Depois de tantos anos, todo o trabalho que teve para evitá-lo foi por água a baixo naquela tarde. Era o encontro do aniversário de vinte anos de sua antiga turma do curso técnico e ela, que tinha sido muito ativa durante aquele período, sentia que não podia recusar o convite da comissão organizadora: duas de suas melhores amigas tinham tido essa idéia brilhante - e no início ela nem se opusera. Tinha achado uma idéia excelente, de fato. E então, a idéia brilhante: "e os meninos do quarto ano? A gente não deveria chamá-los também?"
Ela fora muito resistente, e as duas sabiam muito bem por quê. Então elas consideraram que talvez nem devessem chamar a todos - e ela percebeu que concordar naquele ponto seria uma confissão de pânico. E de imaturidade também. Depois de algumas conversas mais, dividiram a lista de telefones, e obviamente o número dele não constava da lista que veio parar em suas mãos.
A cada telefonema dado ela ficava mais animada. Seria tão bom reencontrar os antigos colegas, tão queridos e importantes em sua vida, estar com eles por todo um final de semana! Era a idéia perfeita: repetir a viagem de formatura, para um hotel fazenda em Mendes, no estado do Rio. "É tão pertinho, Rachel! E podemos levar as crianças, né? Tem recreadores!!!" Ela entendia as preocupações das amigas, embora não compartilhasse delas. Tinha sido casada por cinco anos, mas não tiveram filhos, e depois do divórcio ela nunca mais pensou em casamento. Gostava de dizer aos amigos que aquilo era coisa que só se faz uma vez na vida - como ir à Austrália ou pular de bungee jump. Ela já tivera a sua cota de cuecas para lavar, jantares para preparar e lugares para ir acompanhando o marido. Prezava demais sua liberdade, e dizia que flertada com a solidão a tantos anos que quando encontrou a chance de ficar com ela não pensou duas vezes!
No dia da reunião para os últimos preparativos da viagem, Helena quis conversar com ela em particular, antes de Renata chegar com sua listagem final.
- Chel, preciso falar sobre o Luís.
- Por que, Lena?
- É que ele confirmou presença...
- E?
- Ah, Chel, você sabe por que essa conversa, né?
- Lena, sério: e?
- Ele disse que só iria se você fosse também. disse que você era a única pessoa da turma que ele queria ver novamente.
Ela nem sabia o que fazer com essa informação. Afinal, por que ele resolveria torturá-la mais um pouco, quase dez anos que não se encontravam, quase dois anos desde seu divórcio? Ele era casado, ela estava presente à cerimônia - como madrinha. Era esse o tipo de requinte de crueldade de que ele usara à época. Ele queria que ela estivesse ali, no altar, assistindo seu enlace... Que cretino! E agora é que a Helena dizia isso a ela!
- Acho que quem não vai a esse final de semana no campo sou eu.
- Pára, Rachel. Pára agora, por favor! Você não está pensando direito. Vai ver ele quer te pedir desculpas, talvez acredite que vocês precisam conversar, talvez... - ela nem deixou a amiga completar a frase:
- Pára você, Lena! Pára de inventar desculpas para o Luís, tá? Ele é adulto e sabe bem se defender, não precisa de advogado de defesa.
- Tá, tá bem... Cruzes, que ódio hein, menina? Você precisa se libertar disso.
Então Renata chegou e elas encerraram o assunto. As semanas passaram rapidamente, ela ocupadíssima fechando um novo contrato para sua produtora, as meninas resolvendo os últimos detalhes da viagem. Quando deu por si, já era quarta-feira. Elas tinham reservado um fim de semana prolongado, com feriado na sexta, e iriam viajar na quinta pela manhã. Tinham também montado um esquema de transporte solidário, onde quem tivesse lugar sobrando no carro levaria alguém que estivesse a pé. Era seu caso: o carro precisava de manutenção, e como era só ela mesma, pediu carona. Ela nem sabia com quem iria, e ligou para a Renata para descobrir quem seria seu motorista. Ela desconversou. Disse que a lista estava com a Helena, e que ela não sabia de cor. Então, ela ligou para a Helena. A amiga disse que ela iria com o Olavo, e que ele tinha combinado de ligar para ela combinando o horário da saída ainda naquela tarde. Mas ela tinha o número do telefone do Olavo, e não quis perder tempo. Ligou:
- Oi, Olavo?
- Ele!
- É Rachel, tudo bem?
- ...
- Olavo, você está me ouvindo?
- Ah, claro, Chel... Só estou meio distraído. Tudo bem?
- Sim, malas prontas e tal. Estou ligando para saber como vai ser amanhã. Você quer que eu vá até a sua casa ou prefere marcar um ponto de encontro?
- Ah, eu peguei seu endereço, querida. Não esquenta de vir até aqui! Afinal, passar por aí é meio que caminho, né? Pode ser tipo umas 8h, 8:30h?
- Olavo, você que manda! Eu fico esperando na portaria, que é para a gente não se atrasar, ok?
- Combinado! Eu tenho um Punto preto - fica de olho.
- Obrigada, querido.
- Disponha!
- Um beijo, tchau.
- Tchau.
No dia seguinte, cinco minutos antes da hora combinada, Rachel resolveu descer para a portaria do edifício onde morava, para evitar qualquer inconveniente ao amigo. Estranhou quando o Corola prata estacionou bem na frente do prédio. "Que saco! Agora, quando o Olavo chegar vai ser difícil ele arrumar um lugar para parar... " Estranhou ainda mais quando o motorista do carro abriu a porta, e olhou para ela, sorrindo. "Só pode ser sacanagem!" Era o Luís, andando ma direção da portaria, sorrindo o tempo todo.
