terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Cinema mudo

Ela estava tão cansada...

Fora uma semana árdua, de trabalhos pesados e extenuantes - tanta coisa a fazer, tanto para pôr no lixo, Tanto lixo para pôr em ordem, tanta resolução ainda antes do momento da despedida - e ela, que sempre se soubera uma insone, vinha dormindo o sono dos inocentes. Sentia-se vivendo uma existência concreta pela primeira vez - era como se a história que trilhara até ali fosse etérea, virtual - pela força do contraste entre as realidades: agora e então.

Ah, a vida simples! Pela manhã, para o café, nada além de pão com manteiga e o bom e velho preto. Almoço frugal e depois, só a sopa na hora do jantar. Água fria para banhar-se e cama para dormir - nunca mais para fazer amor. O amor que existisse no mundo estava no passado, já fora todo feito, realizado. Restava somente a contemplação do amor manufaturado-pretérito. Os artífices do passado viveram tempos mais auspiciosos. Hoje era em meio à sombras que ela deslizava, e não havia para ela amor que não multicolorido. Amor em grayscale não era senão um simulacro, um invólucro mal acabado para o verdadeiro amor.

O que mais lhe surpreendia era que o amor mais colorido que jamais fora retratado fosse o de seus pais, que viveram na época dos filmes mudos, realizados totalmente em preto e branco. Encantador como em filmes antigos se possa ver as cores não registradas na película... Basta ter imaginação, e dar-lhe espaço para espalhar-se...

É mais fácil uma existência de trabalhos árduos, braçais. Contraditoriamente, nunca antes sua mente acadêmica tinha ficado tão relaxada - e nunca antes tinha tido tempo para divagar sobre a realidade do amor em preto e branco. Em sua vida, nenhum amor jamais tivera as cores de Casablanca, de My fair Lady. Eram tecnicolor, mas também desbotados. Por mais que ela se esforçasse, por mais que se lhes derramasse por sobre a palheta brilhante, seu pequeno sol incandescente, vermelho-vivo, sobre o coração do outro. Muito mais fácil existir em andrajos e farrapos, coberta pela poeira cintilante que em vão passara dias tentando remover de sobre os móveis, os aparatos tecnológicos, os eletrônicos. De sobre as caixas onde guardavam papéis tão desimportantes como a própria natureza desse trabalho inútil.

Sempre haverá poeira para espanar. Sempre haverá a possibilidade de contemplar o amor da sombra, contemplar o pretérito daqui - do presente. Sempre haverá o cinema mudo - e suas cores imaginárias.

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