sábado, 12 de fevereiro de 2011

A herança de Dona Saudade

Um dia como qualquer outro era uma boa definição. Aquele era um dia como qualquer outro. Ela estava sentada num banco de praça, as crianças brincando felizes nos balaços e escorregas, o caçula revolvendo a areia da caixa ferozmente, como quem caça tesouros, o do meio emburrado, sentado do lado oposto da praça, sob o Sol escaldante, braços cruzados sobre o peito, aquela expressão de infelicidade em seu rosto e os olhos transbordando pingos grossos de chuva. O mais velho se gabando para os amigos de suas façanhas acrobáticas nos brinquedos do parquinho.

Poucas mães como ela ali àquela hora da manhã, a maioria babás acompanhando as crianças de suas patroas. Num dia comum de semana, as mulheres de sua idade já estavam em seus trabalhos, talvez tomando a décima decisão do dia junto da terceira xícara de capuccino. Ela achava tudo engraçado e distante, como se estivesse assistindo aquela sucessão de cenas da escotilha de um ônibus espacial, mas sabia que era ao mesmo tempo parte da paisagem que apreciava calada. Levantou-se a caminhou devagar em direção ao do meio, sem distrair-se do caçula, que gargalhava no tanque de areia, espalhando brinquedos e terra molhada com seus movimentos desconexos. Ela olhava para o pequeno e sorria, enquanto seus passos a aproximavam no reflexo de si mesma sentado ali, sob o Sol da manhã, os olhos marejados observando sua aproximação.

Dos três filhos, ele foi o único que herdou sua melancolia, sua tendência para o drama, sua sensibilidade extrema. Ela preferia que nenhum deles fosse frágil como ela, que nenhum de seus filhos precisasse passar pela vida carregando o peso do mundo nas costas. Mas de algumas coisas não se pode fugir. Era ele o seu espelho, o filho com que mais se identificava - e ela o amava e lamentava por ele na mesma medida.

Pelo menos sempre saberia como lidar com aquilo. Sabia que não havia palavras de consolo suficientemente boas em situações como aquela. E sabia que morreria por um abraço silencioso. Sentou-se ao seu lado, estendeu seus braços em sua direção e permitiu que ele se aconchegasse em seu regaço, a cabeça virada para o lado direito, evitando seus olhos e posicionando a orelha sobre seu coração. Cada batimento cardíaco era um mantra de aceitação e amor. Era só do que ele precisava.

E ela sabia.

No futuro, quando se lembrasse dela, seus olhos interiores a veriam como a única pessoa no mundo capaz de entendê-lo completamente. A única que saberia ouvir suas conversas e histórias com total aceitação, sem nenhum traço perceptível de paternalismo ou afetação. Seus irmãos pensavam que conheciam a mãe. Ele sabia que ambos estavam errados. Ela era somente dele, sua totalidade em cada gesto banal do cotidiano transbordando um amor irretocável, seu perfume indelével e as cores da sua aura. Ninguém jamais soubera a sua mãe como ele.

E ela também sabia.


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