quinta-feira, 2 de maio de 2013

Minúcias (parte 2)

"Eu só sei dizer que chovia, que naquele dia a noite caiu sobre a cidade às três horas da tarde, e que em questão de minutos estava tudo alagado, e não dava mais para sair do laboratório. Eu fiquei ali, vendo os meus colegas resolverem ir embora, um por um. Fiquei com medo, sei lá por quê. O meu marido, então namorado, estava fora da cidade, trabalhando num projeto novo, e devia estar de volta em duas semanas. Eu liguei para ele, contando a situação, e ele concordou que a melhor opção era ficar onde estava - seca e em segurança. Só me fez prometer que ia trancar tudo, e se despediu.
De repente eu fiquei sozinha. Completamente sozinha. E me deu medo. Da janela, a situação parecia não ter mudado. Tudo cheio. E eu meio que entrei em pânico. Ali, sozinha, presa numa sala minúscula e repleta de fósseis... Então eu peguei as chaves e algum dinheiro, deixei a mochila no laboratório e saí para descobrir se alguém ainda tinha ficado na faculdade, e se dava para tentar ir para casa. E esbarrei nele na papelaria. Literalmente esbarrei. Eu peguei um livro qualquer numa prateleira da loja, e o estava folheando e andando em direção ao caixa quando esbarrei nele. O pedido de desculpas mútuo foi substituído por um sorriso meio sem jeito. E logo ele quis saber se eu ia tentar ir para casa, emendando que tinha um grupo de alunos que ia ficar no refeitório durante a noite. Eu disse que tinha onde ficar e agradeci, e ele perguntou se eu ficaria bem, sozinha. Ele tinha um jeito especial de olhar, era como se ele realmente visse você, ele podia olhar através de mim. E eu fiquei sem palavras."
Ela fez uma pausa comprida. Inspirou profundamente e deixou o perfume da chuva tomar conta dos seus sentidos. Era difícil falar daquilo, mas ela lembrava de todos os pequenos detalhes daquela noite: o cheiro do hálito dele, o gosto do beijo, o tamborilar da chuva na janela do laboratório, o calor do desejo e o peso das suas mãos sobre o corpo dela. Era emocionante poder falar daquele episódio abertamente a alguém genuinamente interessado no que ela tinha para contar. Tentou se concentrar de novo. Ela precisava terminar o que tinha começado.
"Ele só sorriu e me perguntou se eu queria comer alguma coisa. Diante da minha negativa, se ofereceu para me acompanhar até a minha sala. Eu comecei a agradecer e de repente aceitei sua oferta. Eu já tinha recusado tantos convites dele naquela noite que fiquei constrangida em negar mais aquilo. Ou talvez, em algum canto da minha cabeça, eu já estivesse revolvida. Não tenho certeza.
Caminhamos até o prédio onde a minha sala ficava. Conversamos todo o tempo, e como a gente tinha assunto! Ele fez questão de me levar até o terceiro andar. Subimos de escada - o prédio estava sem energia - e ele já ia se despedir quando eu ofereci um café. Sempre tinha café naquele lugar. E ele aceitou na mesma hora.
As coisas ficam confusas nesse ponto, e eu não sei dizer como foi que tudo começou, mas me lembro de todos os detalhes do que aconteceu ali. Acredito que esse não seja o objetivo da sua pesquisa, então vou omitir isso. O importante para mim é que, apesar de ter acontecido há tantos anos, é mais significativo contar isso aqui do que o meu último romance. Há um padrão, entende? Os affairs se repetem, seguem fórmulas. Eles podem vir em cor e tamanho diferente, mas são fórmulas. Eu sempre dou nomes aos meus compostos. Essa é a fórmula Fernando: acontece meio sem querer, cresce rapidamente e exige tomada de decisão. Sempre acaba do mesmo jeito: eu sofro porque não quero abrir mão, mas sei que é preciso, e nunca mais o vejo. Eventualmente fico sabendo dele por algum conhecido. Ele sempre está muito bem e aparentemente nem se lembra que eu existo. Eu nunca me esqueço dele.
Desse jeito só me aconteceu duas vezes. E eu nunca me esqueci de nenhum dos dois, mas também não sou cruel ou cretina a ponto de procurá-los. Eu sei que poderia machucar - ou ser machucada. Em qualquer dos dois casos é sofrimento desnecessário, porque não há solução para a questão.
Terminou três meses depois, ele me dizendo que se eu terminasse o meu namoro estaríamos casados em seis meses - e, se não o fizesse, jamais o veria novamente. Eu morri um pouco por dentro, mas não vi a opção que ele me mostrou. Eu não vi. Para mim não era possível dar as costas ao meu namorado. A minha lealdade estava em outro lugar. E ele se foi."
Ela sentou na chaise em frente à mesa de Inácio. Estava cansada. Contar aquele história tinha drenado suas energias. Ele achou melhor deixar as perguntas para outra oportunidade.
-Vamos parar por hoje.
-Eu agradeço, Dr. Inácio. Acho que relembrar tudo isso sobrecarregou meu sistema... Você tem alguma pergunta? - Ele percebeu um certo receio na voz dela.
-Você teme as perguntas.
-Não, doutor. O julgamento das pessoas me incomoda, só isso.
-Eu não estou aqui para julgá-la, Teresa.
-Ah, não - mas vai fazê-lo. É da natureza humana, julgar. - Ele não retrucou.
-Então eu prometo guardar meu julgamento para mim.
-Talvez não seja uma boa ideia essa sua pesquisa, afinal. Estou me expondo a esse julgamento à enésima potência.
-Você quer desistir? Eu não quero pressioná-la, mas essa tua teoria das fórmulas me interessou muito. Queria entender como você percebe a dinâmica dos affairs, como você se referiu às relações extraconjugais. Mas você está livre para resolver o que quer fazer com isso.
-Nem são muitas as minhas fórmulas. Eu acho que nós repetimos fórmulas em nossos relacionamentos, e que elas são um reflexo de nossas personalidades e experiências. Comigo acontece sempre de três maneiras bem diferentes, mas sempre as mesmas três fórmulas: Fernando, Antônio Carlos e Laerte. Te interessa mesmo saber disso?
-Sim, Teresa.
-Então... quando eu volto?
-Na próxima quinta.
-Se eu mudar de idéia, eu prometo que ligo avisando.
-Combinado - ele disse, estendendo-lhe a mão direita. Ela retribuiu sustentando seu olhar, desafiadora.
Ele a acompanhou até a porta, esperou que ela saísse e pediu que a secretária reservasse a próxima tarde de quinta para Teresa. Ignorou a careta da mulher e fechou-se no consultório. Precisava tomar notas antes que seu primeiro paciente da noite chegasse.
Já na calçada, ela olhou a chuva que agora caía pesada. Sorriu, deixou a proteção da marquise, e a chuva a abraçou. A água estava fria. Em segundos ela estava encharcada, e ainda assim seguiu pela chuva, sem dar importância a isso.

(to be continued...)

Um comentário:

Unknown disse...

Adoro love stories... To be continued entao... Gostinho de quero mais! bjs nega.

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