sexta-feira, 9 de julho de 2010

Dinamite

No canto escuro, no meu canto do ringue, fico sentada e mantenho a cabeça baixa. Espero pelo gongo. Voltarei à arena. Sinto o perfume inebriante do sangue de meu adversário. É o cheiro do meu próprio sangue. Luto contra mim mesma. E seguirei lutando.

Venho lutando contra mim por toda essa vida, e sabe-se lá quantas mais. E já me derrotei em outros momentos - mas dessa vez a coisa é diferente. Se levantar os olhos, mesmo que por breves segundos, poderei contemplá-la, minha adversária, sentada ela também em seu corner. Ela é a imagem da fúria, do apego, da gana. Ela é a própria vitória - os olhos bem juntos, vermelho-sangue-coração, ela me encara violenta e eu me recuso a olhá-la de volta. Evito o confronto enquanto posso.

Sei que essa é a melhor de todas as batalhas que já travei. E ela talvez seja a única oponente no meu nível que já me desafiou. Todas as vezes que subi ao ringue comigo mesma, a adversária era fraca, ou pouco preparada, ou desarmada - e a vitória era questão de tempo. Tudo o que eu precisava fazer era manter minha guarda, junto com a concentração. Eu sempre fui capaz de manter minhas fraquezas ocultas, e de certo modo é isso o que quis dizer com "luto contra mim mesma": contra as minhas falhas, as minhas fraquezas, as minhas fragilidades. Dessa vez, contra essa lutadora, o ringue parece pequeno demais, claustrofóbico demais - e tento me concentrar, para seguir controlando minhas falhas e derrotá-la.

Ela se chama Vitória. Tem punhos fortes, sabe guardar-se, e bate para valer. (Um dia, uma mulher deu-lhe o nome Vitória.) Não demonstra piedade. Tem uma chama interna - um tipo de brilho incandescente que se vê nos olhos de uma lutadora nata, que não tem nada a perder e o mundo para conquistar. (Ela é a vitória de sua mãe.) Ela é a imagem da vencedora. Quando pisou no ringue eu entendi isso, de cara. O que eu tenho que lhe falta, o que vai fazer a diferença na hora do nocaute que se aproxima? Experiência, e o dom da antecipação.

Enquanto mantenho meus olhos baixos por trás da penumbra serrada, enquanto o gongo não soa, estudo o silêncio do público e seu bravejar, enquanto ela discute com o spare e briga com o treinador. Ela está cheia de ira. Ninguém deveria decidir nada com ira. Ela embaça a mente. E a minha está clara. Deixo que tio Jorge cuide de mim. Ouço as palavras encorajadoras de Mason, meu treinador. Olho para ele e sorrio: sua preocupação é visível - acho mesmo que este foi o pior corte no supercílio que já levei na arena, e ainda está sangrando um pouco. Nem ligo. O Jorge vai dar um jeito nisso antes do gongo...

-Ei, capitão! Calma, eia... Pega meu pulso.

Ele confere a pulsação e me devolve o olhar - incrédulo, mas confiante. Ele pode medir a minha tranqüilidade pela pulsação, e apenas pergunta:

-Então... É agora?
-É, capitão. Tô cansada... Ela vai ter que cair.

Seguro as mãos do tio Jorge... Adoro o cara, e ele a mim. Estamos juntos desde o Mano - o treinador que me descobriu - e quando o Mason apareceu com o patrocínio eu só topei porque o Jorge veio comigo. Ele é meu pai e minha mãe na estrada. Ele é meu único amigo.

-Tio, muito obrigada. Mas já tá na hora de tirar essa guria do meu caminho, sabe como é...
-Vai lá e derruba ela, minha filha. Toma cuidado com o jab de direta, e usa a canhota!
-Feito! Quero um milkshake de ovomaltine duplo, ouviu?
-Pode deixar!

Devolvo o sorriso e a confiança que emana dele é meu baluarte e minha guia. Tio... Eu sempre sei se vou ganhar ou perder olhando para o tio... Está no papo. Olho de esguelha para o gongo. O auxiliar do juiz já vai tocá-lo, a qualquer momento...