- Bom dia! Vejo que continua paranóica com relação aos horários...
- O que você está fazendo aqui?
- Nossa! Nem bom dia? Foi a recepção mais fria da minha vida!
- Nem começa, Luís! Cadê o Olavinho? Ele combinou que vinha me buscar.
- E eu combinei com ele que era melhor você ir comigo.
- Com que direito? E cadê a Maria?
- Ai, que grosseria, hein, Rachel? Eu não tenho idéia da programação da Maria para hoje. Depois de tantos anos, parece que você continua a mesma.
- E você também, manipulador egoísta!
- Bem, agora que já fizemos nosso catching up, deixa eu pegar a sua bagagem.
- Pode deixar, eu vou de outro jeito.
- Ah, vai arrumar um taxi prá te levar até Mendes agora...
- E se eu não quiser passar duas horas e meia de viagem sentada do teu lado?
- Tem sempre o banco de trás... Mas eu acho que a gente conversa melhor se você for sentada no banco da frente.
Ela não respondeu. De alguma maneira, ele sempre terminava as discussões. Para o bem ou para o mal. Incapaz de tomar uma atitude, ela assistiu enquanto ele entrou no jardim da entrada do prédio, pegou suas malas com desenvoltura e se dirigiu até o carro, abriu o porta-malas e guardou sua bagagem. Abriu então a porta do carona para ela e esperou que entrasse para fechá-la.
- O filho do Olavo está internado na emergência do Copa D'or. Crise aguda de bronquite. Eles não vão mais viajar. Ele achou que você ia entender.
- Meu Deus! Será que eu não devia ir até lá, prestar solidariedade?
- Faça isso por telefone, querida. O dia está lindo e provavelmente vai esquentar - e eu não quero pegar a estrada mais tarde.
Viajaram por quase uma hora em silêncio - um silêncio pesado, denso, que se poderia cortar com uma faca - quebrado somente no início, pelo som da voz de Rachel ao telefone com Olavo, perguntando pelo menino. A conversa foi rápida, ela ficou mais tranquila, mas ainda estava irritadíssima com o amigo. "Custava ele me avisar que não poderia me buscar?" Mas ela sabia que talvez não tivesse cabeça para avisar nada a ninguém se seu filho ficasse doente. Era estar tão perto dele que a deixava tensa. Sempre houvera essa tensão entre eles.
Ele resolveu parar num posto de gasolina. Virou-se para ela e disse:
- Eu preciso completar o tanque, e estou com fome. Se você puder ficar aqui enquanto abastecem o carro, eu vou lá na conveniência. Quer alguma coisa?
- Não, obrigada. Pode deixar esse abastecimento comigo - eu proporia o mesmo ao Olavo.
- Não precisa, boba. Eu iria fazer a viagem sozinho, ia gastar o mesmo combustível. Só me faz um favor?
- Sim?
- Tenta ser menos chata durante o próximo trecho, ok? E, se você quiser, pode dirigir o carro.
Ela ficou ali, imóvel, enquanto ele se afastava em direção a loja de conveniência, olhando para ele enquanto caminhava. Não sabia por que, mesmo depois de todos esses anos, ele ainda provocava todos aqueles sentimentos nela. Quando o frentista terminou o abastecimento, ela pediu que verificasse água e óleo, completasse o compartimento do limpador de párabrisas e lavasse os vidros - mais para fazer hora do que porque fosse necessário. Quando ele voltou, o carro estava pronto para prosseguir, mas ela não.
- Tenho que ir ao banheiro.
- Banheiro de posto, Rachel? Tem certeza? A gente pode parar mais adiante, num lugar mais limpinho...
- Não, Luís, a gente já perdeu um tempão aqui, vamos chegar tarde demais no hotel fazenda se formos parando como um trem da Central!
Eles riram. riram muito. Tinham usado o Parador por tantos anos... Quantas vezes pegaram aquele mesmo trem juntos, indo ou voltando da escola, rindo como agora?
- Numa boa, Lu. Eu não sou assim tão fresca - sou suburbana por dentro.
- É a primeira vez hoje que você relaxa de verdade.
- Ah, é, espertalhão? E por que?
- Você não me chama de Lu há uma década.
Ela sorriu sem graça e virou-se na direção dos banheiros. Estava trêmula, e não conseguia pensar direito. Ela realmente o tinha chamado de Lu - "um diminutivo para um nome diminuto", como ela costumava dizer, brincalhona, naquela época. Era um deslize que não poderia se repetir.
Voltou rapidamente e perguntou se poderia mesmo dirigir seu carro. Ele assentiu e ela sentou-se atrás do volante. Sempre quis dirigir aquele carro, e aproveitou a oferta dele sem inibições - sabia que era boa motorista, e pelo jeito ele também se lembrava disso.
Detrás do volante, o tempo passava mais depressa, e ela pisava fundo no acelerador, encurtando as distâncias. Ele não reclamava. Parecia até estar curtindo o momento, e eles conseguiram entabular uma conversa sobre amenidades, como a previsão do tempo para o final de semana e o resultado da megasena. Mas a tensão estava ali, e os dois sabiam que ela não desapareceria, simplesmente. Aquela tensão sobrevivera ao tempo e a distância.
Ela não iria a lugar nenhum.
(to be continued...)
Um comentário:
Amiga, você tem "feeling" pra progressão narrativa! Muito bom, como sempre!
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