sábado, 27 de junho de 2009

Crônicas de meu pai morto - cartas à Ana Cristina (final)

(Carta segunda)

Eu penso que talvez a vida seja um equívoco. E que todos nós passemos todo o nosso tempo aqui tentando fazer as coisas certas é a prova cabal deste equívoco. O senso de propósito, por exemplo, constantemente nos afasta daquilo que desejamos ardentemente. Eu passei a sexta-feira inteira fazendo uma comida que não estava a fim de comer, fazendo sala para minha família por parte de marido e sorrindo, quando eu queria estar com você.

Se eu sei fazer uma coisa bem na vida é mentir. Ninguém percebe... É tão sutil! É mesmo uma forma de arte, e não seria ético de minha parte ocultar de você que me orgulho dessa minha característica particular. Sinto-me vaidosa. E assim sendo, todos podem confirmar que estava em ótima forma ontem, de bom humor e agradável, mas na minha mente... Devo ter esganado o meu sogro e desprezado minha sogra 1.000.000 de vezes, antes do almoço!

Agora, enquanto me sento aqui diante do note para te falar do meu amor e tentar tocar teu coração com palavras de papel digital, todos estão em paz. Só eu, turbulenta e ruidosa por dentro, sei da verdade.

A verdade é que hoje eu acordei sem vontade, para encontrar um mundo cinza. Um mundo onde só há pais no Céu - mesmo aqueles pais que partiram sem acreditar nisso - e no qual suas garotinhas choram desoladas as suas ausências. Não há consolo prá mim nesse mundo, porém quero encontrá-lo prá você.

Eu queria ter me despedido dele, não como o fiz naquele domingo 09/07/2006. Eu achava que o veria vivo novamente, e não como o vi. O sorriso dele nos lábios - e ele mesmo já não estava lá. Nenhum comentário ácido sobre a incompetência no atendimento ao público, nenhuma gota do seu sarcasmo habitual - homem implicante com tudo! - nenhuma doce palavra saindo de seus lábios, nem sua risada, que enchia o mundo de alegria. Não, não há mesmo cor no mundo cinza que ele deixou prá trás.

Mas sua dor o deixara, e eu abençôo os médicos misericordiosos que lhe deram morfina, para dor do corpo. E amaldiçôo o mundo que lhe provocou dor tão profunda, capaz de fazê-lo desistir de viver.

E eu levanto todos os dias sentindo que a única maneira de fazer justiça a ele é melhorar o mundo para o Heitor. Só sei um jeito de fazê-lo: o meu filho deve ser um homem melhor. Um homem de verdade, com caráter, bondade, respeito, alegria, justiça, coragem e tudo o que há de bom.

E é por isso que eu minto: há muita mentira no senso de justiça, porque ele se opõe ao senso de oportunidade em muitos pontos. Eu pinto até minha dor e insatisfação de cor de rosa e azul bebê, se isso tornar possível o homem bom que eu espero dele no futuro.

E não me arrependo de nada, como acho que o meu pai não se arrependia: se errou e se desejou fazer tudo de novo, ser outra pessoa, ou ser seu verdadeiro eu, se quis dar vazão a alguma aspiração, não saberei. Mas ele viveu sua verdade, no amor por nós e minha mãe. E deve ter precisado mentir um pouco. Todo mundo precisa.

Te amo demais. Beijo.

(Carta terceira - e última)

Eu acho que nunca falei sobre isso de verdade. Não sei se resolve. Em minha opinião, não adianta, e o sofrimento que subjaz é tão pungente e tão hediondo que é indescritível. É, eu nunca falei sobre isso.

Muito menos com você. Sei que somos amigas, e que seu ombro já me acolheu inúmeras vezes, mas como se partilha isso com alguém? Eu nunca contei nem para a minha analista, as palavras e imagens que me vêem à mente quando penso naquele dia que nunca poderei esquecer.

Seu corpo, tão forte, que antes me tomava nos braços, me pegava no tolo, me conduzia pela mão. Ali, inerte, frio, indiferente. Como eu queria gritar, fugir, morrer junto! Como doía, como dói, como sempre doerá... E lá se foi 50% do meu DNA, alguém de quem sempre tive todo o amor que minha mãe é incapaz de dar. Ele se orgulhava de mim, ele me via e brilhava, vibrava com as minhas conquistas, partilhava minhas vitórias, e ainda contava prá todo mundo!

Eu só conseguia pensar em me encolher ali, num cantinho do caixão e deixar o coveiro me levar para o buraco com ele. Eu tenho filho, marido, uma casa, uma vida consolidada, e eu só queria morrer com ele, porque nada mais fazia o menor sentido prá mim.

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