sábado, 31 de julho de 2010

Compulsivos anônimos

Boa tarde. Meu nome é Elisa, e eu sou viciada em primeiros beijos.

Ela disse e não soube como continuar. Respirou fundo. Fechou os olhos, a princípio suavemente, em seguida apertou-os bem, como se aquilo pudesse transportá-la para outro lugar - um lugar onde ela não houvesse verbalizado aquela confissão àqueles perfeitos estranhos.

Era uma reunião dos compulsivos anônimos. A maior parte das pessoas ali comia para cacete, ou trepava desenfreadamente, ou gastava dinheiro que não tinha - gente que qualquer pessoa sensata consideraria sem noção mesmo. Ela conseguia ouvir a voz da mãe, no fundo da cabeça: "o que você está fazendo aí, menina, andando com essa gente esquisita? Menina de família não confessa nada a gente sem noção! No máximo, ao padre - e olha, se souber que ele quebrou o sigilo vale até matar! Saia já daí!" Ainda ficou mais alguns segundos ali, os olhos cerrados, a respiração suspensa. E então resolveu continuar:

Pode parecer um vício singelo e pouco prejudicial. Vocês podem estar pensando "pelamordedeus, o que essa garota veio fazer aqui, porra! A gente está precisando pôr prá fora um monte e ela aqui, fazendo a gente perder tempo!" Acontece que o que pode parecer uma brincadeira inofensiva e infantil é na verdade um hábito perigoso, que já destruiu a minha vida e a de outras pessoas algumas vezes.

Eu tenho 28 anos e já estive em 15 relacionamentos estáveis, já morei com 15 pessoas diferentes, cara - homens e mulheres - e desde que saí da casa da minha mãe nunca tive endereço próprio: sempre me mudei para a casa/vida do meu novo primeiro beijo.

O primeiro beijo é uma experiência inigualável. Nada é tão delicioso, tão desejado, tão antecipado - e talvez por isso mesmo - tão hipervalorizado quanto o primeiro beijo. Fui beijada pela primeira vez quando tinha 13 anos. Eu era pouco mais que uma menina. Ele era o cara mais lindo da escola, e estava no terceiro ano do ensino médio. Ele não era só um cara: ele era uma idéia de perfeição, um ídolo inatingível. E estava ali, me beijando. Depois do primeiro beijo, do sorriso meio sem graça e da conversa sem sentido que se seguem ao primeiro beijo, veio o segundo - merda, o segundo beijo nunca é igual ao primeiro! Você já sabe como vai acontecer, como o cara vai tocar em você, como vai mover a língua... Sei lá. Só sei que o coração não bate igual, você não perde a noção de tempo-espaço, não ouve somente o ritmo acelerado da própria respiração tentando desesperadamente estabilizar o pobre coração dentro do peito.

Eu nem namorei o Ricardo muito tempo. Numa festa, três semanas depois, apareceu um cara mais velho, primo de alguma menina da minha turma, de moto, jaquetão de couro e cara de bad boy. E eu quis beijar o cara. E o Ricardo viu. E só. Ele foi embora, triste-tristíssimo, e eu nem fui atrás dele! Nem tentei conversar com ele, nem pedi desculpas!

Ela fez uma pausa. Ela chorava um pouquinho, e só estava percebendo isso naquela momento. A lágrima gordinha estava escorrendo pelo canto externo do olho direito, e ela podia imaginar a risca negra borrando seu rosto. O lápis preto sempre faz cagada. Ela nunca deveria ter usado lápis preto numa ocasião como aquela.

E eu nem fiquei o resto da noite com aquele cara. O segundo beijo sempre decepciona...

É claro que as coisas não continuaram assim até hoje. Eu aprendi a esperar um pouco mais, a controlar o desinteresse e a manter os relacionamentos. Mas nunca dura, porque eu não me importo com nada que vá além do primeiro beijo. Pelo menos não de verdade.

Quando eu fiz 17 anos, saí da casa da minha mãe com o Leonardo. Ele era o caixa da livraria que eu gostava de frequentar, tinha uns 22, 23 anos e eu sonhava com a boca dele, com sua língua, todas as noites. Ele foi o cara que me deu mais primeiros beijos até hoje. Foi com ele que eu descobri que as pessoas podiam mesmo surpreender, e foi com ele que eu pensei ter superado a minha compulsão. 15 meses depois o Leo me pegou beijando a Regina, uma menina que trabalhava comigo no Mac. Ela era lésbica. Eu nunca tinha beijado uma mulher antes. Foi irresistível. Aquilo para o Leo foi o fim. E eu me mudei para o "cafofo" da Regina - ela morava num quarto, numa pensão. Meu tempo com ela foi curto, o sexo era até bom, mas eu nunca deixei de beijar outras pessoas enquanto estava com ela - meninos e até outras meninas, amigas dela. E ela, que até curtia, achava que eu era ninfomaníaca por isso, achava que a gente ia ficar dividindo parceiras sexuais, encheu o saco de mim - nunca foi pelo sexo. É só pelo beijo. Rapidinho eu arrumei um cara que me acolheu - eu nem lembro dele direito, mas o beijo era incrível, e eu achei que valia a pena repetir.

Isso só virou um problema na minha cabeça agora. É sério. Eu estou meio que vivendo com um homem dessa vez, um homem de verdade. Ele é meu professor na faculdade de administração, e eu nem sei o que ele vê em mim! Ele é uma pessoa estável, e pessoas estáveis não costumam se comprometer com os problemas dos outros. Mas ele me pegou chorando, sentada nas escadas da biblioteca, e resolveu perguntar por quê. Eu disse a verdade: tô cansada de viver de mudança! Eu nem tiro mais as minhas coisas das caixas... Ele sentou do meu lado e deu uma risada - e me escutou de verdade. E eu beijei ele. E eu senti uma coisa que eu nunca tinha sentido antes, e que eu não sei explicar, e que a minha mãe diz que é amor. Porra, o cara é casado, mas me botou num apartamento dele e disse que eu posso chamar o lugar de minha casa, e dar o endereço como meu! Ele vai lá todo dia, antes ou depois do trabalho, me ver. E todo dia beijá-lo é como a primeira vez... Eu estou apavorada como nunca estive antes - mas isso não é suficiente para me fazer parar. Eu ainda beijo uma pessoa diferente por dia. Às vezes mais. Pelo menos beijava. Até ontem.

Ontem eu descobri que estou grávida. A partir de agora eu sou responsável por outra pessoa. E é por isso mesmo que não posso mais viver essa vida doida de não ter paradeiro, de não me importar com as pessoas, de querer só a emoção acima de tudo. Essa criança precisa ter um lar, não só uma casa. E ela nem precisa de pai! Ele é casado, e eu não quero destruir a vida de ninguém. De mais ninguém, nunca mais. Eu quero encontrar equilíbrio na minha vida! E nem é por mim. É por ela - ou ele, ainda nem dá prá saber...

Quando terminou estava exausta. Não sabia o que fazer com o que tinha dito. Mas era tudo verdade. Havia muitas pessoas ali olhando para ela, e em cada olhar havia compreensão e mais alguma coisa indefinível - talvez fosse acolhimento, ela não saberia dizer. A pessoa que estava dirigindo a reunião disse somente "Obrigado, Elisa."

E ela começou a chorar.




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