe a sua mão e seguiram, os três, para o carro.

Luís assistia em silêncio, enquanto seu filho conversava com ela as maiores amenidades, como se a conhecesse há muito tempo e fossem íntimos. Por um minuto parecia que a vida dele tinha sido aquela desde sempre, e que eles eram uma família de verdade. Era como estar no cinema, assistindo a uma comédia romântica com final feliz. E talvez fosse isso mesmo, talvez finalmente eles pudessem ter um final feliz. Eles entraram no carro e resolveram ir primeiro ao apart onde Luís estava morando, para deixar as coisas de Marcos e mostrar a casa à Rachel. Depois iriam ao apartamento dela, e combinaram de ajudá-la a preparar um espaguete ao molho inventado - com o que eles pudessem encontrar no armário de mantimentos.

E deixaram de fazer planos ali. O futuro era um mistério que precisavam desvendar, sim. E tinham tudo de que precisavam para fazê-lo. Tinham um ao outro. E tinham todo o tempo do mundo...


(The end)

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