Pronto! Levanto e olho para ela. Ela já estava no centro do ringue e eu ainda levantando. Menina precipitada... Inspiro fundo e sinto novamente o perfume do seu sangue. Sangue que breve molhará a lona.

Esquivo seu primeiro golpe - era mesmo um perigo aquele jab de direita. Ela desequilibra! Incrível a auto confiança dela, achava mesmo que eu ia deixar meu queixo no caminho! E fica desprotegida. Tudo acontece meio em câmera lenta no meu cérebro: saio pela minha direita, contorno o corpo dela, ela nas cordas agora, solto a canhota... Parece mesmo jogada ensaiada, e de certa forma é. Antecipação, lembra? É um dom - e também o resultado do treinamento.

Ela escorrega para a lona. O juiz inicia a contagem: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10! Nocaute! Ela está desmaiada, talvez estática, não sei dizer. Talvez ainda esteja revendo tudo em câmera lenta. E talvez ela aprenda alguma coisa aqui. Alguma coisa útil. Sabe, nem sempre eu fui assim...

Tudo o que posso ver é seu sangue, molhando a lona. Sangue que eu tirei dela, junto com mais alguma coisa indelével, alguma coisa que vai ficar no fundo daquele ringue para sempre. Alguma coisa que a equipe de limpeza não poderá lavar. E ela vai voltar a esse ginásio daqui a alguns anos e vai contar ao filho: "foi ali que a Dinamite tirou a minha marra, moleque. Foi aqui que paguei com sangue a minha precipitação."

Porque é isso que eu sou: a Dinamite, e não houve ainda quem me arrancasse o pavio antes da detonação...

-O milkshake tá derretendo, Dinamite...
-Vam'bora então, tio! - seguimos aos vestiários, abraçados. O Mason está gritando que depois tem coletiva - então, grito de volta:
-Tá, mas tem que ser no PJ's, porque eu preciso de um milkshake...

A imprensa ri, está feliz, eu nunca decepciono. O chuveiro frio ajuda a desinchar os edemas, e me traz de volta ao mundo. Sinto tudo, novamente. O frio da ducha, cada músculo cansado e entorpecido, os cabelos soltos caindo molhados pelas costas. E o tesão que sempre dá depois de uma vitória. Isso é coisa de momento, e nem pede satisfação imediata - então o ignoro, simplesmente. Visto o roupão e sento no banco, ao lado das minhas roupas. Tio Jorge já as deixou ali para mim. Visto a calça jeans surrada, uma camiseta branca e penteio os cabelos, sem olhar no espelho. Fecho os olhos e a vejo diante de mim, caída no centro do ringue, seu sangue e a lona.

Olho o espelho. Estou apresentável. Visto o agasalho e saio para o corredor que me levará de volta à rua, ao mundo dos outros. O meu mundo é aqui.

Ela está chorando no vestiário ao lado, posso ouví-la do corredor. Ela não entende, ela devia ter ganho, ela tinha dominado a luta desde o início... Ah, a arrogância da juventude! Ela chora lágrimas de menina mimada, acostumada a ter tudo o que sempre quis. Ela chora, mas vai aceitando, a fúria vai cedendo ao entendimento. E eu, que não tenho pena, que não mostro misericórdia - eu, que sou a Dinamite, cujo destino é a destruição - paro à sua porta, o capuz puxado sobre a cabeça, olhando para a rua, e digo:

-Na próxima vez que nos encontrarmos no ringue você vai me derrubar, filha. Mas ainda falta um tanto.
-Você foi melhor do que eu...
-Não era o que você estava dizendo agora mesmo. Você precisa olhar as coisas mais friamente. Não é pessoal. É uma questão de experiência. E isso você vai ter, logo. Mas não agora.

Ela não responde nada, e eu saio dali sem nem dar boa noite. A lufada de ar gelado da noite, mais fria que a água do chuveiro, impede que rolem as lágrimas. Eu seco por dentro. Eu me regenero.

-Quem sabe algum dia vocês voltam as boas, Anne...
-Ela é minha filha, Jorge. E minha oponente. Ela é a minha Vitória - e eu a venci. Honestamente, eu acho o gosto do milkshake melhor que o dessas histórias amargas.
-Então vamos, querida. O tempo cura tudo.
-Quase tudo, Mason. Quase tudo...


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