Ela olhava o horizonte encoberto procurando por trás das nuvens os contornos do maciço conhecido a sua frente. E suspirou. A tempestade que se formava não combinava com o champagne, e no entanto refletia como num espelho cristalino a escuridão em seu coração. Era o fim - como no princípio. E ela não deveria mais se surpreender. Quantas vezes já tivera que recomeçar?
Os olhos pousados no horizonte sustentavam o peso de seu corpo, um cabo de aço estendido no espaço entre ela e a amplidão. Havia um mundo a conquistar. Havia tempo - mas era sempre menos tempo, cada vez menos tempo... Ela imaginava, no passado, que eventualmente encontraria o caminho certo a seguir, e tudo entraria nos eixos, como mágica. A cada movimento no tabuleiro de xadrez da vida essa teoria parecia menos provável, e dessa vez estava claro que não havia um caminho certo para ela, que sua vida sempre a levaria para longe, cada vez mais longe - e inacreditavelmente, cada vez mais perto da origem.
Naquela tarde tempestuosa, ela foi até o quarto pela última vez. Recolheu suas roupas e poucos pertences, limpou o cômodo cuidadosamente, como se para eliminar os vestígios de sua passagem pela Terra, arrastou a mala até a porta e olhou para trás, conferindo se por acaso algo de seu ficara ali. Fechou a porta atrás de si com firmeza, e afastou as lágrimas que queriam chegar sem convite. Dirigiu-se à sala de estar, onde os herdeiros já estavam reunidos, os abutres. Por três anos inteiros ela cuidou daquela mulher moribunda. Sim, ela era terrível e cruel, e não tinha palavra alguma de carinho para quem quer que fosse. Mas era um ser humano.
Durante três anos: nem telefonema, nem visita. Sequer telegramas de aniversário. Era como se a defunta fosse a criatura mais solitária do universo, e ela se compadeceu imediatamente do sofrimento da pobre mulher. Era acompanhante, cozinheira, enfermeira e ouvinte. Nos últimos meses, as dores cada vez mais excruciantes fizeram com que os médicos receitassem morfina - e a mulher passava as poucas horas de lucidez contando, sem nexo ou noção de tempo, histórias de seu passado. Só então ela soube que havia família, herdeiros.
Não se surpreendia. Não era a primeira vez que via isso acontecer. O que de fato tornava tudo aquilo intolerável para ela, o que trouxera a melancolia com as bolhas do champagne, fora a necessidade de recolher suas coisas e partir novamente. Estava cansada de ir embora. Precisava de uma vida que fosse sua, para onde voltar quando o fim chegasse novamente. Precisava de pouso. E a ironia nisso tudo era que ela tinha deixado a família para se aventurar numa vida sem pouso certo, sem raízes - porque ela acreditava que só assim seria realmente livre.
Tinha finalmente se cansado de ser livre. Sua liberdade era uma corrente a que estava presa, e que ela escolhia atrelar à vida de alguém com dias contados. Era a ilusão de liberdade que um grande viveiro dá ao pequeno canário. Seus novos cenários eram sempre dor e morte, com pequenas variações de como e por quê.
Recebeu do advogado da família o último pagamento, mais uma pequena gratificação pelos bons serviços prestados à Dona Carmela - segundo ele, um presente da falecida - e despediu-se com pêsames a todos. A filha mais velha deu-lhe também um par de brincos de pérola, e ela sentiu que eram como uma esmola - mas achou que não seria apropriado recusá-los. Agradeceu de olhos baixos e retirou-se em direção a porta da rua.
Partiria para a missão mais dolorosa de sua vida - era a sua velha mãe que definhava agora. Quando seus pés alcançaram a calçada do outro lado da rua e seu braço estendido fez parar o taxi, as lágrimas indesejadas afloraram como nascentes - e ela pensou que era melhor chorar no caminho.
Ela não sabia por quanto tempo conseguiria reter as lágrimas dessa vez.
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