quarta-feira, 17 de março de 2010

Culinária fusion

Era uma redução perfeita de aceto balsâmico a base fundamental daquele molho.

E ele se esmerava. Jamais perdia o ponto, jamais descuidava do relógio, jamais aumentava a chama para que andasse mais depressa. Era paciente e dedicado quando na cozinha, e isso lhe rendera a reputação de chef - na verdade, era conhecido como um dos melhores chefs da cidade.

Acreditava num comprometimento total com o trabalho, e era quase uma devoção pessoal aquele restaurante. Seu primeiro êxito, sua história de sucesso. E, por que não dizer - sua história de amor. Em especial os molhos - tinha convicção de que era nos molhos que residia o segredo de seu sucesso, e nenhum sous chef tivera acesso às suas receitas elaboradas. Nem os mais fiéis. Nem aqueles a quem ele confiava a finalização dos pratos - e isso era raríssimo. Talvez tivesse razão. Cada um de seus molhos tinha uma personalidade própria, um perfume e uma textura únicos, uma aparência superior. E, quando tocava o palato, explodia em nuances delicadas e vigorosas. Surpreendentes. Vertiginosas. Individuais. E cada um tinha um nome.

Um nome de mulher.

Tudo o que sabia, tudo o que trazia para a sua cozinha, viera de uma mulher. Ou de muitas mulheres - uma de cada vez. De sua avó, que lhe ensinara os primeiros truques - como a forma correta de manusear as facas, ou o pulo do gato de uma juliene perfeita; de sua mãe, com seu modo peculiar de fazer talhar o leite para que a ambrosia saísse perfeita; de suas tias, que preparavam na cozinha da casa dos avós paternos as massas caseiras mais delicadas e primorosas.

Aos molhos, entretanto, chegara por seus próprios pés. No ano em que finalmente decidira que sua inclinação culinária era de fato uma vocação resolveu também que sua formação seria inicialmente prática. Preferiu testar seus conhecimentos em restaurantes obscuros de Paris, e seu talento despontou tão brilhante que foi rapidamente identificado e contratado para trabalhar para um grande chef, na cozinha do restaurante de um hotel cinco estrelas. Andava tão compenetrado que nem a viu entrar. A filha do chef. Estava ali de passagem, viera ver o pai e filar uma comidinha antes de ir para a aula - cursava economia em Sorbonne. O chef pediu-lhe que preparasse alguma coisa para ela, e ele caprichou no penne, cuidou para que estivesse aldente. Mas só quando seus olhos encontraram os da moça sua cabeça concentrada encontrou seu foco, finalmente. Preparou para ela um molho original. Cada olhada na moça, cada vez que inalava o ar a volta dela, surgia em sua mente uma erva, um condimento - como as notas de uma sinfonia - e ele os harmonizara à perfeição. A moça provou a comida, inicialmente contrariada - ela esperava que o próprio pai cozinhasse para ela - para logo em seguida arregalar os olhos, incrédula. Disse nunca ter provado um molho tão substancioso e sutil ao mesmo tempo, disse-lhe até que sentia que combinava com ela. Ele havia descoberto a magia da criação culinária nos olhos de uma mulher que jamais vira antes - e jamais seria sua.

Não porque não se quisessem. Ela quis. Ele quis demais. E por querer demais teve que trabalhar demais, para dar a ela tudo o que sempre teve, a vida a que estava acostumada. E ela, por ter vivido com o pai aquela vida desde sempre, não quis mais do mesmo. Ela chorou. Ele sofreu. O molho ficou. Chamou-o Charlotte. Até hoje, se fecha os olhos e prova o molho, é o gosto dela que sente. Sua saliva doce. Acridoce. Seu perfume de jasmim e anis estrelado. Cardamomo. Coração.

Depois foi Tereza. Pimenta. Canela. Cúrcuma. Com ela ele trabalhava o dia inteiro e fazia amor por toda noite. Quente. Úmida. Pulsante em sua língua como contra seu corpo. A textura macia de sua pele contrastando com a dureza de sua carne, firme, ácida. Seu nome estalando no palato enquanto a língua dele provava seu sexo. Vigorosamente. Loucamente. Seu gosto nos lábios durante todo o dia. Sentia a densidade dos seios dela entre os dedos, na palma de suas mãos. Semicerrava os olhos e encontrava aqueles olhos que o assombravam, grandes olhos negros de mangá. Tereza era fogo, e ardia como cominho, açafrão, alho. E até o fim foi ardente. Entre lençóis, mesmo com outras mulheres ocasionais, era comum que suspirasse por ela - e até hoje sente o corpo todo vivo, o pau duro explodindo de tesão dentro da calça enquanto renova sua devoção àquela mulher. Preparando aquele molho.

Júlia, Mariana, Denise. Em cada molho a sentença final de seus amores impossíveis, cada mulher deixando para ele mais um sucesso na cozinha - e mais um fracasso no amor. Ele tinha pensado daquela maneira até aquela tarde. Victoire entrou no salão - e seu perfume de alcaçuz e gengibre encheu o espaço. Sentiu seu gosto no ato - e as lágrimas adivinharam que dali sairia o molho definitivo. Não porque seria uma paixão passageira. Ela era mais do que isso. Ela tinha o gosto dele mesmo. Misturado ao de sua mãe. A jovem mulher que olhava para ele através do balcão era dele - e de Charlotte. Sua filha.

Adivinhou mesmo antes que ela o revelasse. Por ter-lhe sentido o gosto, antes de ver seu rosto, já sabia exatamente como ela se pareceria. Tinha os mesmos olhos amarelos de gata, seu hálito fresco e mentolado como o de sua mãe. E as mãos de um cozinheiro. Ela era tão dele quanto dela.

E de repente toda a sua vida fazia sentido, naquela luz que dela emanava, naquele sorriso transcendente. E só podia pensar que ela era a prova de que sua vida realmente valera a pena. Toda ela. Até ali.

Mesmo que sua obsessão pelo trabalho o cegasse para o amor de cada uma delas, mesmo que ao final de cada relacionamento sua vida zerasse e precisasse seguir em frente. Mesmo que caísse e levantasse diariamente, e que seu amor fosse fadado a servir ao deleite alheio. Sim, ele era um sucesso, era célebre e celebrado. Mas só agora se reconhecia inteiro. Completo.

E aquela menina seria a base perfeita para o molho que resumiria o trabalho de sua vida. Ela era a fonte inesgotável de sua culinária fusion.

Um comentário:

Dani disse...

Dizer que está ótimo o shortcake! é repetitivo, mas nunca é demais! Bj, amiga

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