sexta-feira, 26 de junho de 2009

Crônicas de meu pai morto - cartas à Ana Cristina (parte um)

Estou com muita saudade de você, meu amor. E triste, por teu ano estar começando assim tão sombrio, afinal te ver todas as terças feiras ilumina a minha semana...

A vida não é mesmo justa. As coisas não acontecem nunca num bom momento. Certas coisas não têm um bom momento para acontecer. Depois a gente fica se culpando por umas besteiras sem sentido, como se a gente fosse super poderosa e pudesse ter evitado qualquer situação. E como se não bastasse o carrasco da consciência, tem os algozes familiares, e eu queria poder te proteger daquilo de que fui vítima. Mas você é forte, mais forte que eu, e você vai saber lidar com tudo. Bem melhor do que eu.

Uma parte de mim morreu com o meu pai. Ou pelo menos ficou catatônica. Agora, algumas vezes eu sinto essa minha parte querendo pôr a carinha de fora. Ele me amava, e que eu morresse junto com ele provavelmente não era o que ele desejava prá mim.

Outro dia o Heitor teve um ataque de amor, e começou a se declarar para mim, me abraçou e ficou me dizendo que a gente sempre ia ficar juntinho, e que quando nós morrêssemos iríamos para o céu juntos, e subiríamos, subiríamos até finalmente desaparecermos, juntos. Eu, obviamente, chorei muito. Foi um momento muito emocionante... A imagem era tão bonita, e tão perfeita! Mas eu sabia que era errada.

Uma mãe pode desaparecer, mas não seu filho. Ele vive, precisa viver, a gente faz de tudo para que viva. E a gente ama torto, porque ninguém é perfeito, e todo mundo sabe disso (menos eu).

Eu sempre imagino que no fim da vida a gente sabe que vai morrer. Não como no cinema, quando aparece o flashback da existência. Mas como uma sensação de conformidade, de senso de propósito. Deve ser angustiante sentir que se deixou de fazer algo. Deve ser pacificante sentir o dever cumprido. E o que vem a mente: O melhor de cada um.

O meu melhor é o Heitor. Eu penso que estive na mente do meu pai em seus últimos minutos de consciência, quando finalmente se desligou do corpo e foi ver o que nos espera. Talvez ele até tenha levado um pouco de mim, porque eu sei o quanto dele me ficou, e vive em mim, e o quanto o que ele foi me influencia até hoje, e sempre o fará. A verdade é que eu choro de saudade dele hoje como chorei então, e eu sinto falta dele hoje como sentirei amanhã. Eu nunca resolvi isso, nem sei se quero. Eu nem falo do papai na terapia.

O que eu quero dizer é que não sou boa com isso. Não tenho exatamente medo de morrer, tenho medo de encarar o sofrimento dos que ficam, e você ficou, graças a Deus. Mas não posso faltar para você, porque você é minha amiga: presente, querida e amada. E porque teu sofrimento me faz sofrer duplamente, por você e por mim.

Eu te devo um pedido de desculpas. Embora meus braços tenham te faltado, meu coração está se contorcendo por você, e sofrendo com você, preocupado e sentindo sua falta também. Eu te amo muito, prometo que vou até ai amanhã à noite, depois que todo mundo sair daqui do almoço de Sexta-feira, porque eu não agüento mais esperar mesmo.

Por favor, estenda meu abraço à suas irmãs e mãe, mas meu colo, tardio e imperdoável, esse é só seu.

Muitos beijos e todo o meu amor, Patrícia

(Essa é a primeira de três cartas que escrevi à Ana Cristina na ocasião da morte de Ovídio - seu pai. A identificação me fez reviver e colocar essa minha mesma experiência em perspectiva. Foi bom, e eu considero também libertador.)

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