quinta-feira, 17 de junho de 2010

Aconteceu no consultório (epílogo)

-Covarde.
-Marion, você não entende...
-Entendo sim, Ronaldo. Até bem demais.
-É que você acabou de sair de casa, eu não acho certo a gente assumir o nosso romance publicamente assim, de cara. Dá um tempo para o cara respirar, Marion.
-Ontem - ontem, Ronaldo - você estava quase histérico com a perspectiva de eu trepar com ele. Agora me vem com essa...
-Você não tem respeito por ele, não?
-Ah, eu tenho sim, meu caro! Eu abri o jogo com ele, derramei meu coração aos pés dele - e ele me perdoou. Ele sofreu, eu sofri, a gente se ofendeu e se desculpou. Mas no final, a gente se entendeu. E ele me ama, Ronaldo, muito além do sexo, muito além da carne!
-E agora eu não te amo? Só porque eu ainda quero deixar a coisa quieta?
-Eu não disse que você não me ama. Eu sei que você me ama, Ronaldo. Eu sei reconhecer o amor - e você me ama, eu apostaria a minha vida nisso. Mas esse amor não muda a tua covardia.
-Por que você quer me magoar assim?
-Querido, eu não estou me mudando para o teu apê. Eu quero uma vida só minha! Eu não quero ser tua dona, nem te pôr cabresto ou estribo. Eu quero que você seja tão livre quanto eu!
-Então?...
-Então que eu quero viver a minha vida! E é você que não me entende, Ronaldo! Sobre o que nós conversamos tanto, todo esse tempo?
-...
-Nós falamos sobre a minha mudança de perspectiva, de como a nossa relação descortinou um universo novo, cheio de possibilidades para mim. De como eu sempre vivi a vida que se esperava que eu vivesse, que eu aprendi que era a certa - e de como de repente tudo deixou de fazer sentido, como tudo o que eu imaginei que era a vida se modificou inteiramente. E eu percebi que precisava viver essa vida nova! Isso foi o teu presente para mim, meu amor! E eu te sou muito, muitíssimo grata por tudo isso.

Ela se levantou do sofá, sentindo o peso de seu novo mundo em suas costas. Ele tinha transformado tudo - mas não estava disposto a seguir com ela. E ela não podia esperar.

-Eu te amo, acho que vou amá-lo sempre, para sempre. E não preciso que você me ame, ou que esteja ao meu lado, para seguir te amando. Mas tenho um caminho pela frente, uma vida nova para construir - e é uma vida solitária. É só minha. Eu estou te convidando a seguir ao meu lado por mais alguns quilômetros. It's up to you.
-Marion, me escute: eu quero ficar com você. Por que eu preciso colocar isso no jornal assim, de uma hora para a outra? Não dá para as coisas continuarem como estão, por mais algum tempo? As cabeças esfriam, as opiniões se atenuam... Sei lá, as coisas correm mais suaves quando o tempo se coloca entre os acontecimentos. Por favor - seja razoável.
-Ok, Ronaldo. As coisas ficam como estão - a gente está junto, mas ninguém sabe. Logo, não é oficial. Aí eu sigo minha vida, saio com meus amigos, vou ao cinema, ao teatro, sento para tomar um chopp com o pessoal do tribunal depois do expediente. E um dia fico com alguém. Mas eu não estou com ninguém mesmo - pelo menos não oficialmente - e ninguém vai pensar nada de mim. Só você. Só você vai sentir isso como uma traição terrível! E vai dar um escândalo - só por isso, né? E nem é nada - afinal, quem escolheu essa situação foi você. E para que eu vou querer fazer segredo? Por causa da opinião dos outros sobre mim? NUNCA MAIS, Ronaldo! Nunca mais a opinião dos outros vai reger a minha vida. Agora a batuta está nas minhas mãos, e a maestrina sou eu. E eu não preciso que pensem que eu sou perfeita - eu só preciso viver de verdade.
-E o meu amor por você não é verdade só porque eu não quero assumir o nosso caso publicamente, ainda? O meu momento vai chegar, Marion. Tenha paciência.
-Ronaldo, o teu momento não vai chegar - pelo menos não comigo. Se tivesse chegado, essa conversa não estaria acontecendo. Quando a coisa é prá valer, a gente simplesmente sabe.
-Acho que chegamos a uma encruzilhada aqui.
-E eu prefiro ir por um caminho que você não pode seguir, meu amor.

Ele ainda tentou conciliar, tentou tocá-la - mas ela rechaçou o contato. O que ela queria era que ele a tomasse nos braços, perdesse o controle, reagisse emocionalmente ao que sentia por ela. Que cometesse uma loucura. Ela precisava sentir-se importante, desejada, amada. Precisava sentir que nele havia disposição para entregar-se. Ela acreditava no poder do desejo do outro. Aquela conversa tinha sido muito cansativa. Ela sentia-se drenada, esgotada. Derrotada. Sentia que era provável que o próprio Ivan a recebesse de volta, que ignorasse tudo sobre o que conversaram na véspera, apenas algumas horas antes - somente pela força do seu desejo por ela. Mas aquele homem para quem ela era novidade, aquele homem que tinha desejado dormir e acordar ao seu lado quando isso era proibido - aquele homem temia. E não enfrentaria o seu medo, nem por ela, nem em nome de seu próprio desejo. Ele era um covarde - e ela lamentava. No fim das contas, tudo o que ele lhe deixou de presente, a herança daquele amor era um bem precioso, muito maior que o relacionamento em si. E por mais que ela o amasse, por mais que sentisse o impulso de humilhar-se para beijá-lo, nem que fosse só mais uma vez - ela amava mais a si mesma, e tudo o que conquistara naquelas breves semanas era importante demais para negligenciar.

