segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Na chuva...

Queria correr para longe, queria sentir a chuva... A água da chuva, a lavar-lhe a alma, a escorrer-lhe pelo corpo provocando arrepios incontroláveis. Queria fazer amor com a chuva.

Não podia lembrar-se de quando aquele romance começara. Era ela ainda menina, e fugia para o quintal sempre que chovia. No princípio era somente uma brincadeira de criança: enlamear-se para que sua mãe quase enlouquecesse de raiva dela, entrando assim toda suja pela casa, tornando imprestável o tapete persa, presente do bisavô... Ela sabia que levaria umas boas palmadas pela travessura, mas era tão gostoso...

Com o passar dos anos, entretanto, a mania não a deixara. Ela ainda escapulia para o pomar do sítio da tia avó, e permitia que seus dedos afundassem na lama, que a chuva colasse o vestido em sua pele, revelando-lhe os contornos do corpo de mulher. Dançava na chuva como uma pagã, em louvação à divindade da fertilidade, cega e surda aos apelos maternos, aos olhares do mundo... E caía, quantas vezes caía, e rolava pelo chão de terra, terra molhada, perfumada e fértil como a sua imaginação. Sempre vira na chuva uma amiga, um amante, uma confidente, um cúmplice. Sempre a chuva para ela como um amigo, íntimo, leal.

E agora essa novidade: andava obcecada pela ideia de dividir seu ritual da chuva com ele. Porque ele não era um ele qualquer. Porque, em sendo ele, ela - a chuva, jamais se negaria, ou ressentiria.

Ele estaria lá, no sítio da tia avó, naquele fim de semana. E todas as previsões meteorológicas eram unânimes: chuva na madrugada. Nas noites que precederam o fim de semana, ela acordou banhada em suor, os sonhos que povoavam a sua imaginação, seu inconsciente, impublicáveis.

Ele chegou na sexta. Já era quase noite, e a chuva o precedera. Por algum motivo inexplicável, todos os primos decidiram ir a Paty aquela noite - e tinham saído uns quinze minutos antes de sua chegada. Ela estava sozinha. Não quisera ir, não podia estar fora, precisava vê-lo chegar. E também, a casa não podia estar vazia, o amigo tinha que ter quem o levasse até eles. Então, resolveu-se que ela ficaria. E pronto. Foi o fado.

Ela estava no pomar quando ele chegou, sentada no chão de terra, encharcada e enlameada até os ossos. Ela tremia, seus lábios roxos e suas mãos doloridas pela água fria. E ela adorando cada instante. Ele pensou em despertá-la do transe, mas preferiu observá-la de perto, oculto por uns arbustos. A lua já atravessava as nuvens menos densas, e sua luz diáfana conferia um colorido onírico aquela cena - a moça que se entregava à chuva parecia saída de um conto de fadas, e mesmo assim era tão real...

Ela percebera sua presença, mas resolveu permitir que ele a observasse. Como poderia negá-lo? E era a única maneira de saber se ele entenderia. Então, depois de alguns minutos, ela voltou-se para ele. Sabia exatamente para onde olhar, e, ao perceber que havia sido descoberto, ele corou violentamente. Por sorte, ela não poderia sabê-lo. E no entanto, ela não se mostrava assustada, ou tímida. Ela o esperava, ele agora sabia. Ela sorriu, e seus olhos o convidavam a chegar perto, a participar daquele seu momento. Tão transparentes, tão claros, e tão irrecusáveis...

Aproximou-se lentamente. Temia que aquele quadro se dissipasse por completo se fosse descuidado. E não disse palavra, pois palavras eram mesmo desnecessárias. Suas mãos a tocaram de leve nos ombros. Ela deu uma risada e o derrubou no chão. Ele ficou ali, estatelado no chão escorregadio, a olhá-la, incrédulo. E ela pousou os lábios nos dele, à princípio suave e em seguida poderosamente, a força de seu desejo subjulgando a última gota de recato que lhe restara, a chuva lavando todas as máscaras que se colocaram entre eles.

Ele devolveu-lhe o beijo na mesma intensidade. E, como num balé ensaiado à exaustão, suas mãos percorreram os corpos um do outro, sem pressa, traçando os caminhos do desejo com terra e saliva em suas peles. Ela, encantada, mergulhava em seus olhos, em sua boca; sugava da fonte todo o seu amor, que até momentos atrás estivera oculto. Ele, febril, queria sentir cada centímetro quadrado da sua pele, marcá-la como sua, seu amor confundindo-se com seu desejo.

E aquele luar filtrado iluminava os corpos terracota, as unhas dele cravadas em seus quadris, a grama pontilhando de verde a pele alva manchada de barro vermelho, as roupas dos dois já largadas pelo pomar, demarcando a trilha dos amantes da chuva. Na clareira, onde o luar dominava, finalmente consumou-se o amor, seus corpos como um, ele pesando sobre ela, ela cedendo feliz à sua própria sedução. E a chuva testemunhando o milagre que se fez ali, abençoando como um deus pagão seus dois adoradores.

E para ela o amor se fizera a três: ela, ele, e a chuva.

No dia seguinte, quando o Sol pôs enfim a cara larga e ofuscante no céu, encontrou os dois adormecidos no carramanchão, e quem visse de longe acreditaria serem a escultura de amantes: seus corpos ainda cobertos de terra formando um conjunto harmonioso.

Acordaram, entreolharam-se e sorriram. Sabiam que nada mais seria como antes. E não poderiam estar mais felizes. Se houve algo a ser dito, a coreografia do amor tornara desnecessário. Ele a amava, ela o amava. Ponto.

Até a próxima chuva.

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