quarta-feira, 1 de maio de 2013

Minúcias (parte1)

(Esse conto eu comecei a escrever em 2011, e eu até sabia como ia terminar. Por algum motivo, a ideia me deixou. Agora deu vontade de concluir a história de Tereza, então vou republicar um capítulo por dia, e recomeçar de onde parei. Espero que ela descubra seus motivos...)



E então já era quinta-feira e ela tocou a campainha da sala faltando três minutos para a hora marcada. Uma mulher de meia idade, cabelos grisalhos presos na altura da nuca num coque displicente, abriu a porta e a recebeu com uma careta de desaprovação. Ela riu de volta, desdenhosa. Enquanto esperava, ficou analisando a secretaria do Dr. Inácio: maquiagem carregada, um vestido surrado que um dia já tinha sido azul marinho, unhas muito longas pintadas em um tom de azul metálico, escarpins cinza chumbo. Ela era detalhista, e não via nisso mal algum. Alguém uma vez lhe dissera que Deus estava nos detalhes - e ela passou a entender como um elogio quando as pessoas mencionavam essa sua característica. Mas sabia que era no mínimo rude quando escrutinava alguém daquela maneira. Só não sabia como evitá-lo.

Logo a porta do consultório se abriu e Inácio apareceu na porta. Ele sorriu para ela e pediu que entrasse. Ela devolveu-lhe o sorriso, levantou-se, meneou a cabeça para a mulher entrou na sala contígua. Era muito diferente da antessala diminuta. Era ampla e muito bem decorada, mobiliada com bom gosto e sem afetação. Cada objeto ali parecia ter sido adquirido em anos de viagens pelo mundo, e o resultado era um mosaico de referências a respeito daquele homem que tanto a intrigava. Ele a havia abordado há duas semanas, no seu café favorito, enquanto ela saboreava um espresso curto olhando a chuva. Ela adorava a chuva, e ele fez um comentário certeiro a respeito de como o perfume da chuva ali era especialmente fresco. Ela explicou que a proximidade da floresta era responsável por tal efeito, e a conversa fluiu entre eles. E então ele lhe disse que era antropólogo e psicólogo, e que estava escrevendo um livro sobre infidelidade - e perguntou se ela não queria participar do projeto com seu depoimento. Aquela pergunta feita assim, à queima-roupa, surpreendeu-lhe de tal forma que ela apenas aquiesceu. Ele então entregou a ela um cartão, com o endereço e o telefone daquele consultório. Pediu que ela ligasse e marcasse um apontamento com sua secretária, e lá estava ela, diante dele, pronta para despejar sua história. Mas antes ela precisava saber... Como?

- O quê?

-Desculpe. Acho que pensei em voz alta, Dr. Inácio. Eu sei porque você me pediu para vir até aqui. Isso eu entendi perfeitamente. Mas gostaria muito de saber como foi que percebeu que eu poderia oferecer-lhe algum relato, que eu faço parte da sua amostra - como?

-Há uma qualidade indelével, uma espécie de marca, nas pessoas capazes de amar, Tereza. Eu posso explicar o que vi em você, mas prefiro que você me conte sua história primeiro. Temo que revelar esse detalhe antes do teu depoimento possa interferir negativamente no teu relato. Seria pedir demais que você me contasse o que quiser primeiro, e guardasse a curiosidade para o final?

-Acho que posso aguentar mais um pouco para saber, se isso for uma promessa.

Ele sorriu e concordou com a cabeça, enquanto se sentava atrás da mesa de jacarandá recém polida e encerada (incrível como ela não conseguia se desligar dos detalhes).

-Quanto tempo nós temos?

-Você não deve se preocupar com isso, Tereza. Eu não recebo duas pessoas para o projeto num mesmo dia, e geralmente atendo aos meus pacientes pela manhã ou à noite. Reservei o período da tarde para esse projeto, então sinta-se à vontade para levar o tempo que for necessário.

-E te incomoda se eu não ficar sentada? É que eu elaboro melhor enquanto me movimento...

-Tudo bem.

-Posso olhar os teus objetos, tocá-los? Eles me atraem a atenção.

-Claro.

Então ela respirou fundo, e andou em direção à janela, e a chuva começou a cair quase simultaneamente. Ela encostou no parapeito e ficou olhando a chuva em silêncio. Inspirou profundamente o perfume no ar, e seus olhos se encheram de melancolia. Ela sabia que aquela experiência era no mínimo inusitada. Só não sabia onde poderia levá-la. E ela começou a falar:

"A primeira vez que traí chovia, como hoje. Não foi algo planejado. Simplesmente aconteceu. É engraçado falar disso agora, tantos anos passados... É uma lembrança tão doce que nem parece real. Eu sei que é real, mas nem parece. Faz tanto tempo...

Nós éramos colegas de faculdade. Mesma grade de horários, cursos diferentes, algumas matérias em comum. Nos encontrávamos pouco, sempre nos horários das aulas, e quase nunca nos falávamos. E eu sempre soube que ele seria um amante incrível. Havia alguma coisa nele que eu não sei descrever, talvez a maneira como parecia atento ao que lhe diziam, ou a forma como segurava o lápis enquanto tomava notas das aulas... Ele usava lápis, um detalhe que eu considero sedutor: a possibilidade de apagar tudo e reescrever por cima, sei lá. Você pode considerar isso uma besteira, mas eu vejo significado nas coisas mais banais. Eu sou assim, detalhista."



(to be continued...)

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