domingo, 21 de junho de 2009

Erin

"Vamos lá, preguiçosa, acorde! Time to wake up..."

Ela abriu os olhos e imediatamente sentiu frio. Não aquele friozinho gostoso de fim de dia. Frio de congelar os ossos. De olhos abertos, não divisava luz alguma. "Um último teste"- pensou, enquanto tentava abrir os braços, e...

"Merda! Merda, merda, merda!" Ela pensou ter gritado, mas percebeu que eram seus pensamentos no fundo da cabeça. Toda vez que aquilo acontecia suas cordas vocais congelavam, e ela ficava algumas boas horas sem conseguir falar. O que tornava todo o processo de conseguir ajuda, roupas e algum dinheiro para recomeçar um suplício.

"Merda!" Estava na gaveta frigorífica de um morgue. Com uma manobra do corpo alcançou o fundo da gaveta com os pés. Lá havia uma pequena trava, quase uma saliência, que tinha aprendido a cutucar com a ponta do artelho direito. Mais um pouco, quase lá, isso... Agora, um empurrão simultâneo com a ponta do outro pé... Foi!

Deu sorte dessa vez. Houve uma vez que o coitado do técnico estava no recinto do frigorífico. Quase matou o sujeito! De outra feita, foi um estudante de medicina overstonned que a viu saindo gelada e nua da gaveta. O puto queria comê-la, acredita?

Era madrugada, e o plantonista agora devia estar dormindo em algum canto. Devia agir rápido.

Ela conhecia aquele morgue. Hospital geral. Moleza! As vestes usadas dos médicos ficam empilhadas numa sala no fim do corredor. Ela pegou a primeira que encontrou e deu início a fase dois.

Precisava pegar algum dinheiro. Não considerava roubo o que fazia. Afinal, se ela tinha acabado ali algo muito errado tinha acontecido, e com certeza o dinheiro que ela tinha e as roupas com que foi trazida para aquele lugar - seus pertences - estavam naquele momento com outra pessoa. Nada mais justo. Na verdade, ela achava isso ótimo. Salientava a precariedade da vida, e a transitoriedade da posse. Nada pertence a ninguém. Nada é seu, está seu. Só o ser te pertence.

Foi até a sala dos plantonistas. As coisas dos médicos geralmente ficavam trancadas. Isso era péssimo, porque eles sem dúvida tinham mais grana, e não faria tanta falta no fim do mês. Resolveu então arrombar um cadeado. "Belas amizades eu faço", pensou, enquanto girava cuidadosamente os tambores de um cadeado com segredo numérico. Um estalido... dois... três! "Isso!" O perfume que veio de dentro a fez sorrir. "Francês, doutor? Ótimo, more money for me today. Quinhentos paus! Gosh, that's lucky!" Havia também uma sacola de uma loja de sapatos. Dentro, encontrou um par de tênis usados. Eram grandes, mas não precisaria sair por ai descalça.

Roupas, dinheiro - fim da fase dois. Agora iria até um fast food. Sentia uma fome inexplicável depois de uma noite como essa. E dormiria num desses motéis de quinta do centro da cidade. Tomaria um banho, e cama! Irônico como estar morta e voltar a viver era cansativo! E há gente que é capaz de dizer: "Quando você morrer vai ter bastante tempo para descansar..."

"É fácil falar". Já nem se lembrava a quanto tempo isso acontecia. E não tinha idéia de quantos anos tinha. Não importava para ela. A imagem que lhe saudava do espelho todas as manhãs era a mesma, desde que se lembrava - uma garota de uns 18, talvez vinte anos. Cabelos vermelhos cacheados e olhos muito verdes, sardas all over, pescoço comprido... E não gostava de olhar o resto. Não era ruim - pelo contrário - mas despertava luxúria, e ela nunca se saía bem de uma crise de cio. Geralmente acabava mal, o que queria dizer encrenca, no mínimo. O morgue, dessa vez, tinha sido resultado de uma noite alucinante - pelo menos no princípio - que terminou mal. Overdose de coca! Não segurava a onda dessa merda, e sabia disso. Por que insistia?

Atualmente ela não queria mais entender como, ou por quê. Tinha perdido meses, anos de sua incomum existência tentando figure it out. Não conseguiu. Deu. Desistiu. Tentava abstrair-se do fato e levar uma vida normal. Voltaria amanhã mesmo para casa, ligaria para o trabalho avisando que estava doente, e ia passar o dia curtindo a preguiça, se preparando para a próxima... morte.

O pensamento lhe ocorreu, e ela não gostava dele. "Próxima morte... Que bela merda! Os cretinos espíritas falam disso como se fosse bonito. Só que nascem de novo em corpos novinhos, récem-fabricados. Eu tenho que dar meu jeito com esse mesmo, e a minha porra de vida continua de onde parou!"Lembrou-se de uma vez em que encontrou na rua com o cara que a matou na véspera. O nojento parecia ter visto assombração. Balbuciava como um demente: "Mas foi na cabeça, eu tenho certeza que atirei na cabeça..." Ela atravessou a rua, olhou nos olhos do escroto com cara de safada, chupou seu lábio inferior e perguntou se ele lembrava dela. "Eu não consigo te esquecer, querido! Me liga, vai? A gente vai se divertir à beça!..." O cara quase caiu no chão. E ela ficou mal também. Afinal, fuder com a cabeça de alguém, mesmo a de um filho da puta como aquele, era terrível. Divertido no início, ela até admitiria com um sorriso moleque nos lábios. Mas também terrível, e ela não podia ser inconseqüente com a vida dos outros. Com a sua, talvez. "Os outros são mortais. Tem muito a perder." - to be continued...

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