sábado, 1 de março de 2014

Dipshit pelo mundo

Enquanto o blog fica aqui pegando poeira, os textos que nasceram nele, nessa experiência literária, viajam pelo mundo. Através das tramas da web, as minhas palavras chegam longe, a outras pessoas, outros países, outras culturas. E chegam traduzidas. Explico: em 2012, o texto que publico a seguir foi traduzido para o inglês pelo projeto Contemporary Brazilian Short Stories e também figura na coletânea CBSS vol.2, lançada no início deste ano, e disponível aqui. E agora, para expandir os horizontes dessa história, o mesmo texto foi traduzido para o espanhol, pelo projeto Cuentos Brasileños de la Actualidade.

Em Incendiária, o bloqueio criativo é visto pelo ponto de vista do personagem. Ela estava espalhada pelo chão do meu quarto, em folhas de papel amassadas, rasgadas, nunca queimadas. Lembro que me ocorreu que ela devia estar furiosa comigo. "Se ela pudesse tomar as rédeas..." eu pensei. E ela ganhou voz.

Para comemorar o fato de mais pessoas poderem conhecer o meu mundinho, no idioma delas:


Incendiária


Quantas vezes minha história já não foi escrita? Quantas vezes, e por que caprichos o autor não me rasgou as páginas, começando novamente do zero, outras possibilidades e desfechos espalhados pelo chão de sua sala em desalinho – só para depois encontrarem seu destino final, perfeitamente misturados a uma multidão de outros dejetos e chorume – sem sequer terem a chance de ser reciclados?
Incinerá-las seria mais decente da parte dele. Enquanto ardessem, no meio das chamas, fulgurariam num clarão digno do festim de São João, o calor alimentado por elas vivificando as pessoas congeladas a sua volta, a pira sacrificial inflamada como cada palavra perdida e desperdiçada ali. A fumaça se elevando aos céus como oblação ao divino, a força motriz de cada verbo – ação e reação – provocando as mais acrobáticas revoluções no filete ascendente de resíduos daquela quase existência. Saber perder não lhe ocorria com a mesma facilidade de antes. Tinha perdido demais até ali. Não tinha mais estômago para seguir perdendo. Abriria mão de tantas coisas quantas fossem necessárias – será que era realmente necessário perder tudo, tantas vezes, e continuar tocando em frente?
Se era verdade que a sabedoria viria, já estava atrasada. Já se havia passado tempo demasiado, décadas em compasso de espera – e ela aprendera muito pouco, de verdade. Sim, sentia-se ignorante de tudo, mesmo daquelas coisas que ela mesma inventara nas horas em que se permitia o exercício da criação. Tão presunçosa, fazendo aquilo que era reservado aos deuses: de dentro de si, do cerne do ser, iluminado e aquecido pela tal fogueira, emanações de átomos e moléculas davam origem a um universo original e novo. Totalmente novo. Daqueles que cabem numa minúscula cúpula vítrea, e desfilam dependurados na coleira de um gato durante os 120 minutos de duração da película. E de cuja existência e preservação podem depender as vidas da Terra.
E mesmo assim ela preferiria que ele tivesse a decência de incendiá-las.

Um comentário:

Unknown disse...

Querida, nem é preciso dizer que é uma beleza! Vc consegue transformar a experiência de vida em poesia, literatura, arte e aí não é mais vida, é texto vivo...

As regras do rolê

As regras do rolê são bastantes simples: Fode, mas não se apaixona. Se apaixonar, não fode mais, pra não se foder depois. Tudo o que te ...