terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Underfed

Recolho as migalhas de amor que caem da tua mesa - diligentemente, sem pressa. Na constância deste ato reside a cadência da minha vida. É delas que se alimenta esse meu lado obscuro, andarilho e vadio, e ele vive mal humorado, irritado e triste - porque está sempre faminto.
Me alimento de migalhas, enquanto você se farta de amor, outros contigo. A família tão perfeita, santificada pelo banquete constante; a lealdade parasitária dos amigos, dos colegas de trabalho, dos vizinhos... Todos eles drenando tua energia vital, enquanto você se esforça para impedir que as tuas migalhas cheguem até mim...
Quantas delas você me sonega, quando passa o papel absorvente sobre a toalha do jantar, quando chega antes de mim com a vassoura e a maldita pá e as lança ao lixo? Eu posso viver muitos anos, posso ter só mais uns mil dias, posso perder o rumo dessa prosa e mudar de assunto - e se isso acontecer, quem vai se importar de recolher essas pobres migalhas? Só eu preciso fazê-lo: você se dá a todos graciosamente, generosamente - dá de si o que tem e o que lhe fará falta! - mas para mim, negará até essas migalhas, enquanto puder.
E, quando te faltarem forças, quando te drenarem até que reste um quase nada qualquer, quando de ti pouco houver de reconhecível, você virá a mim - e eu, mendiga e suja, faminta e fraca, ainda tirarei de minha boca o que não tiver para entregar! A seiva lacrimejante e óbvia da minha adoração de folhetim, essa mentira que alimento de lembranças mofadas - essa vai ser tua salvação, e o meu declínio.
Enquanto estiver ao meu lado, tudo o que há de verdadeiro e puro e impossível será teu. Mas até isso durará um átimo. Eu posso estar faminta, e estar à morte, mas qualquer colherada mal cheia de meu amor é amor demais. E em pouquíssimo tempo, lá se vai o moribundo - mais vivo do que nunca, do que ontem, quando bateu à porta e deitou na minha cama, e nem fez amor comigo, por fraco demasiado - lá vai o renovado, distribuir por aí o que recebeu na casa da miséria.
É assim por não haver outra maneira. Se houvesse, se eu a encontrar... As migalhas se acumularão em outro lugar.

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