terça-feira, 27 de outubro de 2009

Lusco-fusco

Então era verdade.

Respirou fundo - não tinha mais nada a temer. Seus olhos fundos fitaram a escuridão do quarto como se fosse dia claro. Via nos contornos e volumes camuflados na penumbra as cores dos objetos familiares, e era como se sua imaginação pudesse acender a luz do recinto e revelar-lhe os matizes como que por mágica.

Mas estava escuro, era o cair de mais uma tarde de terça-feira, e sua vida estava passando muito rapidamente. Via um borrão de púrpura encobrindo suas lembranças da última semana, do último mês, o ritmo frenético da corrida contra o relógio, a semana de provas, os resultados, a comemoração - finalmente médico, agora residente, depois, com sorte e perseverança, quem sabe! - e de repente a freada brusca: era verdade.

Aquela comemoração foi o começo do seu fim. Ela apareceu na porta do diretório acadêmico, linda e etérea, como sempre. Era fim de ano - meu Deus, fim de ano! - e ainda assim ela apareceu. Seus olhos tinham a mania de encontrá-la em qualquer lugar, eram arrastados para ela. Mas nunca tinha encontrados os dela a fitá-lo. Pelo menos não daquela maneira. Ela o estava encarando. Devorando. Com os olhos. Ah, aqueles olhos! Quanto estrago pode uma só mulher operar no mundo com um mísero par de olhos? Depende de que olhos são esses, e de como essa mulher - a dona dos tais olhos - sabe usá-los... E essa cretina sabia. Olhava como se sempre o tivesse feito daquela maneira, como se nunca o tivesse desdenhado na vida. Olhava ainda como se ele fosse a oitava maravilha do mundo, e como se nunca antes os tivesse ela pousado sobre ele.

Agora, o mal estava feito. Ele pausou em sua mente o momento em que ela se voltou para ele, e reviveu em slow motion sua ascensão ao paraíso: ela caminhando em sua direção, sua boca ávida cobrindo a dele, seus lábios deixando marcas vermelhas de batom sobre a pele dele, suas unhas lanhando a pele dele. Respirou fundo mais uma vez, mas não acelerou a lembrança. Já que cairia por ter cometido aquele erro, queria rememorá-lo à exaustão, e revivê-lo perfeitamente.

Ela estava ali, em seus braços. Encostava-se a ele como se sua vida dependesse disso, como se só os seus batimentos cardíacos pudessem fazê-la viver. Pediu que ele a tocasse. Não, ela exigia, fervorosamente: "Eu quero você, Eugênio. Quero que você me toque. Quero que você me tenha. Quero ser sua." Todo o seu corpo parecia reforçar suas súplicas, trêmulo e ofegante. E ele não poderia negar-lhe nada - nem a própria destruição.

Todos os seus sentidos, alertas, indicavam que aquilo era uma cilada. Mas o sentido do tato gritava, e suas mãos percorreram aquele corpo que as exigia como se não houvesse outra alternativa. E não havia. Seu corpo mesmo já gritava por ela há anos, e não era agora, em seu momento de júbilo, que ele se negaria aquele prazer. Em meio ao torpor alcoólico, um por um seus colegas e amigos deixaram a cena, enquanto ele mandava todos embora e jogava no chão as revistas, copos e garrafas que estavam sobre a mesa do D.A. - seria ali mesmo. Aquele parecia o cenário perfeito. Afinal, quantas vezes ela já o desprezara ali? Quantas vezes recusara seus convites diante daquelas mesmas pessoas que ele dispensava naquele momento? "É aqui mesmo, sua bandida" - ele pensou. E a deitou sobre a mesa molhada de cerveja, entre restos de salgadinhos e aperitivos diversos. Rasgou-lhe a meia calça, na tentativa vã de tirá-la. Ela riu - e aquele riso foi para ele mais um desprezo, e ele resolveu que não ia mais ser bonzinho. Junto com o resto de dignidade, ele engoliu as palavras de amor que pensara sussurrar-lhe ao pé do ouvido. E, ao invés de fazer amor com ela, ele simplesmente a comeu.

Pode parecer irrelevante, mas aquilo destruiu Eugênio por dentro. Comê-la era a última coisa que ele imaginava fazer na vida. Mas foi assim que aconteceu - "A primeira vez que eu e sua mãe transamos, meu filho, eu comi ela! Não, não foi amor não! Foi uma foda!"

Esse pensamento cortou o flashback - um corte seco e definitivo. Corte de katana.

Era verdade. Aquela foda atrapalhada e violenta, aquela foda ressentida e maldada - aquela foda gerara em seu ventre uma vida. E ele, que sonhara por seis longos anos em conquistar o amor daquela linda e inatingível criatura, via-se agora unido a ela pela obrigação de encarar uma responsabilidade. "Ela está grávida, Geninho. Todo mundo sabe que você comeu a Regina naquela noite. O filho é teu, cara." Ele ainda podia ouvir o Altamiro soprando aquela sentença na sua cara. "É teu e pronto! Mesmo que não seja..." E as risadas daquele amigo da onça filho de uma rameira ecoando em seus ouvidos pintavam de vermelho sangue e noite escura a aurora de sua nova vida de residente do hospital geral de Patos...

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