Ele queria fugir, queria ter forças para confrontá-la, para defender-se da sua acusação. Por mais que eles tivessem argumentado, ela só fizera uma acusação: ela o chamara de covarde. Ele quis se defender, quis gritar para o mundo que aquilo era uma mentira - mas ela estava certa, e ele sabia. Era covardia recuar ali, na marca do pênalti, e oferecer a outro jogador a glória de marcar o gol da vitória. Ele estava apavorado, e não tinha forças para assumir aquela mulher incrível, poderosa, forte, aquela mulher que se permitiu dar as costas para toda uma vida e trilhar um caminho diferente. E ele sabia que ela não estava mentindo: ela seguiria sem ele. Ela não tinha deixado a vida que conhecia por ele. Ela estava se lançando no desconhecido, em busca de uma felicidade que só agora ela vislumbrava. Estava encantado: ele tinha descortinado essas possibilidades diante dela, e aquela mulher que já era especial ganhou um brilho, uma cor, uma luminosidade indefinível - e ele a amava ainda mais. Não queria perder sua liberdade - mas lá no fundo sabia que não havia liberdade para ele longe dela. Ela era igual a ele - mas andava na luz. Ele tinha escolhido, há muitos anos, se encolher na sombra. Ele queria tudo o que ela tinha para oferecer - mas não queria pagar o preço. Não daria a ela a única coisa que não podia dar a mais ninguém. E não era a sua liberdade. Era o seu eu - e era dela.

Enquanto ela se afastava em direção a porta do consultório, enquanto eles ainda estivessem ali, sob aquele teto, dentro dos limites daquela sala, ainda havia uma esperança. Ela segurou firmemente a maçaneta. Respirou fundo, tentando controlar o tremor que agora dominava seu corpo. Girar aquela maçaneta era dar adeus definitivamente - ela sabia. Queria muito abraçá-lo, colocar sua cabeça no colo e acolhê-lo - se ela fizesse isso, essa nunca seria uma relação de igualdade, e ele sempre teria tudo do seu jeito. Ela queria caminhar ao seu lado, não na sua sombra. Aquilo não era orgulho. Ela não estava somente defendendo a sua posição. Ela estava resguardando toda e qualquer possibilidade de igualdade no futuro, entre eles. E ela não sabia porque estava ali, parada com a mão na maçaneta, dando a ele mais uma chance. Ela sabia do que precisava. E sabia que ele não estava disposto a dar.

Ele sabia o que ela estava fazendo. Ela estava esperando por um gesto. Aquilo era quase uma humilhação para ela - ela estava certa, ela entendia tudo, ele sabia que ela era a única mulher capaz de abraçá-lo, colocar sua cabeça no colo, afagá-lo, e dizer-lhe que tudo ia ficar bem. E ele acreditaria. Ele só precisava pedir - ela nunca o faria implorar. Ela só precisava que ele descesse do pedestal por ela. Ele sabia que era o único jeito de mantê-la ali, junto de si. Uma parte dele, confinada no fundo da consciência, queria correr para ela, tomá-la nos braços, dizer que a amava e que não se importava com nada - nem mesmo com o medo que estava sentindo - e que seria assombrado por sua ausência, se a deixasse cruzar aquela porta. E seria tudo verdade. Ele sabia que ela sabia.

-Se você quisesse, essa experiência podia mudar toda a sua vida, como mudou a minha. - Ela disse para ele, ainda fitando a porta, temendo por sua força se olhasse para ele.
-Eu sei, Marion. E me sinto pequeno e indigno por não ter coragem de fazê-lo. - Ela podia ouvir o cansaço na voz dele, reverberando nas paredes, tremendo tanto quanto ela. Ele estava admitindo, mas isso não significava que ele fosse dar o passo.
-Não há mérito no amor. Ele é gratuito, e é teu. Você não precisa ser digno. Só precisa se deixar amar.

Deixou rolar uma lágrima - que já estava a muito pendurada em seus olhos. Ele ia deixá-la partir. Girou a maçaneta, e o gesto em si deu-lhe a força que faltava para pôr o pé para fora daquela sala e ganhar sua vida nova.

-Você tem meu novo endereço.
-Tenho; tenho sim.
-Adeus, Ronaldo.
-Até breve, Marion.

(Ela não sabia, mas outro bloco dela, antigo, já estava infiltrado. Ela teria que voltar. Afinal, aquilo era um consultório odontológico...)

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(Agora sim: fim!)


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